O PRIMEIRO CONFLITO ENTRE EUROPEUS NA AMÉRICA: A GUERRA DE IGUAPE

Autores: S Ten Julio Cezar Rodrigues Eloi
Segunda, 24 Fevereiro 2025
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Oficialmente, o Brasil foi descoberto em 1500, pela expedição de Pedro Álvares Cabral, mas a ocupação efetiva do território esperaria três décadas para se desenvolver. Por outro lado, a busca por riquezas de além-mar trouxe inúmeras disputas entre Portugal e Espanha, como foram as interpretações dos limites do Tratado de Tordesilhas.

Este artigo visa discutir o primeiro conflito ocorrido entre europeus no continente americano, que remonta os anos de 1534 a 1536, no litoral sul paulista, nas proximidades da divisa com o estado do Paraná. Ademais, tal pesquisa se justifica pela importância de divulgar a história militar para a população em geral, tarefa prestigiada em artigos publicados no EBlog, o blog do Exército Brasileiro.

Portugal e Espanha foram relevantes potências navais nas Grandes Navegações (Corrêa, 1994). Os lusitanos capitanearam a tecnologia naval, sendo seguidos pelos castelhanos, que se organizavam ao final da Reconquista. Assim, tais esforços focaram em rotas alternativas ao comércio de especiarias dominadas pelos venezianos, dado que a queda de Constantinopla em 1453 prejudicou a comunicação entre Europa e Ásia.

Dessa forma, enquanto os lusitanos contornaram o continente africano, os castelhanos rumaram para o oeste, desembarcando no Caribe, pela esquadra de Cristóvão Colombo, em 1492. Dado o foco português na exploração das riquezas nas Índias, o primeiro assentamento oficial no território brasileiro foi criado apenas em 1532 por Martim Afonso de Sousa, a vila de São Vicente, na baixada santista.

Figura 1 – Fundação da vila de São Vicente

Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural (2024).

 

Descobertas as terras do “Novo Mundo”, coube serem divididas as esferas de influências das nações ibéricas, cujos documentos de destaque são a bula Inter Coetera, do papa Alexandre VI (1493) e o Tratado de Tordesilhas, de 1494 (Corrêa, 1994). Em razão da bula papal ter sido desfavorável a Portugal, por traçar o limite nas cem léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde, o acordo de Tordesilhas trouxe a linha sobre Cananéia, no litoral sul paulista, a trezentos e setenta léguas do arquipélago supracitado (Brandão, 2017).

Figura 2 – A divisão do mundo entre as monarquias portuguesa e espanhola

Fonte: Mercier (2015).

 

É na área no limite sul do Tratado de Tordesilhas que ocorre o primeiro embate entre lusitanos e castelhanos nas Américas, na região conhecida como o Vale do Ribeira, no litoral sul paulista, na cidade de Iguape(SP). A guerra de Iguape, como se tornou conhecido o conflito, teve reflexos em Cananéia, ao sul, e em São Vicente, ao norte (Donato, 1986; Weiss Júnior, 2022).

Figura 3 - Vale do Ribeira paulista

Fonte: Todesco (2010).

 

Segundo do Nascimento, Scifoni, Toji, Buscariolli, Guerreiro e da Silva (2008), a guerra de Iguape trata-se do “primeiro conflito armado entre europeus travado em solo americano, episódio virtualmente ignorado pela historiografia oficial”. Tal evento se desenvolveu tendo como contendores os colonos portugueses recém-instalados na capitania de São Vicente contra o grupo comandado pelo castelhano Ruy García de Moschera, formado por portugueses, espanhóis e indígenas.

Para Donato (1986), de 1534 a 1536, castelhanos e buenairenses liderados por Ruy Moschera instalaram-se na capitania de São Vicente, considerando tratar-se de área pertencente à coroa espanhola, dentro da raia do meridiano de Tordesilhas. Estabelecido na localidade havia dois anos, Moschera erguera povoação e ativara comércio e amizade com indígenas locais (Donato, 1986).

Devido a esse comércio irregular, o soberano português à época, D. João II, editou uma ordem de reclusão aos rebeldes, que não reconheceram Iguape e Cananéia como portuguesas e sim como terras espanholas (do Nascimento et al, 2008). Prevendo um ataque português, Moschera assalta uma nau francesa com quatro peças de artilharia que aportara em Cananéia, levantando com oitenta de seus homens e mais uma centena de índios, uma paliçada para emboscar os adversários da frota de Santos.

Nessa paliçada, conhecida como o “entrincheiramento de Iguape”, terminam por derrotar o contingente luso-brasileiro de oitenta soldados comandados por Pero de Góis (Donato, 1986; Weiss Júnior, 2022). Moschera e o seu aliado português Cosme Fernandes, o "Bacharel de Cananéia", atacaram na sequência a vila de São Vicente, deixando-a praticamente destruída, matando dois terços dos seus habitantes (Weiss Júnior, 2022).

Em virtude do contra-ataque vicentino, retiraram-se para a ilha de Santa Catarina, atual Florianópolis, prosseguindo para Buenos Aires. A história apresenta nas décadas seguintes que o período da União Ibérica tornará sem efeito o Tratado de Tordesilhas, no que os bandeirantes aproveitaram a oportunidade de alargar o território brasileiro, não sendo noticiados mais conflitos dessa natureza no litoral sul paulista.

A história militar brasileira deixará de registrar por significativo tempo qualquer incidente ocorrido no Vale do Ribeira paulista, com exceção de escaramuças na Revolução de 1932 e o afundamento do vapor Tutóia pelo submarino alemão U-513, em 1º de julho de 1943, durante a II Guerra Mundial, próximo da divisa entre Iguape e Peruíbe. Na década de 1970, por sua vez, a região esteve envolvida na guerrilha do Vale do Ribeira.

Retornando ao objetivo do artigo, podemos sintetizar que, embora praticamente ausente da historiografia oficial, a guerra de Iguape, ocorrida nos primórdios da colonização, é um fato relevante para a memória militar brasileira, sendo o primeiro confronto em solo americano entre as maiores potências da época. Por fim, por carência de documentação oficial, não foi possível datar precisamente o conflito, cuja estimativa do “Dicionário das batalhas brasileiras” (Donato, 1986), posiciona a contenda de 1534 a 1536.

 

Referências

Brandão, R. P. (2017). A demarcação da raia divisória do Tratado de Tordesilhas e a devolução de Sacramento pelo Tratado Provisional de 1681: complexidades cartográficas e geopolíticas. Anais do XXIX Simpósio Nacional de História. Brasília. Disponível em: https://www.pr.anpuh.org/resources/anais/54/1502150755_ARQUIVO_RPBrandao_ST024_Anpuh.pdf . Acesso em: 10 Nov. 2024.

Corrêa, L. F. S. (1994). A repercussão do Tratado de Tordesilhas na formação do Brasil. Revista de filologia románica, (11), 25-38. Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/RFRM/article/view/RFRM9495110025A/12235 . Acesso em: 10 Nov. 2024.

do Nascimento, F. B.; Scifoni, S.; Toji, S.; Buscariolli, O.; Guerreiro, F.; & da Silva, R. G. (2008). Bens Culturais da Imigração Japonesa no Vale do Ribeira. Registro e Iguape – SP. Dossiê de Tombamento. 9ª Superintendência Regional do instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). São Paulo. Disponível em: https://www.ipatrimonio.org/wp-content/uploads/2017/03/Bens_imigracao_japonesa_vale_do_ribeira.pdf . Acesso em: 10 Nov. 2024.

Donato, H. (1986). Dicionário das batalhas brasileiras – dos conflitos com indígenas, as guerrilhas políticas urbanas e rurais. São Paulo: Ibrasa.

Enciclopédia Itaú Cultural. (2024). Fundação de São Vicente. Reprodução fotográfica José Rosael e Hélio Nobre da tela de Benedito Calixto Acervo do Museu Paulista. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra6213/fundacao-de-sao-vicente . Acesso em: 10 Nov. 2024.

Mercier, G. (2015). Alliance et conquête sur les routes de la découverte du monde.  Les routes touristiques, Québec, Presses de l’Université Laval, 23-50. Disponível em: https://www.pulaval.com/libreacces/9782763724065.pdf . Acesso em: 10 Nov. 2024.

Todesco, C. (2010). Presença ausente e ausência presente do Estado na produção do espaço para o turismo no Vale do Ribeira paulista.  Revue franco-brésilienne de géographie, (9). Disponível em: https://doi.org/10.4000/confins.6484 . Acesso em: 10 Nov. 2024.

Weiss Júnior, I. M. (2022). O Exército Operativo do Brasil de Guararapes à Operação São Francisco: as grandes transformações do Exército Brasileiro. Especialização em Ciências Militares. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Rio de Janeiro. Disponível em: https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/11863/1/MO%206693%20-%20Ivan%20Moacyr%20WEISS%20J%C3%BAnior.pdf . Acesso em: 10 Nov. 2024.

CATEGORIAS:
História

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Nossa amei a reportagem... Realmente em minha infância meu falecido pai que era marinheiro ,comentava sobre essa guerra. Falava que existia em Iguape um esconderijo logo abaixo do Cristo Redentor. Eu até cheguei a ir lá. Realmente era um esconderijo. Tinha todos os trejeitos de que ali realmente foi um local de esconderijo. Julio vc está de parabéns pelo seu trabalho. Deus continue te abençoando. Tenho muito orgulho de ter sido sua professora. Abração. Att Margarete Rocha.

Eu vou com frequência para Iguape e não sabia da sua importância, artigo excelente 👏👏👏👏

Trabalho relevante para preservação da memória com informações surpeendentes. 

Um artigo de excelência, orgulho do Senhor.❤️

Incrível como uma região tão rica em história e recursos naturais,  o Vale do Ribeira,  não figura nos principais livros e informativos da história do Brasil. Parabéns pelo artigo que ilumina a memória dos fatos, preenchendo as lacunas da rica história da região. 

Excelente artigo!!!!Parabéns!!!!

Divino Mestre Parabéns 👏🏻 👏🏻 

Excelente artigo! Parabéns pela dedicação e sucesso. 

Adorei esse artigo! Uma colombiana aprendendo um pouquinho sobre a história do Brasil ☺️. Parabéns pelo excelente artigo 👏🏻👏🏻👏🏻

Parabéns pelo trabalho de pesquisa.

poderiam disponibilizar em PDF.. Otimo artigo! obrigado

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