Uma abordagem conceitual da inteligência para a Conferência dos Exércitos Americanos (CEA)

Autor: Ten Cel Nicolás Kaiser Onetto

Quarta, 14 Setembro 2022
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Antes do início da guerra na Ucrânia, o mundo da inteligência testemunhou uma mudança de paradigma quanto à abertura do compartilhamento da inteligência como forma de antecipar ou estar preparado para a ofensiva que a Rússia lançaria posteriormente. O motivo da desclassificação e do compartilhamento de informações é, sem dúvida, multicausal, refletindo uma complexa interdependência no cenário internacional.

Um elemento a considerar é a situação geopolítica na região, pois tanto para os Estados Unidos e seus aliados quanto para a Rússia, a Ucrânia representa uma área de interesse no tabuleiro de xadrez mundial. Nesse sentido, pode-se considerar que a disseminação da inteligência pelos EUA operou sob o paradigma da teoria do Complexo de Segurança Regional (CSR) de Buzan e Weaver, uma vez que o problema deriva da proximidade geográfica dos países, em que um complexo é formado por países incapazes de resolver seus próprios problemas e que precisam da cooperação de outros Estados para resolvê-los” (Gónzalez, 2013, p. 7).

A cooperação na área de inteligência é, principalmente, o resultado da confiança e de acordos entre as partes porque há interesses comuns. Nessa perspectiva, o desafio para o ciclo XXXV da Conferência do Exércitos Americanos (CEA) é criar uma instância que permita o compartilhamento de inteligência, sendo diversas as razões para não se compartilhar informações. Várias publicações relataram os problemas que existem no intercâmbio de informações. A Figura 1 mostra os aspectos positivos e negativos do compartilhamento de informações.

 

Figura 1: aspectos positivos e negativos a considerar na troca de informações.

Elaboração própria com base em diferentes fontes bibliográficas.

Parte do problema identificado está relacionado à compreensão do conceito de inteligência e de seu escopo de acordo com a legislação interna de cada país. Um exemplo é que existem países cuja legislação define inteligência militar limitando seu sentido ao conhecimento das capacidades e fraquezas do potencial militar de países que são de interesse do ponto de vista da defesa nacional. Por essa razão, a construção de um conceito de inteligência que sirva aos propósitos da CEA e aos objetivos estabelecidos para o presente ciclo é considerada chave, visando à confiança mútua entre os países.

A inteligência tem diferentes significados, níveis e definições. E para que se construa um conceito consensual, é necessário que seja estabelecido o seu escopo. Dessa forma, será proposta uma conceitualização do termo, assim como de seu alcance, tendo em vista que a falta de uma definição poderá desqualificar um país a participar, considerando-se a legislação sobre assuntos de inteligência que define inteligência militar.

Antes de tudo, é importante entender a epistemologia do conceito de inteligência. Nesse sentido, a origem da palavra tem sido pouco explorada ou estudada. Diferentes autores, ao longo do tempo, estabeleceram significados distintos sobre o que pode ser compreendido por inteligência.

 

 

A figura 2 mostra os diferentes significados para o conceito de inteligência. A esse respeito, Vrist e Hoffding estabelecem a premissa de que o conceito de inteligência deve ser considerado epistemologicamente a partir da perspectiva do conhecimento, já que apesar do caráter notoriamente incerto das proposições de inteligência, o cerne da questão está em prescrever um processo que oriente eliminar adequadamente as possibilidades de erro irrelevantes e obter um conhecimento robusto e verdadeiro. (Vrist & Hoffding, 2013), ou seja, a inteligência nos fornece informações concretas, e, a partir delas, podemos gerar ações.

Por causa das características da CEA, só é viável considerar a inteligência um conhecimento, uma vez que ela não é uma organização, mas um órgão de discussão que, portanto, não pode realizar atividades de inteligência. Essa última contradiria a finalidade do órgão que é a integração e a cooperação.

Uma vez compreendido o significado de inteligência como conhecimento, e para evitar problemas de interpretação ou relacioná-lo a atividades secretas e/ou encobertas, considera-se relevante estabelecer os níveis de aplicação. No campo militar, há um consenso de que os níveis são classificados como táticos, operacionais e estratégicos e que, para cada um, há inteligência, levando em conta os seguintes escopos (Abilova & Novosseloff, 2016):

  • Inteligência estratégica: necessária para a formulação de políticas, de planejamento civil-militar e de indicadores e advertências (I&W), nacional e internacionalmente.

  • Inteligência operacional: exigida na sede da missão para planejar a distribuição de recursos da ONU nos diferentes setores e para estar ciente da ameaça colocada pelas partes em conflito.

  • Inteligência Tática: necessária para o planejamento e a execução de operações no nível tático. Exigida para todos os componentes da missão da ONU, no desempenho de suas funções, e para os comandantes de unidade, para que estejam a par das mudanças nas facções locais e para a condução de patrulhas militares de forma eficaz.

Nesse sentido, levando em conta as Nações Unidas como referência e tendo em vista as características da CEA, considera-se que o nível mais aproximado em termos de produção de informações é o estratégico. Embora a inteligência estratégica seja necessária para a formulação de políticas, gerando indicadores e alertas, e a CEA não seja uma estrutura operacional, ela permitiria uma compreensão situacional dos riscos e das ameaças do continente1. Isso se deve ao fato de que, como tem sido discutido em outros ciclos, a natureza das ameaças não tem fronteiras e, muitas vezes, há uma relação direta entre algumas delas.

Complementando o acima exposto, desde 2003, o continente adotou o conceito de Segurança Multidimensional2, que considera uma série de ameaças emergentes, ou novas, que podem afetar a segurança. Nos últimos quatro ciclos da CEA, os desafios da defesa diante das ameaças emergentes têm sido um tema recorrente nas conferências especializadas, havendo intenções de gerar trocas de informações e de experiências nessa área.

Além disso, a natureza dos fenômenos de segurança está relacionada a atos de violência, eventos naturais catastróficos, deficiências no equilíbrio estrutural de um país e tecnologias disruptivas (Peña, 2021). A partir disso, os Estados utilizam os diversos instrumentos do poder nacional3 e, portanto, exigem dados, informações e conhecimentos para a tomada de decisões, ou seja, inteligência.

Tendo estabelecido que a inteligência será considerada um conhecimento, assim como o nível estratégico, devido ao escopo e à necessidade de se ter uma compreensão situacional da situação do continente, é pertinente apontar conceitos associados à inteligência. Como primeiro aspecto, é importante considerar que a inteligência considerada um conhecimento é o produto de um processo em que uma série de dados é transformada em informação. Após um processo de análise, a inteligência relevante é produzida para a tomada de decisões. É importante considerar os conceitos-chaves relacionados à inteligência:

  • Dados: unidade mínima para análise. Por si só, não estão organizados e não fornecem nenhum conteúdo.

  • Metadados: conjunto estruturado ou semiestruturado de atributos que descrevem as características ou adjetivos de um dado.

  • Informações: dados agrupados, contextualizados, rotulados e categorizados com a capacidade de fornecer conhecimento por si só.

  • Análise: decomposição metódica ou decomposição das informações em suas partes componentes; exame de cada parte para encontrar inter-relações e aplicação de raciocínio para determinar o significado das partes e do todo.

  • Compreensão situacional: conhecimento e compreensão de uma situação, facilitados por informações e análises.

Parte do problema é como a Inteligência é definida. Anteriormente, foi mencionado que seria considerada a abordagem da ONU por causa da neutralidade do órgão. Nesse sentido, (Abilova & Novosseloff, 2016), em seu artigo Demystifying Intelligence in UN Peace Operations: Toward an Organizational Doctrine”, relata:

“Enquanto a inteligência estava tradicionalmente focada em servir o interesse nacional e operar contra um adversário claramente definido, ela se ampliou, e atores como empresas de segurança privada, organizações terroristas e empresas comerciais agora também se referem à inteligência. No contexto da ONU, a inteligência é melhor entendida como uma "análise multidimensional da situação" que é compartilhada em uma base de necessidade de conhecimento. Ela se distingue do desenvolvimento do conhecimento e da consciência situacional por sua qualidade analítica, sua natureza exclusiva e a necessidade de um certo grau de conhecimento. e a necessidade de um certo grau de confidencialidade. Entretanto, isto não implica a necessidade de se envolver em operações clandestinas ou encobertas, que uma organização multilateral como a ONU não pode empreender”. (Abilova & Novosseloff, 2016, p. 1).

Os autores deixam claro que o conceito da inteligência nas Nações Unidas é alcançar um entendimento situacional de uma missão, descartando qualquer ação encoberta relacionada à atividade de inteligência. Embora essa abordagem possa gerar consenso nos países-membros, um aspecto chave é identificado: a produção é para os fins das operações de paz que estão sendo executadas, e, conforme mencionado, a CEA não possui uma força multinacional para requerer informações para apoiar a tomada de decisões.

É, portanto, legítimo questionar: por que compartilhar informações? Entretanto, levando em consideração a abordagem da ONU, o compartilhamento de informações permitiria uma compreensão situacional dos riscos e das ameaças do continente, que são, cada vez mais, interdependentes.

Com base nessa abordagem, e considerando o significado e o nível definido, propõe-se considerar a inteligência toda informação que pode ser compartilhada de acordo com a estrutura legal de cada país e que fornece conhecimento para alcançar uma compreensão situacional dos riscos e das ameaças que afetam o continente americano.

Essa conceptualização limita o escopo, no sentido de que: 1) respeita a soberania de cada país; 2) procura fornecer informações relacionadas a aspectos específicos já acordados; e 3) permite uma compreensão regional dos riscos e ameaças.

Com certeza, a definição pode não cobrir todos os aspectos relacionados à confidencialidade necessária para trabalhar com inteligência, mas o espírito é ser capaz de construir um conceito que permita o consenso e, dessa forma, melhorar a cooperação e a integração entre os exércitos membros para alcançar os objetivos deste Ciclo CEA.

 

Referências

Abilova, O., & Novosseloff, A. (25 de Julio de 2016). Demystifying Intelligence in UN Peace Operations: Toward an Organizational Doctrine. Obtido em 11 de Mayo de 2022, de International Peace Institute: https://www.ipinst.org/2016/07/demystifying-intelligence-in-un-peace-ops

Ballast, J. (12 de Septiembre de 2017). Trust (in) NATO. The future of intelligence sharing within the Alliacne. Research Paper, 140. Obtido em 10 de Febrero de 2022, de https://www.ndc.nato.int/news/news.php?icode=1085

Cordner, G., & Scarborough, K. (Enero de 2010). Information Sharing: Exploring the Intersection of Policing with National and Military Intelligence. Homeland Securtity Affairs, 6(1). Obtido em 10 de Febrero de 2022, de https://www.hsaj.org/articles/92

Gónzalez, M. (2013). Traslado de Cultivos en la Frontera Colombo - Peruana. Universidad Militar Nueva Granada, Facultad de Relaciones Internacionales. Obtido em 11 de Mayo de 2022, de https://repository.unimilitar.edu.co/bitstream/handle/10654/11673/GonzalezTabordaMariaAngelica2014.pdf?sequence=2&isAllowed=y

Hanna, M., Granzow, D., Bolte, B., & Alvarado, A. (2017). NATO Intelligence and Information Sharing: Improving NATO Strategy for Stabilization and Reconstruction Operations. Connections: The Quarterly Journal, 16(4), pp. 5-33. Obtido em 09 de Febrero de 2022, de https://connections-qj.org/article/nato-intelligence-and-information-sharing-improving-nato-strategy-stabilization-and

Lefebvre, S. (02 de Febrero de 2011). The Difficulties and Dilemmas of International Intelligence Cooperation. International Journal of Intelligence and CounterIntelligence, 16(4), pp. 527-542. doi:10.1080/716100467

Peña, J. (09 de Septiembre de 2021). Introducción a los Estudios de Seguridad. Diplomado de Análisis. Santiaggo, RM, Chile.

US Armed Forces. (25 de Abril de 2018). Joint Doctrine Note 1-18 Strategy. Obtido em 13 de Mayo de 2022, de https://irp.fas.org/doddir/dod/jdn1_18.pdf

Vrist, K., & Hoffding, S. (Octubre de 2013). The Espistemic Status of Intelligence: An Epistemologic Understanding of Intelligence. Intelligence & National Security, 28(5), pp. 694-716. doi:10.1080/02684527.2012.701438

 

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1 A conceitualização e definição de riscos e perigos foram aprovadas no XXXIII ciclo do CEA na República Dominicana.

2 Definição acordada na Conferência Especial de Segurança, realizada na Cidade do México em 27-28 de outubro de 2003.

3 Os instrumentos do poder nacional são Diplomático, Informativo, Militar e Econômico (DIME). Ela também foi estendida aos campos financeiro, de inteligência, jurídico e de desenvolvimento (US Armed Forces, 2018).

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