Treinamento do Pelotão de Engajamento das Nações Unidas: futuros multiplicadores de conhecimento.

Autor: TC QCO Christiane Alves de Lima

Quarta, 01 Novembro 2023
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O Departamento de Operações de Paz (DPO, sigla em inglês) é um dos eixos principais para o cumprimento das missões de paz da Organização das Nações Unidas. Este departamento norteia e plasma no terreno, com o emprego de recursos humanos, as intenções do Secretário-Geral e do Conselho de Segurança no que tange à construção da paz internacional, à garantia de um ambiente estável e seguro nos países em conflito, bem como, ao apoio a processos políticos que prezem o reestabelecimento da paz duradoura. Supõe-se, então, que haja um empenho constante desse órgão para que os países contribuintes de tropa e de policial (TCC e PCC respectivamente, siglas em inglês) estejam alinhados com a intenção da instituição e, também, estejam preparados profissionalmente para enfrentar os desafios da missão, assim como, serem capazes de cumprir os mandatos de forma eficaz e eficiente.

Dito isso, em uma de suas vertentes de atuação, o DPO busca sempre revisar e atualizar a doutrina de capacitação dos Estados-membros que oferecem tropas para o emprego em missões de paz. A Oficina de Assuntos Militares (OMA, sigla em inglês), subordinada ao DPO, provê atualizações doutrinárias aos TCC, visando capacitar adequadamente seus militares e melhorar o rendimento operacional no cumprimento das missões de manutenção da paz.

Atualmente, considerando dados numéricos apresentados pelo DPO em fevereiro de 2023 [1], o efetivo total do componente militar desdobrado nas principais missões em curso chega à soma de 59.461 homens e mulheres militares, a saber: MINUSCA (13.396), UNMISS (12.600), MONUSCO (12.379), MINUSMA (11.739) e UNIFIL (9.347) [2]. Chama a atenção o número de militares desdobrados no terreno, considerando que estes estão em maior número se compararmos com os efetivos dos componentes policial e civil. Logo, cresce de importância o treinamento da abordagem azul [3], comumente definida como conceitos doutrinários da ONU, em que há um direcionamento institucional para que ocorra o nivelamento da capacitação das tropas dos diferentes Estados-membros de forma específica e uniforme, evitando, assim, que haja desconhecimento ou distorções dos peacekeepers nos contextos de operações de manutenção da paz.

Outro ponto interessante a salientar é que, se analisarmos as tarefas operacionais das tropas (patrulhas, postos de observação, checkpoints, comboios, ações humanitárias etc.), os militares têm muito mais chances de conhecer a realidade do entorno da sua área de responsabilidade no terreno e, como efeito, ter um contato mais frequente e aproximado com a comunidade. Conhecer e manter contatos adequados com a população pode ser uma fonte de informação formal ou informal obtida a partir da interação social, sendo relevante para análises e planejamentos de ações futuras, alcançando, assim, resultados mais assertivos. Os batalhões de Infantaria das Nações Unidas, elementos operativos, no nível tático, presentes no terreno, podem fazer uso de ferramentas factíveis que permitem obter e compilar dados, os quais serão ratificados ou não por células específicas (Inteligência, por exemplo) e utilizados para a obtenção da consciência situacional do local.

Considerando a proposta de abordagem dos militares com a comunidade local nas operações de paz e a fim de manter o fluxo da atualização doutrinária, o OMA realizou a revisão do Manual de Batalhão de Infantaria das Nações Unidas (UNIBAM, sigla em inglês), em 2020. Nessa última versão, foi inserido um efetivo orgânico de militares na estrutura dos batalhões: o Pelotão de Engajamento. Esta fração, constituída por militares do segmento masculino e feminino, no nível tático, tende a formalizar oportunidades de relações sociais produtivas com os atores envolvidos no país em conflito (homens, mulheres, crianças, idosos, lideranças locais, representantes estatais, organizações não governamentais e outros) a fim de estreitar as interações entre os militares e a população. Ainda assim, busca prover um esclarecimento sobre o papel do componente militar na missão, o cumprimento do mandato e, também, entender as necessidades específicas de acordo com cada indivíduo, respeitando os estratos sociocultural, étnico, religioso e político.

Pode-se dizer que as atividades do Pelotão de Engajamento nada diferem do que possivelmente já era feito indireta e empiricamente por outros elementos orgânicos dos batalhões no terreno. Contudo, o OMA entendeu que seria necessário consolidar essa capacidade humana, dando-lhe maiores condições estruturais e funcionais para dedicar-se exclusivamente à otimização das interações com a comunidade, durante as atividades operacionais do batalhão, em prol de tarefas e objetivos pré-definidos e exclusivos a esta fração. Tudo isso fruto da análise de relatórios de missões no terreno, em que foram reportados os resultados obtidos por TCCs ao utilizar frações mistas em ações militares, principalmente em atividades de Coordenação Civil-Militar (CIMIC) e patrulhas.

A partir de 2020, o OMA deliberou uma série de reuniões com a participação de representantes de Estados-membros a fim de consolidar a base doutrinária para a capacitação dos Pelotões de Engajamento do Batalhão de Infantaria da ONU. Com o apoio do Ministério da Defesa do Canadá e de outras entidades atreladas ao tema de operações de paz, após várias revisões, em outubro de 2022, o DPO lançou o UN Engagement Platoon Handbook. Em dezembro de 2022, o Serviço Integrado de Treinamento (ITS, sigla em inglês) do DPO [4] disponibilizou na plataforma online os Pacotes de Reforço para o Treinamento do Pelotão de Engajamento das Nações Unidas (UNEP RTP, sigla em inglês) [5].

Em março de 2023, o ITS deu início ao 1° Treinamento de Treinadores (ToT) sobre os UNEP RTP. Realizado em Entebbe, Uganda, no período de 20 a 31 de março, tendo a participação de representantes de diferentes países (Marrocos, Zâmbia, Brasil, Vietnã, Estados Unidos da América, Mongólia, Nepal, Uruguai, Gana, Paquistão, Tanzânia e Quênia). A maioria dos participantes possuía muita experiência em missões de paz, porém, pouco ou nenhum conhecimento sobre o assunto. Como é um tema ainda recente, tende a ser pouco explorado nos treinamentos pré-desdobramento dos TCC. Os objetivos do ITS nesse primeiro ToT foram dar conhecimento sobre o assunto, capacitar futuros multiplicadores e nivelar o conhecimento. No ToT, enfatizou-se a necessidade de integrar o Pelotão de Engajamento à estrutura do Batalhão de Infantaria e empregar efetivamente essa fração no terreno, sendo prerrogativa para desdobramentos futuros de TCC a existência de um pelotão capacitado para tais fins.

A maioria dos conteúdos dos UNEP RTP permeia os temas transversais da ONU (proteção de civis, proteção de criança, violência sexual relacionada ao conflito, exploração e abuso sexual, Agenda Mulheres, Paz e Segurança). Como é praxe doutrinária, o ITS utiliza o cenário Carana (missão de paz fictícia para fins de treinamento dos futuros peacekeepers), com diferentes Exercícios de Cenário-Base (SBE, sigla em inglês) para contextualizar situações-problema como insumo para discussão e solução dos casos apresentados. No UNEP RPT ToT, os instrutores deram ênfase às estratégias didáticas favoráveis que permitiriam aos multiplicadores transmitirem o conteúdo de forma mais eficaz.

Muito mais do que conscientizar sobre o conceito e as tarefas do Pelotão de Engajamento da ONU, houve um empenho do ITS em democratizar e difundir formas de transmissão do conteúdo. Por vezes, por falta de manejo didático, os multiplicadores sentem dificuldade com a transmissão dos assuntos, impactando na entrega dos TCC capacitados no terreno. O empenho do ITS é que seja consolidado esse assunto novo nos treinamentos pré-desdobramento, sem que haja perdas de conteúdo e entendimento dessa fração agregada ao batalhão.

A proposta do ITS é manter a constante atualização doutrinária sobre o assunto a partir de contribuições daqueles que estão no terreno e dos que estão multiplicando o conhecimento. Vale destacar que o ITS pretende manter ao longo do ano outros UNEP RPT ToTs para difundir cada vez mais a capacitação das tropas sobre o Pelotão de Engajamento. E assim o fará em junho de 2023, em Brindisi, Itália, onde ocorrerá o próximo ToT. Cabe agora ao Brasil, em particular ao Exército Brasileiro, estar a par das novas atualizações doutrinárias e dar início ao treinamento de seu efetivo para poder estar em condições de seguir ofertando, com excelência, tropas para as missões de paz da ONU.

 

[1] Informação disponível em https://peacekeeping.un.org/es/troop-and-police-contributors

[2] MINUSCA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana); UNMISS (Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul), MONUSCO (Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo), MINUSMA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização do Mali), UNIFIL (Força Interina das Nações Unidas no Líbano).

[3] Para saber mais sobre o assunto, ver artigo “As abordagens azul e verde para a construção da paz”, disponível em https://www.ebrevistas.eb.mil.br/CCOPAB/issue/view/978

[4] Disponível em: https://unpeacekeepingtraining.org/about/integratedtrainingservice

[5] Disponível em: https://peacekeepingresourcehub.un.org/en/training/rtp/unep

Comentarios

Comentarios
Parabéns pelo texto, muito esclarecedor!
O artigo da TC QCO Christiane Lima é ao mesmo tempo rico e esclarecedor: rico em informações acerca de um tema importante e que é fonte de admiração e respeito das Forças Armadas Brasileiras, as missões de paz e esclarecedor acerca das mesmas. Parabéns.

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