Soldados e acadêmicos

Autores: Coronel R1 Marcelo Oliveira Lopes Serrano
Quarta, 13 Dezembro 2023
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       Até o final da primeira década deste século, nossas escolas eram apenas militares; tornaram-se também acadêmicas com seus programas de pós-graduação. Esse avanço elevou o patamar do ensino nelas ministrado, ajustando-o às diretrizes nacionais. A submissão às mesmas normas gerenciadoras das instituições acadêmicas civis facilitou o intercâmbio com estas, possibilitando interlocução e intercâmbio em bases mais equânimes.

       O ensino sempre foi prioritário no Exército. Convém, entretanto, lembrar que se trata essencialmente de atividade-meio; a atividade-fim é a aplicação do ensinado. Seus objetivos, portanto, precisam ser pragmáticos. O ensino técnico-profissional já possui de longa data essa característica e o mesmo deve se requerer dos frutos da pós-graduação. É nesse sentido que importa tratar da relação entre soldado e acadêmico.

       Há que se atentar para um aspecto fundamental: militares e acadêmicos não compartem as mesmas características e não têm exatamente a mesma relação com o objeto estudado. Isso não significa endossar presunções de superioridade, comparações de valor entre um e outro e, muito menos, oposição entre ambos. São simplesmente profissionais diferentes, que não se animam da mesma mentalidade profissional; deixariam de ser militares e acadêmicos se o fizessem, e a associação de ambos seria improfícua se assim fosse. A desatenção a essa realidade não convém ao pragmatismo dos estudos e pesquisas no Exército e a adequada preparação para o exercício das funções militares, sobretudo de caráter bélico. Essa diferenciação entre militares e acadêmicos é reflexo da disparidade de propósitos do ensino militar e do acadêmico.

       As escolas militares formam pessoal para o exercício das funções da força à qual pertencem. O ensino que proporcionam é autocentrado, eminentemente objetivo e pragmático. As instituições acadêmicas civis não estão, em geral, sujeitas a essa mesma restrição, pois não formam pessoal para si mesmas. O ensino que ministram pode consequentemente ser mais difuso, voltado para fora. É um ensino aberto e não orientado para dentro como é e deve ser o militar.i Em razão disso, diferentemente das escolas militares, a academia tem o próprio ensino como fim, sendo, portanto, mais livre para perseguir o conhecimento em função do próprio conhecimento.

       A distinção entre acadêmicos e militares é similar. Estes podem eventualmente precisar viver na prática os efeitos de suas pesquisas, doutrinas e ideias, enquanto aqueles, dedicados ao estudo das ciências militares, tratam os problemas exclusivamente no campo teórico. A relação de ambos com o objeto estudado é caracterizada por essa diferença de perspectivas. Nesse sentido, a responsabilidade do militar, tanto pelo que produz quanto pelo que acata intelectualmente, é mais séria no que concerne a si mesmo e à força à qual pertence que a do acadêmico. A objetividade e o pragmatismo são a marca do soldado e não podem deixar de ser também a de seus variados estudos e pesquisas.

       Além de buscar no trabalho dos acadêmicos, fundamentos e princípios que orientem a ação que nos é necessária, precisamos nos beneficiar da metodologia científica em nossos estudos, do alargamento da compreensão dos fatos mediante a interação com outras teorias e outros autores, que fundamentem nossos esforços intelectuais e melhor estruturem nossas ideias. Tudo isso devemos extrair da comunhão produtiva com os acadêmicos, mas é preciso cuidar para que a mentalidade militar não se dilua na mentalidade acadêmica, que nos oferece essa metodologia: necessitamos do embasamento científico, mas é imperioso mantermo-nos militares no modo de pensar.

       A metodologia científica estrutura, orienta e corrobora as ideias. Estas, contudo, nos são mais importantes que a metodologia, desprovida de valor em si mesma. Se um lapidador trabalhar com todo rigor da técnica uma pedra vulgar, o resultado será formalmente perfeito, mas terá produzido uma bijuteria sem valor. O bom lapidador valoriza a qualidade da gema mais que o trabalho do buril, caso contrário, priorizará a lapidação e não a joia que produzirá. O mesmo se aplica à metodologia em relação às ideias que ela burila.

       Devem-se evitar distorções na dialética metodologia/ideias para não prejudicar o fim pragmático que nos interessa: as ideias!

       Comentando artigo rejeitado por uma de nossas revistas científicas, um general que comandou recentemente uma das mais importantes escolas do Exército afirmou que o texto teria maior probabilidade de aprovação se fosse de autoria coletiva. Por quê? Ideias individuais têm menos valor, se pertinentes e adequadamente fundamentadas? A quantidade dos autores importa mais que o valor da ideia? Isso não é inverter valores? Ademais, a autoria coletiva pode bem servir para mascarar a mediocridade de alguns dos autores, que por si mesmos nada produziriam. A coletividade, de fato, propicia significativo respaldo, mas ideias coletivas não são verdadeiras – ou cientificamente estruturadas – por serem coletivas, como categoricamente afirmou Henri Hude em a Ética do Decisor.ii

      Se o foco na pesquisa realizada ocupar o cerne do trabalho, se desproporcionalmente abundar em relação às ideias resultantes, incide-se no que se pode chamar de “segundismo”, típico de estudos repletos de referências a outros autores (segundo fulano... segundo beltrano...), mas carentes relativamente de ideias próprias. Textos assim representam pouco mais que a exposição do que outros autores escreveram e pouco acrescentam além da síntese do que já se escreveu. A prolixidade pouco produtiva da pesquisa encobre a pobreza das ideias. Montanhas pesquisadas não devem parir ideias do tamanho de um rato.

       A temática original é um valor reconhecido, mas o academicismo não valoriza as ideias originais no mesmo grau; tende a considerá-las simples opiniões. Pode-se assim desprezar uma ideia fecunda se sua fundamentação científica for julgada deficiente.iii Dê-se adequado embasamento às boas ideias em vez de rejeitá-las. Lembremo-nos, todavia, que inexistem regras absolutas. Submeter-se à rigidez das regras exclui o concurso valioso da inteligência. Deve-se reconhecer que exceções se aplicam quando uma ideia fundamentar-se claramente. Clausewitz, por exemplo, afirmou a prevalência dos valores morais na guerra baseado apenas em sua própria experiência e isso bastou por ser verdadeiro. Valorize-se a gema preciosa e não o processo de lapidar, por si infrutífero.

       Tais distorções, além de outras, indicam claramente maior foco nos processos que nos fins.

       O pragmatismo em nossos estudos está nas ideias oferecidas,iv que recomendem ações ou atitudes em benefício do Exército, pois o valor objetivo encontra-se nelas e não em sua adequada fundamentação acadêmica. Esta é necessária para contextualizá-las, esclarecê-las e corroborá-las, mas não pode prevalecer, pois o embasamento científico é o meio, não o fim. Interessa-nos adequar a direção e o ajuste do foco ao fim pragmático.

       Ilustrando a ideia central aqui apresentada, convém recordar Henri Bergson, filósofo e escritor francês: “sábios e filósofos tendem demasiadamente a acreditar que as pessoas exercem o pensamento como eles mesmos o fazem, por gosto de pensar. Na verdade, ele visa à ação”.v Tive a oportunidade e a satisfação de ser aluno do professor Hervé Coutau-Bégarie,vi renomado historiador e teórico da estratégia, com extensa obra dedicada ao tema. Ele reconhecia claramente a distinção entre soldados e acadêmicos. Em sua primeira aula, ao apresentar-se a nós, alunos, e aparentar soberba na exibição de suas credenciais intelectuais, fruto do estudo de milhares de obras sobre o assunto, ele de imediato desfez essa primeira e rápida impressão afirmando: “mas eu sou um pensador, vocês são homens de ação”. Precisamos saber utilizar as ferramentas básicas do pensador, mas utilizá-las pensando na ação, como homens de ação que somos.

       O brilho acadêmico não pode ofuscar a mentalidade do soldado. A atenção aos aspectos genéricos mencionados, indicadores da falta de objetividade e do pragmatismo que nos são próprios, é um modo de evitar esse transvio. Nosso pragmatismo deve resultar em ideias e não apenas em conhecimentos, os quais, muitas vezes, podem ser inócuos. Ideias bem fundamentadas, possuidoras de raízes fortes e arraigadas nos critérios da pertinência, da necessidade e da factibilidade. Ideias que sanem deficiências e que proponham melhorias. O pragmatismo, por outro lado, não pode resultar em propostas visionárias, idealistas ou irrealistas, pois deixará de ser pragmático se oferecer ilusões.

i Isso não significa que o militar possa se abstrair do que ocorre além da esfera propriamente militar.

ii Bibliex, p. 199.O heliocentrismo verdadeiro de Copérnico contrariou a opinião coletiva dos sábios da época, apegados ao geocentrismo ptolomaico.

iii Todavia, se publicada e servir de referência em novo estudo, ela será indiretamente validada ao fundamentar esse trabalho, o que não deixa de ser incongruente.

iv Temas históricos são exceção, pois têm valor por si mesmos; seu pragmatismo está no potencial anímico e nos exemplos, positivos ou negativos, que oferecem.

v Bergson, Henri, Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: PUF, 2020, p. 173.

vi Professor (já falecido) do Collège Interarmées de Défense, atual École de Guerre, instituição de ensino militar superior das forças armadas francesas.

 

 

 

Comentarios

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A interface entre teoria e prática revela uma clássica relação dialética, sobretudo de estilo pós-hegeliano. Ao suplantar a simples coerência linear, tornam-se opostos interdependentes. Não por acaso, a etimologia da palavra militância deriva da junção do verbo militar, do latim "militare" ("ser soldado"), e do sufixo -ância, que significa ação ou o resultado dessa ação. Contudo, toda militância é precedida por um ideário, cuja fonte é eminentemente teórica. Portanto, em qualquer âmbito, sistemas de ações e teóricos estão interligados teleologicamente. Nesse sentido, é salutar que, mesmo no plano tático ou operacional, a atuação militar seja balizada por um sólido cabedal teórico-conceitual, envolvendo especialistas (acadêmicos e militares) na formatação doutrinária.
Excelente artigo!
Há de se encontrar o equilíbrio entre os "bacharéis" e os "tarimbeiros" para que se encontre as soluções práticas para os problemas atuais da Força. Nada substitui a prática nas atividades militares, entretanto, é necessária a teoria de pensadores experimentados na guerra para aplicação ou adaptação nas atividades militares.
O artigo não nega, em momento algum, a importância da teoria, pois teorias bem adequadas também compõem o sentido pragmático. Em termos específicos, voltados à pós-graduação, o artigo ressalta a maior importância das ideias, tanto teóricas quanto práticas, em relação à metodologia acadêmica, em si, desprovida de valor.
Artigo confuso. Não está clara a posição que ele defende. Destaca a diferença entre homens de pensamento e homens de ação, para dizer que aos últimos o mais importante são as ideias. Mas estas estão no campo do pensamento! Não seriam as ideias que seriam instrumentos ("técnica") da ação ("gema")? Além disso, desvaloriza a metodologia, como se as ideias fossem puras abstrações do pensamento que pudessem surgir do ar. A metodologia serve à produção do conhecimento verdadeiro. Ambas estão na mesma esfera, a do pensamento. Penso que a excessiva valoração do idealismo (campo epistemológico no qual o artigo se inclui, apesar da crítica ao final) está associada à filosofia. A ciência, que é materialista, não valoriza tanto as ideias, como se estas fossem simples produtos de mentes geniais, como valoriza o trabalho técnico e cotidiano de produção do conhecimento através do método adequado. A ciência é que, de pouco em pouco, fará avançar a Força, assim como as demais instituições nacionais, e não ideias geniais.

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