República Centro-Africana: breve apresentação

Autor: Ten Cel Luiz Claudio Talavera de Azeredo

Quinta, 24 Janeiro 2019
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No dia 6 de outubro último, encerrou-se, formalmente, meu tempo de serviço em Missão de Paz de Caráter Individual de um ano, como Oficial de Estado-Maior na Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA), na qual desempenhei a função de Chefe da Seção de Operações do Setor Leste da Missão. Nesse contexto, sem pretensão de esgotar o assunto e no intuito de compartilhar o conhecimento adquirido sobre o mencionado país africano, apresenta-se, nas linhas a seguir, um panorama atual da República Centro-Africana, de seu conflito interno e da MINUSCA.

A República Centro-Africana (RCA) é um país tão desconhecido quanto pobre. Bem definida pela sua denominação oficial, a RCA situa-se no coração do continente africano, ligeiramente ao norte da linha do Equador. O país, que possui como línguas oficiais o sangho (idioma local) e o francês (herança da colonização), possui considerável área territorial (cerca de 622.0000 km² - maior que o Estado brasileiro de Minas Gerais ou que a França, por exemplo) sendo, no entanto, escassamente povoado, com população estimada em cerca de 4.900.000 habitantes pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2017.

Terra de povo humilde e simpático, a RCA, infelizmente, pode ser identificada como um exemplo da definição de Estado falido. Pela sua debilidade e ineficiência, não se identifica a presença do aparato estatal no país - nem mesmo na própria capital, a cidade de Bangui -, sendo consequentemente ausente na grande maioria de seu território.

Uma percepção geral de sua incipiente economia auxilia na compreensão da falência do referido Estado. Baseada no setor primário, na inexistência do setor secundário e em um inexpressivo setor terciário, a economia da RCA não se estruturou ao longo da história. O Produto Interno Bruto é um dos menores da comunidade internacional, não tendo alcançado a cifra de 2 bilhões de dólares no ano de 2016, segundo o Banco Mundial (BM), classificando o país nas duas ou três últimas posições do "ranking per capta", elaborado pela ONU ou pelo BM.

Não há obstáculos geográficos de vulto na superfície. Situado na mesma latitude média que os Estados brasileiros do Amapá e de Roraima, o território da RCA evidencia diversas semelhanças com aspectos fisiográficos de algumas regiões do Brasil. A porção Nordeste do país caracteriza-se pelo clima subsaariano, com predominância da vegetação de estepe africana, o que torna a região semelhante ao semiárido do Nordeste brasileiro. A savana domina grande parte do território centro-africano (cerca de 80%), área na qual vigora o clima tropical. A região é extremamente similar ao cerrado no Brasil, sendo sua semelhança tamanha, que a paisagem geral da maior parte da RCA se torna familiar aos conhecedores desse bioma brasileiro. No extremo Sul e região Sudoeste do país, verifica-se a incidência do clima equatorial e a existência da floresta equatorial africana que, na RCA, é muito parecida com a mata atlântica brasileira.

Diferentemente da Geografia, no âmbito da História podem ser identificadas distintas causas do não desenvolvimento do Estado centro-africano. País jovem, a República Centro-Africana obteve sua independência junto à França em 1960. Durante a colonização, não houve ações efetivas para o desenvolvimento educacional e a formação de lideranças locais. Tal lacuna culminou com a inexistência de quadros capazes de gerirem o país quando do início de sua existência soberana. Em consequência, os governos e as instituições, desde a independência, ainda não foram capazes de representar todos os segmentos da população centro-africana, fato gerador dos sucessivos golpes de Estado e da constante instabilidade política que marcam a RCA.

A ausência de representatividade dos grupos étnicos locais no governo e nas instituições nacionais confere tênue caráter de legitimidade a alguns grupos armados, que ocupam o vácuo de poder deixado pelo Estado em grandes porções do território onde aquele não se faz presente, aliando-se, dividindo-se e lutando entre si, ocasionando os confrontos armados que há anos assolam a RCA, na luta por recursos e poder. O conflito atualmente vivenciado sintetiza a curta história do país.

A partir do contexto abordado, iniciou-se, no ano de 2012, a sublevação da população da região Nordeste do país, majoritariamente muçulmana, insatisfeita com os anos de abandono do setor público e com a falta de representatividade no governo e em outras instituições nacionais. Os grupos armados existentes na região formaram uma coalizão denominada Seleka ("aliança", em sangho), marcharam até a capital, depondo o Presidente da República, e empossaram seu dirigente máximo no cargo. O novo governo, além de não melhorar a situação geral do país, foi complacente com diversos abusos e crimes cometidos pelos grupos armados Seleka, notadamente contra a população cristã e animista que, para se defender, criou diversos grupos de autodefesa denominados Anti-balaka ("anti-facão", em sangho). Em dezembro de 2013, a espiral de violência atingiu seu pico, ocasionando a "batalha de Bangui". Barbáries atraem a atenção da comunidade internacional, tendo a ONU concedido seu aval para uma intervenção militar da França, visando controlar os conflitos fratricidas e restaurar a ordem interna do país. Assim, surgiu a MINUSCA, estabelecida pela ONU em 2014 para estabilizar a RCA.

Atualmente, a MINUSCA conta com cerca de 13 mil integrantes, a participação de 53 países e um orçamento de aproximadamente 1 bilhão de dólares por ano. Os êxitos iniciais da missão de estabilização relativa do país e da realização de eleições democráticas foram eclipsados por uma onda de violência em diferentes pontos das partes Leste e Centro-Sul do território centro-africano, a partir do final de 2016.

Em que pese a gravidade dos recentes episódios de violência, a maior crise na RCA é humanitária. A conjugação dos aspectos geográficos, históricos, econômicos e políticos, brevemente abordados, implica em uma triste resultante, que desaloja cerca de 20% da população de seus lares na busca por condições de subsistência e impede o desenvolvimento econômico e social do país, fazendo com que mais da metade dos cidadãos necessite de algum auxílio para sobreviver.

Após a apresentação de uma visão panorâmica sobre a RCA e sobre a MINUSCA é natural que se evidenciem somente os aspectos negativos sobre o país e sobre a Missão, sendo oportuno e útil realizar uma breve reflexão comparativa para obter a perspectiva adequada do universo vivenciado na RCA.

Exemplificando, destaca-se que há vários países que convivem com grupos/bandos armados com grande poder e influência em parte de seu território. As dificuldades estruturais existentes na RCA, como aeroportos sem pavimentação, estradas e pontes precárias e rede de energia elétrica incipiente, também se reproduzem em um vasto número de nações. As soluções para tais óbices de infraestrutura são conhecidas, sendo, inclusive, implementadas, na medida do possível, no país centro-africano.

Ainda é relevante abordar algumas "verdades parciais" comumente difundidas sobre a RCA e seu atual conflito. Quanto à alegação de lutas intermináveis por desavenças étnicas e religiosas, destaca-se que, apesar de a RCA ser cortada pela "fronteira" entre a África muçulmana e a África cristã no terço Nordeste do país, a coexistência das duas religiões no mesmo território não gera conflitos por si mesma na população, exceto quando manipulada por grupos armados ou outros atores com interesses escusos, situação tristemente comum naquela nação.

Outro esclarecimento significativo refere-se ao mosaico étnico que compõe a população. Especialistas identificam mais de 80 etnias presentes, aspecto peculiar também eventualmente manipulado por grupos armados e outros "senhores da guerra", com influência, direta ou indireta, na criação de clivagens no bojo do povo centro-africano. No entanto, não há "ódios étnicos" genuínos no seio da população. Testemunhei ambas as conclusões, ao atuar funcionalmente em confrontos que se iniciaram entre facções do mesmo grupo armado Ex-Seleka, tendo uma delas aliado-se, posteriormente, a grupos Anti-Balaka.

Quanto às alegações da presença de grupos terroristas na RCA ou da ligação de grupos armados do país com o terrorismo internacional, verifica-se a total ausência de qualquer dado concreto ou mesmo de indício de sua comprovação, sendo a possibilidade de ocorrência de atentados em quaisquer outros países, como eventual retaliação por atuação no conflito, julgada extremamente improvável por estudiosos do tema.

A vivência de um ano na República Centro-Africana foi repleta de ensinamentos pessoais e profissionais. O profundo respeito à capacidade de subsistência do povo centro-africano foi um dos mais significativos. Uma grande lição de resiliência e crença em dias melhores no porvir.

Comentarios

Comentarios
Parabéns pelo cumprimento da missão! Muito interessante sua abordagem! Grande abraço! Ricardo Serrazes
Como fasso para entrar para o exército eu já mi alistei mais fui dispensado .
Ótimo texto! Obrigado por compartilhar um pouco da sua experiência na RCA.
Parabéns pela missão e pelo relato apresentado. Seria interessante para todos os brasileiros uma versão maior com dados e mapas. Pois poucos sabem onde fica a RCA.
Você pode fazer concurso para algumas das escolas como a Escola Preparatória de Cadetes do Exército(EsPCEx) ou a Escola de Sargentos das Armas(EsSa).
Parabéns Ten Cel. O Sr. nos proporcionou excelente aula de História, Geografia e Sociologia, numa admirável síntese. Além de louvável sensibilidade aos sofrimentos de tão infeliz nação. Nada supera a experiência `in loco`, muito além do conhecimento meramente livresco e jornalístico. E afirmo isto com propriedade, com minha carreira de mais de 25 anos como professor de História no Ensino Médio. Vou indicar seu texto aos meus alunos. Pois, se o Brasil participar da MINUSCA , precisamos nos informar. Obrigado ! René C. Fragoso
Conheço bem o tenente coronel Luiz Claudio pois antes de seguir a carreira militar eramos vizinhos de longa data em Brasília.A carreira militar o obrigou a inúmeras mudanças o que nos afastou um pouco mas não impediu que mantivéssemos contatos via digital. Quando da sua partida para a RCA já sabia que a missão seria um sucesso, como de fato foi. Lendo o seu artigo dá para ter uma visão bem ampla do que encontrou naquele país e a situação de vida do seu povo. Parabéns pelo sucesso da missão e pelo excelente texto.
Excelente postagem, Ten. Cel. Muito esclarecedor e importante seu relato da triste realidade da RCA, país este pouquíssimo conhecido entre nós, brasileiros. A presença do Exército Brasileiro neste país é capaz de mudar, ainda que temporariamente, a vida da população da RCA.
Prezado Ricardo Serrazes, Agradeço o comentário e ensejo sucesso na missão ora em curso. Abraços!
Uma excelente aula sobre a RCA, da qual muito e se fala e muito pouco se conhece. Foi bastante exclarecedor.
Caro Tassio, Muito obrigado pelos cumprimentos sobre a missão e pelo comentário sobre o texto. Agradeço também a sugestão, que será analisada com base na aceitabilidade de fotos e mapas pela plataforma utilizada.
Caro Rodrigo Oliveira, Agradeço o interesse pela leitura do texto e as palavras expressas em seu comentário.
Prezado Professor René Chiari Fragoso, Muito obrigado por seu gratificante comentário, particularmente motivador por ser embasado em sua grande experiência no nobre exercício do magistério. Agradeço de antemão, ainda, a indicação do texto a seus alunos a quem desejo sucesso no prosseguimento dos estudos. Atenciosamente, Luiz Claudio T. Azeredo
Sr Ten Cel TALAVERA, parabéns pelo texto, que esclarece muito sobre nossa curiosidade sobre o Ambiente Operacional, que provavelmente iremos travar contato no futuro próximo. Entender os aspectos do terreno e do campo humano da RCA me motivou, um pouco mais, a me voluntariar para a nobre missão de defender a bandeira do Brasil e da ONU no continente africano. Saudações ao estimado amigo e que o Sr dos Exércitos continue abençoando sua carreira e família! Cap THIAGO BARROS
Parabéns pela missão e pelo texto esclarecedor, Ten Cel! Saudações cavalarianas!
Muito Obrigado pelas palavras amigáveis! Abraços.
Caro Asp Bernardes, Grato pelo interesse na leitura do texto e pelas palavras expressas em seu comentário. Brasil !
Prezado Cap Thiago Barros, Satisfeito em restabelecermos contato por intermédio desta canal de comunicação, agradeço as gratificantes e animadoras palavras e expressas no seu comentário. Saudações a você e à sua família. Forte abraço. Selva! Brasil!
Grato pelo acesso ao texto e pelo seu comentário!
Prezado Cap Cav Leandro Rocha Souto, Agradeço o acesso ao texto e o comentário ! CAVALARIA !
Caro TC Luiz Claudio, parabéns pelo êxito alcançado na missão no período de uma ano e pela abordagem muito esclarecedora que o senhor nos trouxe! Gostaria de saber se já há uma estrutura física (Base) semelhante a que tínhamos no Haiti e também sobre o relacionamento (interação) da MINUSCA com a população, bem como o nível de aceitação dessa intervenção da ONU no cotidiano da população? Paulo Souza
Prezado Paulo Souza, Preliminarmente, agradeço as cordiais palavras sobre a missão e sobre o texto. Com relação às suas perguntas, inicialmente respondo que sim, há bases da ONU na RCA a exemplo do que ocorria no Haiti. Em função da grande área do país, há diversas bases ao longo do território para aproximar o suporte da ONU às várias regiões da RCA. Finalmente, o relacionamento da MINUSCA com a população pode ser classificado como bom, não sendo identificadas reações negativas ao apoio da ONU à RCA por parte da grande maioria da população do país.
Agradeço ao leitores pelos acessos realizados, em especial a todos os comentários pelo valor que agregaram ao texto. Muito Obrigado!
Mtas FELICIDADES... Parabéns pela resiliência e abnegação no cumprimento dessa árdua missão... SELVA!!!
Parabéns pelo texto! Muito esclarecedor! Cordial abraço!
Prezado Luiz Cláudio Talavera de Azeredo! Ao cumprimentá-lo quero externar minha satisfação ao ler um texto claro e abrangente que possibilita dá uma excelente noção da RCA. Sua experiencia em campo, o qualifica para produzir uma matéria com lastro e desprovida de achismos. Parabéns pela missão! Parabéns pelo texto!
Selva TC Talavera. Parabéns pelo texto!
Meu nome é Clysberth Araújo, ex combatente do EB, atualmente Policial Militar de Minas Gerais. É com profunda admiração que lhe parabenizo pelo trabalho que realistaste Senhor Comandante. Li seu texto e conheci um pouco da situação não fácil de uma nação que sofre tantas com inúmeras tribulações. Mas dou graças a Deus que existem pessoas como senhor que lhes levou um pouco de dignidade! Meus sinceros agradecimentos!
Excelente o Texto... fui a RCA lendo seu texto. Uma missão dessa marca nossas vidas. Parabéns!!!

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