Desde a década de 90, a Organização Mundial de Saúde (OMS), alarmada com os altos números de suicídios no mundo, aproximadamente 800.000 por ano (1) e a tendência crescente destes, declarou ser o suicídio um problema de saúde pública, sugerindo a seus Estados-membros que empreendam ações de prevenção, visando diminuir a preocupante epidemiologia. Dentre os países que se comprometeram a efetivar estas ações, o Brasil foi um dos signatários, no entanto, os números de suicídios no Brasil, não obstante ao compromisso firmado com a OMS, continuam sua rota ascendente (2), indicando que o desafio ainda está distante de ser vencido por aqui, sendo necessário refletir e repensar acerca das campanhas e ações que se realizam, que ainda não conseguiram deter a tendência crescente de autoextermínios que assola o Brasil e, em particular, a nossa população mais jovem, pois, no Brasil, as mortes por suicídio entre jovens de 15 a 29 anos constituem a 4ª principal causa de morte (3).
O suicídio é um fenômeno complexo, multideterminado e multifatorial, traz em seu bojo a questão do tabu (4) que dificulta o diálogo social responsável e informativo, condições necessárias à sensibilização e engajamento por parte da população a fim de lhe fazer frente. O enfrentamento de qualquer problema de saúde pública só ocorre com a indispensável informação às pessoas. Estudos na área apontam para a eficácia de um tripé de prevenção estabelecido com três grandes ações: dar consciência, estabelecer competência e incrementar canais amplos de diálogo sério e responsável.
Neste sentido, o Exército Brasileiro (EB) se engaja neste movimento, considerando que é a maior Instituição nacional em número de pessoas, conta com mais de 210 mil militares da ativa, somando-se, servidores civis, veteranos e dependentes destes, temos mais de 750.000 pessoas no que chamamos de Família Militar.
Face à problemática do suicídio no Brasil, o qual também atinge, nefastamente, a Família Militar e, em função de uma profunda preocupação social, tanto com seu pessoal, quanto com a sociedade em que está inserido e da qual é parte, o EB, através de sua Diretoria de Assistência ao Pessoal (DAP) lançou uma ferramenta pioneira no enfrentamento do suicídio, a Capacitação Pergunte, Escute e Leve (Capacitação PEL). Tal ferramenta está em harmonia com as recomendações mais recentes da Associação Internacional para a Prevenção do suicídio (IASP), cujo lema de campanha em 2023 é “Criar esperança através da ação”.
A DAP, sensível aos problemas afetos à saúde mental e ao bem-estar psicológico da Família Militar, entendendo que estes fatores são indutores do poder de combate da Força Terrestre, e que uma organização se faz primordialmente de pessoas e, que estas são sua última razão de existência, desenvolve o Programa de Valorização da Vida (PVV) e inserido neste, o Eixo de Prevenção ao Suicídio. Diversas ações se inserem neste eixo de atuação e, no segundo semestre de 2023, foi disponibilizada a Capacitação PEL, um valiosíssimo instrumento para uso e difusão nas diversas Organizações Militares (OMs) do Exército.
A Capacitação PEL compreende uma instrução programada, que tem caráter teórico e prático. Ensina o que fazer e prescreve a prática imediata para a fixação das ações. Trata-se de um caderno de orientações que traz em seu conteúdo todas as ações necessárias para o desenvolvimento de uma eficaz capacitação. Traz ainda uma curta palestra, já estruturada, pronta para uso e, diversos materiais de apoio. Tanto a palestra quanto os materiais de apoio são de facílima aquisição no sítio eletrônico da DAP e estes últimos podem ser impressos rapidamente em impressoras comuns nas OMs, o que torna a aplicação e o uso da Capacitação fácil, ágil e de baixo custo, não obstante a ser instrumento que promete e se espera, ser de alta eficácia prática.
A Capacitação deve ser desenvolvida nas OMs, preferencialmente pelos Adjuntos de Comando (Adj Cmdo), ou Militares de Ligação do Sistema de Assistência Social do Exército, estes atores são militares que estão inseridos na rede de apoio socioassistencial do EB e um, outro ou ambos, estão presentes em todas as OMs da Força. No Caderno de Orientações, estes instrutores encontram o roteiro completo sobre o que fazer e como fazer, desde a preparação até as ações posteriores à Capacitação, envolvendo dicas sobre o que, e como falar, o que deve ser abordado e prevê diferentes práticas, o que a torna dinâmica, envolvente e eficiente. Tal abordagem é pioneira em seu método sistematizado teórico-prático e prevê que se aprenda a fazer e que se faça a prática para aprender a fazer.
A Capacitação tem a duração prevista de noventa minutos e visa sensibilizar prioritariamente frações já constituídas de valor Pelotão, sendo recomendado que o número de instruendos seja de 8 a 30. Espera-se que o desenvolvimento da Capacitação se beneficie da interação e conhecimento preexistentes no grupo de trabalho, ao mesmo tempo em que também incremente, de forma paralela, a coesão grupal e o espírito de corpo dos grupos, fatores de proteção à saúde mental.
Abordam-se na Capacitação os fatores de risco e de proteção, bem como os sinais de alerta considerados no fenômeno do suicídio, sempre enfatizando a possibilidade de que o reconhecimento destes deve propiciar a abertura para se oferecer e pedir ajuda em momentos difíceis. Caracteriza-se de forma sensível e humana a necessidade de empatia para com o próximo, bem como alertando para o risco da estigmatização, marca social que define o seu portador como desqualificado ou menos valorizado, ou inabilitado para aceitação social plena. Desta forma, fomenta-se a aceitação de si e do próximo na dimensão humana plena, combatendo o estigma, prevendo o amparo e apoio no adoecimento e o necessário cuidado por parte da Instituição e, por conseguinte, das pessoas e para as pessoas que a compõem.
As ações PEL, Pergunte, Escute e Leve referem-se às ações básicas necessárias e possíveis de serem executadas pelo individuo comum, sem formação específica em saúde mental, em qualquer lugar e de forma objetiva e imediata. A Capacitação traz a possibilidade de reconhecer os sinais de alerta e agir correta e oportunamente. Assim, a Capacitação PEL ensina o que se deve fazer:
Pergunte: corresponde a saber, a ter o conhecimento para perceber a crise e com este conhecimento, mostrar interesse no próximo, atentar-se a seu semelhante, ser sensível, perspicaz e agir oportunamente, perguntando sobre a dor e a aflição do próximo.
Escute: ação terapêutica e estratégica, tanto de alívio da dor do próximo quanto de se ganhar tempo, diminuindo a impulsividade suicida. É de reconhecida validade terapêutica o alívio da dor e da angústia psíquica através da fala. Tendo em vista que a literatura cita dentre os principais sintomas do indivíduo em crise suicida os 3 Ds: desamparo, desesperança e desespero. Propiciar a fala de alguém que sofre uma das piores, senão a pior dor que um ser humano pode experimentar: o pensar em ser o autor de sua própria morte, pelo angustiante sofrimento por que ora passa, dá a esta pessoa a possibilidade de conexão, amparo, esperança e pode arrefecer o desespero. Tudo isto ocorre ao mesmo tempo que se obtém um tempo tão importante para que a impulsividade suicida possa diminuir seu ímpeto, sim, pois esta geralmente tem uma duração aguda não muito longa, assim, ganhar tempo numa crise suicida salva vidas.
Leve: Por fim, após perguntar, e escutar, conduza a pessoa em sofrimento agudo a uma instância de possibilidade de ajuda superior. A Capacitação indica esta rede de apoio e como acessá-la. Esta começa no interior da OM, com o próprio adjunto de comando e os superiores hierárquicos, prossegue no Serviço de Assistência Religiosa do Exército (SAREx), nas Seções de Assistência Social (SAS) que têm pessoal especializado, psicólogos e assistentes sociais, e fora do Exército, nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e no Centro de Valorização da Vida (CVV), através de diferentes canais, sendo o mais conhecido o telefone 188 do CVV, tudo isto dentre outras possibilidades. Busca-se indicar de forma sensível, empática, objetiva e prática que a despeito da dor e da possível falta de perspectivas aparentes, existe a possibilidade de ajuda, existe um sistema formado por pessoas que se importam e o EB, através da DAP trabalha sem tréguas com diferentes ações e em diferentes frentes com vistas a sensibilizar e capacitar, para formar uma grande rede de ajuda, próxima e acessível.
Através da Capacitação PEL e de outras ações, todas disponíveis no site da DAP, o EB presta, não somente à Família Militar, mas à sociedade em geral, uma valiosíssima contribuição ao enfrentamento deste grave e pungente problema de saúde pública, ao qual o enfrentamento requer, informação, capacitação, sensibilização e ação, pois, citando o filósofo italiano Francesco Orestano: “O suicídio demonstra que na vida existem males maiores do que a morte”, mas para estes, um olhar capacitado, atencioso e oportuno é uma iniciativa bem-vinda que corrobora o juramento dos militares no trecho em que determina “...tratar com afeição os irmãos de armas, e com bondade os subordinados...” Cuidar da vida é o maior ato de amor e atenção possível.
PS: Se de alguma forma você precisa de ajuda emocional ou conhece alguém que precise, entre em contato com alguém da Rede de Apoio da SAS da sua Região Militar, ou ligue gratuitamente para o CVV através do telefone 188, ligação gratuita, 24 horas por dia – Nós podemos te ajudar.
Referências:
(1) ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Menthal Health Atlas. Genova: WHO, 2020
(2, 3) MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico nr 33 –– Vol 52 – Setembro 2021
(4) BOTEGA, N. Crise Suicida, avaliação e manejo. Porto Alegre. Ed. Artmed. 2015
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