Pandiá Calógeras, além do Ministério da Guerra

Autores: Coronel R1 Carlos Mário de Souza Santos Rosa
Segunda, 30 Outubro 2023
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Das muitas efemérides que o ano de 2022 possuiu e cuja comemoração foi eclipsada pelo Bicentenário da Independência, uma em especial toca o Exército Brasileiro, os 100 anos do término da gestão do primeiro civil nomeado Ministro da Guerra no período republicano, João Pandiá Calógeras.

A passagem de Calógeras à frente da Pasta da Guerra já motivou inúmeras análises e ainda hoje é motivo de admiração. O presente artigo tem um escopo diferente: apresentar o homem além do ministro.

Nascido em 19 de junho de 1870 na cidade do Rio de Janeiro, filho de Michel Calógeras e de Júlia Ralli Calógeras, neto de franceses e de descendência grega, Pandiá Calógeras teve esmerada educação, recebida de preceptores alemães e do Colégio Pedro II, onde ingressou aos 14 anos.1

Em 1890, formou-se em Engenharia na Escola de Minas de Ouro Preto (MG), atualmente integrante da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), tendo obtido o primeiro lugar em sua turma de formação 2, iniciando sua carreira profissional em Santa Catarina, onde realizou estudos relativos à extração de manganês na localidade de Cariguaba.

No ano seguinte, casou-se com Elisa Guimarães, companheira de toda sua vida, tendo o casal se radicado em Minas Gerais.

Em 1892, realizou pesquisas na Serra do Gandarella, no coração do Quadrilátero Ferrífero, destinadas a verificar o aproveitamento das jazidas de mármore existentes na região. Entre 1894 e 1897, ocupou o cargo de consultor técnico da Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas de Minas Gerais. Naquele mesmo ano, iniciou sua vida parlamentar, sendo eleito para Câmara dos Deputados Federais pelo Partido Republicano Mineiro (PRM), logo se destacando dos seus pares pelos sólidos argumentos que utilizava em suas intervenções.

Em uma legislatura onde abundavam advogados, sua formação em engenharia permitiu que examinasse as questões sob um viés técnico.

De sua primeira passagem pelo Legislativo Federal, destaca-se seu posicionamento sobre a questão de limites com a Guiana Francesa, então em andamento3, iniciando com isso seu envolvimento com os assuntos de segurança.

A despeito de sua atuação, não foi reeleito em 19004, só retornando à Câmara em 1903, no mesmo ano em que publicou uma das suas obras mais importantes e que até hoje influencia a legislação brasileira sobre o tema: "As minas do Brasil e sua legislação."

Sua tese, de que a mina constitui propriedade distinta do solo, sendo alienável isoladamente, mais tarde, tornou-se legislação, o Decreto 2.933, de 6 de janeiro de 1915.

Em seu retorno à Câmara, posicionou-se favoravelmente à solução proposta pelo Barão do Rio Branco à Questão do Acre, o que lhe valeu o reconhecimento do distinto diplomata e o convite para integrar a delegação brasileira, por ocasião da III Conferência Pan-Americana, realizada em 1906 no Rio de Janeiro.

Naquele mesmo ano foi reeleito Deputado Federal, aprofundando o seu envolvimento com as questões castrenses.

Eleito mais uma vez em 1909, não obteve licença da Câmara para integrar a delegação Brasileira que compareceu à IV Conferência Pan-Americana, realizada em Buenos Aires.

Prosseguindo em sua carreira parlamentar, foi eleito mais uma vez em 1912, quando governava o Brasil o Marechal Hermes da Fonseca, a quem passou a fazer oposição, em face da Política de Salvações 5 que seu governo adotara.

No ano seguinte, ao discutir o Orçamento da Guerra, confirmou a sua reputação de primeira figura do Parlamento em assuntos militares, recebendo apoio de um grupo de jovens oficiais que passaria à História sob a denominação de Jovens Turcos6 e que utilizava como instrumento de divulgação e propaganda de suas ideias à revista A Defesa Nacional:

"O eminente Sr. Pandiá Calogeras, propondo, pois na discussão parlamentar 50.000 praças de pret para efetivo permanente do exército atual não fez idealismo, mas provou que tinha estudado, nos seus menores detalhes, a lei militar em vigor e falava neste assunto com pleno conhecimento de causa."7

Eleito Presidente em 1914, Venceslau Brás trouxe-o para o Executivo, nomeando-o Ministro da Agricultura, Indústria e Comércio. De novembro de 1914 a julho do ano seguinte, o tempo que permaneceu à frente da pasta, empreendeu um hercúleo trabalho de reorganização dos departamentos, fixação das bases do crédito agrícola e iniciou estudos para a utilização do uso do álcool como substituto da gasolina, em virtude de problemas de abastecimento causados pela Primeira Guerra Mundial.

Em julho de 1915, assumiu interinamente a pasta da Fazenda em virtude do afastamento do titular, por motivo de doença, acumulando-a, juntamente, com a da Agricultura. À frente da Fazenda, deu mostras do acerto de sua escolha, reorganizando a Casa da Moeda, regularizando a dívida flutuante8e promovendo um acordo com os credores estrangeiros que impediu o controle daqueles sobre as alfândegas brasileiras.

Reconduzido à Câmara em 1918, recebeu do Presidente eleito, Rodrigues Alves, a missão de relatar a situação do Estado Brasileiro, o que fez produzindo a obra Problemas da administração”.

O término da 1ª Guerra Mundial, naquele mesmo ano, ocasionou a convocação da Conferência de Paz de Versalhes no ano seguinte. Os conhecimentos relativos à política exterior qualificaram sua escolha para integrar a delegação brasileira, chefiada pelo senador Epitácio Pessoa.

Com a eleição de Epitácio Pessoa para Presidência da República, durante a conferência e seu consequente retorno ao Brasil, Calógeras assumiu a chefia da representação nacional.

Deputado em várias Legislaturas, representante do Brasil em conferências internacionais, ministro de duas pastas, connoisseur de assuntos militares, colega de partido do Presidente da República, simpático à Oficialidade9, tudo o indicava como futuro titular da Pasta da Guerra.

O futuro chegou no dia 3 de outubro de 1919 com sua nomeação.

Depois do Ministério

Tendo recebido a pasta de Alfredo Pinto Vieira de Melo, ministro da Justiça e Negócios Interiores do governo eleito, civil que interinamente acumulou a chefia do Ministério da Guerra até a sua chegada da Europa, Calógeras entregou-a ao futuro Marechal Fernando Setembrino de Carvalho em 15 de novembro de 1922, após um período rico em realizações.

Afastando-se da vida pública entre 1923 e 1930, presidiu a Companhia Nacional de Artefatos de Cobre (Conac) e a Sociedade Brasileira de Engenheiros, bem como foi Conselheiro do Mackenzie College.

A despeito dessas variadas atividades profissionais, a grande marca dessa quadra foi sua profícua produção intelectual.

Anteriormente, havia colaborado com periódicos como a Revista Brasileira e o Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, assim como publicados os já citados "As Minas do Brasil e sua legislação" e "Problemas de administração", bem como "O meteorito de Santa Catarina", "Le fer nicklé de Sainte Catherine", "La Politique monetaire du Brésil","Jesuítas e o Ensino", "Novos rumos econômicos""Rio Branco e a política exterior " e "O Brasil e a Sociedade das Nações".

Amadurecido como homem público e intelectual, Calógeras escreveu a maior parte de suas principais obras após seu retorno à vida privada, com manifesto destaque para "A política exterior do Império", "A união brasileira", "A Ordem de São Bento e a civilização", "Problemas de governo", "Formação histórica do Brasil", "Conceito cristão do trabalho", "Problemas de administração", "Estudos históricos e políticos (Res nostra)", "O marquês de Barbacena", "Ascensões d’alma (uma página íntima)", angariando lugar permanente na Cultura Brasileira.

Na eleição presidencial de 1930, diante da ruptura da Política do Café com Leite decorrente da indicação do paulista Julio Prestes à presidência por Washington Luís, acompanhou a bancada mineira, apoiando o candidato da Aliança Liberal, Getúlio Vargas.

Como já era esperado, no sistema eleitoral da República Velha, a candidatura de Vargas foi derrotada, deflagrando a chamada Revolução de 1930. Na iminência de uma guerra civil, os militares constituíram uma Junta Governativa Provisória, sendo Calógeras convidado a tomar parte nesta, convite que declinou.

Instituído o Governo Provisório em 3 de novembro de 1930, Calógeras foi nomeado relator do projeto sobre legislação de minas nas comissões legislativas então instituídas e membro da Comissão de Estudos Financeiros e Econômicos dos Estados e Municípios.

No ano seguinte, recebeu novo reconhecimento de sua competência como gestor: foi convidado pelo Interventor de Minas, Olegário Maciel, para estudar a reforma tributária daquela unidade da Federação.

Em 1932, o Cardeal Leme10 criou a Liga Eleitoral Católica (LEC), com o objetivo de mobilizar o eleitorado católico para que este apoiasse os candidatos comprometidos com a Doutrina Social da Igreja nas eleições de 1933 para a Assembleia Nacional Constituinte e de 1934 para a Câmara Federal e as assembleias constituintes estaduais. Buscando respaldar a nova entidade com um nome de peso na vida nacional, convidou e obteve a concordância de Calógeras, católico praticante, em assumir o cargo de Presidente Nacional da Liga.

A despeito de seu papel quase honorífico na LEC, a reputação de competência e probidade em torno do seu nome, aliada à liderança do Cardeal Leme permitiram que a maioria das reivindicações, tais como a assistência espiritual nos estabelecimentos oficiais e militares, a validade civil do casamento religioso, a previsão de instrução religiosa dentro do horário escolar, o direito ao voto dos membros das ordens religiosas, a subvenção das escolas católicas e a proibição do divórcio fossem acolhidas na Constituição de 1934.

 Na eleição da Assembleia Constituinte de 1933 que elaborou aquela Carta, Calógeras teve a consagração de sua vida parlamentar e o reconhecimento popular por anos de ilibada conduta: concorrendo por Minas Gerais na legenda do Partido Progressista (PP), obteve a maior votação até então alcançada no Brasil por um candidato a deputado federal.

 Preterido por Getúlio para o cargo de Interventor de Minas Gerais no mesmo ano em que foi eleito constituinte, dedicou-se aos seus deveres parlamentares com a conhecida diligência.

 Encontrava-se neste mister, quando faleceu em Petrópolis, mais precisamente no Sanatório São José, anexo ao Hospital Santa Tereza, onde se achava em tratamento, às 20:30 horas do dia 21 de abril de 1934, a menos de 100 (cem) dias de apor sua assinatura na nova Constituição.11

"Ministro para qualquer pasta em qualquer país do mundo", conforme um dos seus contemporâneos12, João Pandiá Calógeras nomeia o Instituto vinculado ao Ministério da Defesa que tem a missão de produzir análises, promover o diálogo e estimular a produção de conhecimento sobre temas de interesse da defesa nacional, unindo civis e militares.

 Uma justa homenagem a um Grande Brasileiro.

 

1 FGV CPDOC. 2023. Disponível em <https://www18.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/joao-pandia-calogeras> Acesso em 30 de abril de 2023. Robert Pechman. CALÓGERAS, Pandiá.

2 LOPES, Sílvio Fernandes. João Pandiá Calógeras (conferência). Revista de História. Rio de Janeiro. Vol. XXII. N.° 46. .p292. Abril-Junho 1961

3 Foi uma disputa territorial levantada entre a França e o Brasil, sobre a questão da delimitação da fronteira entre a Guiana Francesa e o estado brasileiro do Amapá. A questão foi solucionada por arbitragem. O árbitro, presidente Walter Hauser da Suíça, deu ganho de causa ao Brasil.

4 As eleições parlamentares se davam de 2 em 2 anos.

5 Política de Salvações foi implantada pelo Presidente Hermes Rodrigues da Fonseca com o objetivo de moralizar a vida pública nacional, intervindo em estados da federação contra oligarquias locais.

6 Designação dada a um grupo de oficiais brasileiros que a partir de 1913 se destacou por seu engajamento no processo de modernização do Exército. Tomou emprestado o nome de uma coalizão de diferentes grupos que tinham em comum o desejo de reformar o governo e a administração do Império Otomano.

7 SOUZA REIS, Joaquim. O Efetivo E a organização do Exército. Defesa Nacional. Rio de Janeiro.  nº1 ano 1. Pag 3 a 6. 10 de outubro de 1913.

8 Compromisso exigível cujo pagamento independe de autorização orçamentária. São exemplos: restos a pagar, operações de crédito por antecipação de receita e depósitos.

9 DE CARVALHO, Antonio Gontijo. Calógeras e a sua obra. (conferência). Defesa Nacional, pag 39. 42 e 43. Nov./1956

10 Sebastião Leme da Silveira Cintra, nascido em Espírito Santo do Pinhal, a 20 de janeiro de 1882 e falecido no Rio de Janeiro em 17 de outubro de 1942, foi o segundo cardealbrasileiro. Foi Arcebispo de Olinda e Recife e Arcebispo do Rio de Janeiro.

11 A Constituição Brasileira de 1934, promulgada em 16 de julho pela Assembléia Nacional Constituinte de 1932.

12 LOPES, Sílvio Fernandes. João Pandiá Calógeras (conferência). Revista de História. Rio de Janeiro. Vol. XXII. N.° 46. .p293. Abril-Junho 1961.

Comentarios

Comentarios
Gostei muitíssimo do texto!
Bom texto e bem explicativo.
É de uma riqueza tamanha, tal artigo. Parabéns muito bom....
agradável e rica de detalhes históricos, alimenta o interesse pela leitura
Artigo impecável!
Boa tarde...era soldado em 2004 e tenho orgulho de ter tido este homem na época como nosso capitão... exemplo de líder espero que ele veja este recado

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