Os papéis funcionais do comandante (parte II)

Autor: General de Brigada R1 Severino de Ramos Bento da Paixão

Segunda, 20 Novembro 2023
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Em artigo anterior (releia o artigo), foi apresentada ao leitor a perspectiva de que, no processo cíclico de transformação de Organizações Militares (OM) operacionais da situação de guarnição para a de campanha, os comandantes de OM nível unidade e subunidade desempenham cinco papéis funcionais: líder militar, arquiteto, sacerdote, governante e chefe militar.

 Após ter refletido sobre o discorrido no texto anteriormente publicado, acerca do papel funcional de líder militar, descortinemos agora o seu desempenho como arquiteto e sacerdote.

Papel de arquiteto

Para compreender este papel de modelador do espírito humano de sua OM, faz-se necessário recorrer à obra “Homens ou Fogo?" do historiador militar Marshall. Vejamos a sua apreciação da ação de comando sob o fogo do inimigo:

“Nenhum comandante pode, na realidade, conduzir a sua Cia como um todo no combate, pois a dispersão dos meios e a grande variedade dos problemas que tem a resolver, somados, ultrapassam a amplitude de qualquer homem.[1]”(grifo nosso)

Partindo desta afirmação, parcela da solução para este problema em combate advém da ideia de que o comando é uma ação a ser compartilhada[2] com alguns integrantes da OM, uma vez que a dispersão da tropa pode ocorrer com situações de rompimento da ligação e das comunicações.

Dessa forma, o comandante deve, semelhante a um arquiteto[3] diante de um projeto para a construção de uma casa, planejar o desenho do espírito de sua OM, verificando a funcionalidade das suas partes e atribuindo aos seus comandados as tarefas para as quais são mais capazes. Para unir as partes, deve fomentar a camaradagem e a lealdade, esta para com a verdade e a decência, tudo como forma de amálgama ético e moral. E, por fim, para fortalecer seus alicerces, determinar[4] quais dentre seus comandados revelam qualidades morais de líderes quando sob o fogo do inimigo.

Encontrados tais líderes, deve o comandante encorajá-los, educando-os e apoiando ao máximo os seus esforços. Eles devem ser distribuídos em todos os escalões da sua OM para que, nos momentos de dispersão em que as comunicações não sejam possíveis ou claras, tenham a iniciativa necessária para prosseguir com suas frações no combate. Iniciativa, por seu turno, atrelada à vontade do comando, segundo o entendimento claro da sua intenção.

Quanto à ação educativa do comandante voltada para o desenvolvimento do suporte psicológico coletivo da camaradagem, vale ressaltar o traço horizontal nela contido da relação afetiva entre o combatente e o seu companheiro-soldado. Relação que o anima a enfrentar o medo descontrolado da morte[5], além de, evidentemente, promover os laços psíquicos constituintes do espírito de corpo na OM. Enfim, como bem nos assevera a doutrina imemorial militar, é a presença certa ou suposta de um camarada[6], um ponto humano de apoio em meio ao caos, que faz o combatente ter iniciativa e enfrentar o perigo.

Papel de sacerdote

A etimologia da palavra “sacrifício”- sacrum facere, realizar o sagrado - tem um significado assim expresso por Douglas Hedley:

“Nos tempos antigos, os sacrifícios eram concebidos como formas de 'realizar o sagrado', e a implicação disso era que éramos nós que dávamos a santidade ao mundo, através das coisas que fazíamos.[7]”(grifo nosso)

Compreendendo o exposto, verifica-se que existem momentos na existência da OM nos quais o comandante desempenha o papel funcional de sacerdote, uma vez que preside ritos, em outros termos, realiza com sua autoridade, presença, atitude e palavras o culto ao sagrado.

Um dos ritos mais importantes para o EB é o de passagem, conhecido como “Juramento à Bandeira Nacional”. É um ritual no qual o sacrifício se apresenta como uma experiência comunal, unindo as pessoas ao redor de uma necessidade compartilhada, a de defender a Pátria. Vejamos as palavras contidas neste juramento:

Incorporando-me ao Exército Brasileiro, prometo cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores hierárquicos, tratar com afeição os irmãos de armas, e com bondade os subordinados, e dedicar-me inteiramente ao serviço da Pátria, cuja Honra, Integridade, e Instituições, defenderei com o sacrifício da própria vida.”(grifo nosso)

A Bandeira Nacional, como nos apresenta André Gavet, "é o emblema pessoal que a Nação confia a seus soldados para fazer-se presente entre eles e reanimá-los em certos momentos, como uma ordem imperiosa para cumprir o dever[8]”. Qual dever? O expresso no ato solene do juramento.

Ademais, é nesta cerimônia que o recruta passa a existir de fato e de direito como soldado, pois o ato de jurar expressa que ele tem, naquele momento, consciência de estar se vinculando ao Exército Brasileiro ao inserir-se no corpo da OM para a qual foi designado. Um ato selado pela sua promessa de cumprir as normas e princípios que regem a vida na caserna para, dessa forma, servir à Pátria.

Serviço esse que os soldados, perante seus pais e a comunidade, juram, se necessário for, a darem suas vidas nos tempos de guerra, a sacrificarem os seus confortos pelo bem da nação[9], melhor dizendo, para que a Pátria suporte o teste dos séculos[10].

Além de presidir ritos e cultuar os valores militares do Exército Brasileiro, outra atividade similar à desempenhada por um sacerdote é o ato de ouvir os seus subordinados, de compreender os seus problemas, ajudando-os a resolvê-los, visto que eles têm a necessidade humana de desabafar. Uma necessidade ainda maior quando sentem que foram fustigados na zona de combate[11].

De resto, portanto, o papel de sacerdote possibilita ao comandante operar no coração do soldado, pessoa que percebe que, durante o seu tempo de serviço, o País tem fé nele pela maneira como é tratado e compreendido por seus superiores. Como resultado, ele passa a crer na justiça de sua pátria. Uma crença que fará com que a OM suporte as perdas em combate[12].

 

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército (EME). Manual de Campanha C 20-10 Liderança Militar. 2. ed. Brasília, 2011. 87 p.

COUTINHO, Sérgio Augusto de Avelar (1997). Exercício do comando: a chefia e a liderança militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 274 p. (Coleção Taunay; v. 28).

COURTOIS, Gaston (2012). A arte de ser chefe. Tradução de Job Lorena de Sant’Anna. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 152 p. (Coleção General Benício).

GAVET, André (2018). El Arte de Mandar: Principios del mando para uso de los oficiales de todos los grados. Circulo Acton Chile Editores. 100 p.

MARSHALL, Samuel Lyman Atwood (2003). Homens ou Fogo? Tradução de Moziul Moreira Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 216 p. (Coleção General Benício; v. 394).

SCRUTON, Roger (2020). A Alma do mundo. Tradução de Martim Vasques da Cunha. 5. ed. Rio de Janeiro; Record. 236 p.

 

[1] Marshall, 2003, p. 64.

[2] Ibid., p. 64-65.

[3] Ibid., p. 156-159.

[4] Ibid., p. 65.

[5] Ibid., p. 40.

[6] Ibid., p. 44-45.

[7] Scruton, 2020, p. 200.

[8] Gavet, 2028, p. 18.

[9] Scruton, 2020, p. 204.

[10] Marshall, 2003, p. 171.

[11] Ibid., p. 120.

[12] Ibid., p. 166 e 167.

Comentarios

Comentarios
Obrigado pelos valiosos ensinamentos, Sr Gen Paixão. São registros intelectuais como esse seu artigo que ajudam a trazer luz e entendimento à realidade, contribuindo para avançarmos, em melhores condições, rumo à conquista de objetivos estratégicos.
O artigo escrito pelo Gen Paixão coloca o comandante numa posição privilegiada para que ele visualize os diversos papéis que desempenha no exercício do seu Comando. É abrangente, didático e muito bem embasado, especialmente quando envolve o emprego de forças no ambiente do caos, da morte e da destruição. É também inovador ao fazer uso de metáforas que assemelham o comandante a um "arquiteto" ou a um "sacerdote". Apreciei a sua leitura!!
Os Artigos que o Gen R1 Paixão tem externado neste importante canal de comunicação, tem contribuído grandemente para minhas vivências intelectual.

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