O vírus e a geopolítica

Autor: Coronel R1 Paulo Roberto da Silva Gomes Filho

Quarta, 18 Março 2020
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A pandemia provocada pelo novo Coronavirus, causadora da COVID-19, talvez seja a primeira crise de proporções realmente mundiais a ocorrer na era da internet, da instantaneidade da comunicação, da desinformação, das fakenews. É também uma crise sem precedentes, por sua escala e repercussões sociais, econômicas, políticas e, possivelmente, militares.

A instantaneidade e o volume das informações, muitas transmitidas por mídias sociais sem nenhum tipo de checagem quanto à veracidade, alarma as populações, que exigem de seus governantes repostas imediatas. Governos do mundo todo são desafiados a oferecer soluções, apresentando decisões e políticas públicas que protejam a saúde de seus cidadãos e minimizem os efeitos econômicos e sociais. Tais ações envolvem aspectos geopolíticos importantes, que devem ser considerados.

O aspecto do controle das fronteiras, por exemplo, mostra o enfraquecimento de organizações intergovernamentais, que se mostram incapazes de liderar iniciativas conjuntas para a solução da crise. Os países-membros da União Europeia, além de outros países europeus que não pertencem ao bloco, mas são signatários da Convenção de Schengen, deveriam garantir a livre circulação de pessoas por suas fronteiras. Assim, uma crise dessa natureza deveria implicar em uma solução concertada, que previsse soluções que não limitassem esse fluxo. Não é o que está acontecendo. Apesar do posicionamento contrário da Comissão Europeia, alguns países europeus, como Áustria, Dinamarca, Polônia, Eslováquia, República Tcheca e Malta, já decidiram restringir o fluxo de pessoas por suas fronteiras. Mas isso não acontece apenas entre os signatários do acordo de Schengen. A Rússia já fechou suas fronteiras com a Polônia (na Região de Kaliningrado), Noruega e China. O governo norte-americano proibiu voos internacionais da Europa continental para os EUA, por trinta dias. A Arábia Saudita proibiu todos os voos internacionais por duas semanas. Medidas semelhantes estão sendo anunciadas por outros países a cada momento. Na América do Sul, a Colômbia acaba de anunciar o fechamento de sua fronteira com a Venezuela.

A questão do trânsito de pessoas pela fronteira da Colômbia com a Venezuela alerta para um problema ainda maior. À crise da COVID-19 se junta a crise dos refugiados, em um efeito cascata. Há cerca de 1,5 milhões de migrantes venezuelanos na Colômbia. Em todo o mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), existem mais de 70 milhões de pessoas deslocadas, ou seja, pessoas forçadas a deixar suas regiões de origem por motivos de guerra, perseguição, violência e violação aos direitos humanos. Grande parte dessas pessoas vivendo em condições precárias, sem acesso a mínimas condições sanitárias. A incidência da COVID-19 nos campos de refugiados ao redor do mundo pode ter consequências terríveis.

A crise encontra o mundo em um momento em que o sistema internacional está assistindo ao acirramento da competição entre os EUA e a China. E, diferentemente de outras crises sanitárias ocorridas no passado, como a SARS, de 2003, ou a gripe aviária, de 2005, quando ocorreu uma grande cooperação internacional, no caso atual, ao contrário, a cooperação internacional, especialmente entre EUA e China, está bastante restrita. Na verdade, a crise está exacerbando as tensões geopolíticas já existentes entre as duas potências.

Na guerra pelo domínio da narrativa, a competição está acirrada. Na China, há uma campanha de propaganda nas redes sociais, em especial no WeChat (a versão chinesa do WhatsApp), culpando o ocidente e a CIA pela epidemia. No ocidente, ao contrário, ganham espaço as versões de que o vírus é uma estratégia chinesa para vencer a guerra econômica, deixando o ocidente de joelhos. Mas não se trata apenas de atribuir a um lado ou outro a culpa pela pandemia. Há que se demonstrar a superioridade gerencial na solução do problema. Nesse sentido, os chineses montaram uma campanha nos meios de comunicação, tentando provar que a resposta à crise demonstraria que a capacidade de governança chinesa seria superior àquela demonstrada pelo ocidente. Ao mesmo tempo, a China toma medidas práticas para demonstrar ser um país apto a auxiliar outros em dificuldade. A Itália, por exemplo, país ocidental mais severamente afetado pela epidemia até o momento, tem recebido suprimentos médicos e auxílio da China de forma muito mais eficiente do que aquele oferecido pela própria União Europeia ou por outros países do ocidente.

A ajuda chinesa à Itália, apesar de muito mais simbólica do que efetiva, contrasta com a postura isolacionista dos EUA. A decisão do país de suspender os voos da Europa para os EUA, tomada no meio da noite, de surpresa, causou um verdadeiro caos nos aeroportos europeus. Muitos países ficaram irritados, considerando que aliados não devem ser tratados dessa forma e que tal iniciativa deveria ter sido tomada em conjunto.

A pandemia da COVID-19 já é um daqueles eventos que impactam profundamente uma geração. Não apenas pela gravidade da crise sanitária, que afeta diretamente a vida de bilhões de pessoas em todo o mundo. Não apenas pelas consequências econômicas relevantes, que trarão repercussões ainda não precisamente estimadas. Também não exclusivamente por ser a primeira na era da comunicação instantânea, nem mesmo por somar-se às várias outras crises já existentes, em um terrível efeito cascata. Mas, também, pelo potencial efeito acelerador das mudanças geopolíticas em curso, especialmente aquelas que envolvem a competição entre China e EUA.

 

Comentarios

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A tese do bioterrorismo ( ou bio-intervenção) não deveria ser de todo descartada. A questão crucial a ser respondida é: A quem (ou a qual nação) no mundo poderia interessar a atual Pandemia? No campo político: EUA vive um momento político relacionado as suas eleições. Uma mostra de poder pela atuação governamental que corrobore políticas de isolacionismo, xenofobia e ufanismo poderiam unir seus eventuais eleitores pela comoção em prol de uma causa aparentemente legítima. Ainda no campo político: Países da UE tem passado por dificuldades para aprovação de reformas previdenciarias. A redução da populção maior de 60 anos poderia aliviar o problema....Na Russia o recrudescimento da Crise entre EUA e China poderia ceder espaço, a posteriori, para que aquela nação ampliasse suas estratégias de projeção do poder político e ideológico. Vê-se que embora extremamente contundentes não faltam interessados em um ataque bioterrorista. No campo Militar: Uma intervenção dessa natureza requer planejamento cuidadoso e tecnologia apurada. Os principais atores já citados detém essa tecnologia! Contudo ressalte-se que ao se lançar mão dessa "guerra suja" corre-se o risco do " feitiço virar contra o feiticeiro", ou seja o lançador deve possuir uma vacina ou antídoto capaz de mitigar os danos colaterais.e Ainda o desempenho do agente biológico, sua propagação, resultados e medidas tomadas pelos governos; serviriam de base de dados para um lançamento futuro com maior grau de letalidade.... No campo econômico: Os efeitos devastadores em escala global serão sucedidos a uma recuperação sustentada e com bases mais sólidas e centradas no poder de intervenção dos Estados. Já se Vê medidas nesse sentido sendo tomadas...O futuro dirá que sairá ganhando com a crise...mas não seria demais afirmar que aquela nação com maiores reservas e confiabilidade, bem como moeda forte tem uma excepcional oportunidade. Em apertada sintese podemos concluir que não é de todo impensável que a atual pandemia seja resultado de uma ação pensada engendrada por grandes atores do cenário mundial. Só nos resta nos adaptar e sobreviver a crise ou seremos extintos como os dinossauros!
Excelente artigo, focado dentro de uma visão geopolítica e estratégica, com a perspicácia do Cel Paulo, que sempre nos mantém atualizados nessas temáticas. Parabéns!
Parabéns Cmdo pela excelente análise do atual cenário mundial.....
Cel, obrigado por essa reflexão precisa do cenário geopolítico e estratégico atual. Parabéns!
Cel. Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, congratulações pelo excelente artigo. "Na guerra pelo domínio da narrativa, a competição está acirrada" Acusações recíprocas entre os EUA e a China que já travavam uma "guerra" comercial antes da pandemia nos alertam para observar com cautela e isenção. A princípio, chama a atenção que a China se esforce em demonstrar "boa governança" não só para a sua Nação, mas para o mundo. Solidariedade em épocas de crise é natural, mas, para além dos medicamentos e suprimentos que a China possa enviar para outros países, como bem demonstrado no artigo, as drásticas consequências econômicas desta pandemia estão ainda para serem avaliadas, sendo certo que "oportunismos" já se manifestam como, por exemplo, aumento abusivo de preços de produtos muito procurados como álcool em gel. Por outro lado, a desvalorização de empresas e negócios a níveis aviltados não deveria ser objeto de compra por alguma empresa ou corporação que se tenha por idônea e justa. Entretanto, essa crise está só começando e muito há para ser devidamente esclarecido.
Caro Coronel Gomes. Inegavelmente que estamos atravessando uma das maiores, quem sabe, a maior catástrofe no âmbito epidemiológico mundial. Justo nesse momento onde não existe ainda nenhuma luz no fim do túnel no que refere-se a um tipo de vacina capaz de neutralizar eficazmente essa grave pandemia, temos de conviver com outros fatores que servem somente para agravar esse quadro já amplamente aterrorizador. As "fakenews" somadas às disputas geopolíticas oportunistas deixam bem claro a intenção sinistra de atores diversos, disseminadores da cultura do quanto pior, melhor. Vemos campanhas sendo divulgadas a todo instante nas redes de comunicações diversas, para alertar e instruir a população quanto aos procedimentos a serem seguidos rigorosamente. Por outro lado aquela velha política rasteira já bem conhecida, continua com suas campanhas camufladas no sentido de abalar toda a governança, justo nesse momento quando somente uma união de forças ajudam a atenuar os efeitos dolorosos que estamos passando. O momento não é mesmo para fazer gracinhas, mas parece peça de humor negro ao assistir pelas tv’s, programas com auditórios lotados de telespectadores, na contramão dos fatos cujos mesmos canais de comunicações fazem exaustivamente o pedido para que todos não saiam de suas casas...
Agradeço o comentário!
Muito obrigado pelo comentário!
Coronel Paulo, ficou muito feliz que homens como O SENHOR existam no EB. Sua visão de mundo é muito sóbria. Como o senhor, penso em mudanças e oportunidades em meio à crise. Também como servidor público, considero que a prioridade de agora é proteger vidas. Parabéns pelo EXCELENTE texto que agrega e faz o leitor refletir sobre a verdade global.
Muito obrigado pelo comentário!
Agradeço os comentários, muito pertinentes!
Agradeço o comentário!
Ótimo artigo coronel. Parabéns.
Muito obrigado pelo comentário!
Muito obrigado pelo comentário!
Muito obrigado pelo comentário!
Muito obrigado pelo comentário!
Excelente artigo, coronel!!!!
A abordagem é lúcida ao discutir os impactos da pandemia nos países desenvolvidos, mas se ressente de trazer à luz os impactos em países localizados nos grotões do planeta, inclusive o Brasil. Por estes lados, o enfrentamento da crise envolve um aspecto relevante, a ausência quase geral de poupanças individuais, capazes de sustentar famílias durante as imprescindíveis medidas de distanciamento social e consequente esfriamento das atividades econômicas. A circunstância causa o conflito entre a necessidade de deter a transmissibilidade da epidemia, e a necessidade de sobrevivência de quem depende exclusivamente de seu trabalho diário para prover a subsistência de suas famílias. Por outro lado, auxílios emergenciais implicam despesas que o Erário não pode suportar sem apelar para o endividamento. Parece, portanto, previsível que ao término da pandemia, se acentuem as desigualdades externas e internas, uma perspectiva sombria para os meados do século. Há cem anos, o cenário também era sombrio, em decorrência da Primeira Guerra Mundial e, ironicamente, da pandemia de gripe espanhola.
Excelente artigo, rico em informações e sabedoria. Obrigado coronel

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