O paradigma do serviço militar no Brasil: obrigatório ou voluntário?

Autor: Cap R1 Francisco Leonardo dos Santos Cavalcante

Quinta, 26 Outubro 2023
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A integridade e a defesa territorial brasileiras são pontos recorrentemente abordados sempre que a temática soberania nacional entra em pauta. O protagonismo do Brasil na América do Sul está caracterizado por ser detentor de larga extensão geográfica que totaliza 1,4 milhão km², o equivalente a 16,6% do território brasileiro. A faixa tem 150 km de largura ao longo dos 15 mil km de fronteira com as nações vizinhas1.

Sem embargo, em que pese a Constituição Federal em seus princípios fundamentais reger os pressupostos de suas relações internacionais insculpidos no Art. 4º e seus incisos, especialmente, os que se referem à defesa da paz, à solução pacífica dos conflitos, à não-intervenção e à independência nacional, não se deve descuidar da manutenção permanente de sua capacidade de persuasão, bem como do poder de assegurar pronta resposta em caso de real ameaça (interna e externa) à Nação.

O contexto em que essa díade (espaço-proteção) se apresenta é bastante complexo e exige a troca da lente que vê no imediatismo estéril e pragmático um porto seguro para a tomada de decisões consideradas disruptivas ao contemplar o Serviço Militar Obrigatório (SMO). Via de regra, a defesa da narrativa que aponta para a adoção do Serviço Militar Voluntário (SMV) irrestrito é mediada por falsas expectativas de avanço econômico, político e social, fazendo-se necessário um olhar mais translúcido que permita projetar a visão de futuro protetiva do país no presente, sustentada não só pelo desenvolvimento tecnológico e seu corolário de dispositivos inteligentes, mas, sobretudo, na percepção de que nesse ecossistema o fator humano permanecerá decisivo.

Assim, impõe-se distinguir conceitualmente o SMO e o SMV a fim de que possa ficar claro para o leitor não habituado a esses termos, em que contexto se encaixa uma e outra modalidade desse serviço. Embora não seja o conceito em si, à luz da Constituição Federal/88, Art. 143, expressa o seguinte ordenamento: “o serviço militar é obrigatório nos termos da lei”. Corroborando esse entendimento, o artigo 1º combinado com o artigo Art. 2º da Lei do Serviço Militar (LSM) declaram, respectivamente:

Art. 1º - O Serviço Militar consiste no exercício de atividades específicas desempenhadas nas Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica [...]

Art. 2º - Todos os brasileiros são obrigados ao Serviço Militar, na forma da presente Lei e sua regulamentação.

De modo análogo, não se tem nos instrumentos regulatórios o conceito específico aplicado ao SMV, mas a menção no Art. 46, do Regulamento da Lei do Serviço Militar (RLSM) do que venha ser a figura do voluntariado:

Brasileiro que se apresenta, por vontade própria, para a prestação do Serviço Militar, seja inicial, seja sob outra forma ou fase [...]  

Eis, portanto, o fio condutor que motivou o presente ensaio, vale dizer, a tentativa de sistematizar, ainda que de modo introdutório o estado da arte do SMO em contraponto ao SMV, modelos dicotômicos de prestação do serviço militar que, de tempos em tempos, ganham projeção na trama que forma o tecido político-social brasileiro.

Preliminarmente, considera-se a genealogia do SMO no Brasil sob duas perspectivas, a histórica, que remonta ao [...] “Termo”, promulgado na Câmara de São Vicente, em 1542 2 e a regulatória, baseada na Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964 - Lei do Serviço Militar (LSM) e no Decreto nº 57.654, de 20 de janeiro de 1966, Regulamento da Lei do Serviço Militar (RLSM).

É bem verdade que nesse espaço temporal (1542-1964) diversas discussões vieram moldando o paradigma de obrigatoriedade do serviço militar que se tem nos dias atuais. Assim, houve momento em que a ideologia do voluntariado foi concebida como apropriada para a sociedade da época, em outra fase, o viés do sorteio era o que melhor se adequava às aspirações de um país em franco desenvolvimento.Mais tarde, essa mesma vertente foi defendida pelo poeta Olavo Bilac, promovendo o pensamento cívico nacionalista.

Cabe ressaltar que, do ponto de vista constitucional, o serviço militar constou na Carta Magna imperial (1824) de modo impositivo: (Sic) “Art. 145. Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a Independencia, e integridade do Imperio, e defendelo dos seus inimigos externos, ou internos” (grifei). De lá para cá, tal obrigatoriedade manteve-se em todas as constituições subsequentes (CF1981, Art.86; CF1934, Art.78; CF1937, Art.164; CF1946, Art.181; CF1967, Art.93 e CF 1988, Art.143), evidenciando que esse instituto é tão antigo quanto a “sombra” que o acompanha, frise-se, a narrativa aparentemente alvissareira de transmutar o SMO em SMV generalizado, posto que este já encontra amparo na LSM e no RLSM em casos específicos.

Grosso modo, a práxis de buscar experiências de melhores práticas percorridas por corporações congêneres no mundo dos negócios dá-se o nome de benchmarking, que nada mais é do que o velho e famoso “copiar e colar”, nesse caso, o desempenho superior do amigo, do vizinho ou do concorrente. Tal expediente é utilizado por diversas nações com o propósito de modelar condutas que deram certo e descartar prováveis vulnerabilidades em seus variados processos, a fim de mitigar danos que podem ser irreversíveis à economia, à política e à sociedade em geral.

“Olhar com olhos de ver” era essa a expressão recorrentemente proferida por um velho professor de eletroeletrônica na saudosa Escola de Comunicações (EsCom), ensejando a necessidade de ir além da primeira impressão. Parafraseando-o, pode-se pressupor que a discussão em torno da manutenção do Serviço Militar Obrigatório ou da adoção do Serviço Militar Voluntário de forma generalizada requer o mesmo olhar circunspecto, especialmente, com o objetivo de refletir sobre as decisões tomadas por outros países e seus respectivos desdobramentos, a partir de um ou de outro expediente.

Nesse sentido e à guisa de fomentar a ampliação do assunto, interessa pontuar quais países do entorno brasileiro mantêm e não mantêm o SMO:

Certamente, essa fotografia sul-americana por si só merece um estudo mais aprofundado com o objetivo de entender as causas intrínsecas que levam esses países a optarem pelos dois modelos distintos, abordagem que ficará para outra oportunidade. De todo modo, ampliando-se um pouco mais a visão do espaço territorial dentro do escopo do Continente Americano, têm-se os Estados Unidos da América e o Canadá como não aderentes na atualidade ao recrutamento obrigatório, ambos optando por Forças Armadas dotadas de soldados profissionais, isto é, pelo SMV.

Cabe destacar que, no Brasil, o Serviço Militar Voluntário é adotado de forma estratégica visando à captação de Recursos Humanos (RH) cuja formação específica não se encontra facilmente no universo recrutado pelo Serviço Militar Obrigatório, por exemplo, os Médicos, Farmacêuticos, Dentistas e Veterinários (MFDV), além de uma miríade de profissionais técnicos que, após passarem por criterioso processo seletivo, ingressam nas Forças por um período que pode chegar até oito anos de serviço. Esse processo trata-se do ingresso dos Oficiais Técnicos Temporários (OTT) e dos Sargentos Técnicos Temporários (STT).

Encaminhando para o final dessa reflexão, resta, pois, elencar algumas repercussões advindas da adoção do SMV em nações proeminentes no cenário mundial que, em momentos específicos de suas respectivas histórias realizaram a transição do modelo obrigatório para o voluntariado. Acredita-se que esse exercício epistemológico pode auxiliar na percepção do custo-benefício dessa tomada de decisão sopesando os motivos que as tem levado a reconsiderar a possibilidade de retomar a práxis anterior.

Adicionalmente, é razoável supor que o recente conflito travado entre Rússia e Ucrânia tem sinalizado sobremaneira para a possibilidade de reorganização doutrinária de outros exércitos ao redor do mundo, especialmente, no que se refere ao modo de recrutamento da sua força de trabalho. Visando tornar mais didática essa assertiva e atender às regras editoriais desse espaço (Eblog), o pequeno quadro a seguir foi elaborado a partir de excertos de matérias extraídas da Internet relacionadas à temática e pode oferecer ao leitor a construção de uma trilha de conhecimento capaz de motivá-lo a ampliar a visão do problema a ser enfrentado:

Por fim, julga-se imperioso registrar que, ao contrário do senso comum, que atrela a ideia de obrigatoriedade do serviço militar no Brasil às Forças Armadas, esse instituto, além de ser previsto na Constituição Federal, tem a sua manutenção ou mudança de status quo subordinada à política de Estado que, obviamente, perpassa diversas instâncias de poder.

Fica aqui o convite para que se fomente a ampliação dos estudos sobre o assunto, a fim de promover a sensibilização e a conscientização de sua real importância no campo político, social e econômico, além de gerar interlocutores que tenham interesse em aprofundar o tema.

Leia, reflita, comente! 

 

1 Disponível em < https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/28011-tecnologias-geoespaciais-aprimoram-fronteira-do-brasil-com-america-do-sul> Acessado em 28 Abr 2023.

2 Revista Verde-Oliva – Exército Brasileiro - Ano XLIII • nº 234 • outubro 2016. Disponível em <https://www.calameo.com/exercito-brasileiro/books/0012382060953ff146926> Acessado em 18 maio 2023.

3 Wisevoter – Disponível em <https://wisevoter.com/country-rankings/countries-with-mandatory-military-service/#belize> Acessado em 20 maio 23.

Comentarios

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Parabéns por suscitar o debate de um tema de suma importância. A título de contribuição, as FFAA Portuguesas se ressentem por terem abolido o SMO. Pelo mesmo valor remuneratório, o cidadão português consegue um emprego com menor responsabilidade, encargos e sujeições típicas da vida militar (jornadas de trabalho extensas, regulamento disciplinar, riscos no exercício da atividade militar, etc). As FFAA Portuguesas ("Ramos") sofrem com grande número de claros nas graduações de cabos e soldados, impactando as rotinas das OM, bem como sua operacionalidade. Tiveram, inclusive, que aprovar uma Lei de Incentivo (benefícios p quem presta o Sv Mil), a fim de torná-lo mais atrativo.
Bom dia! Obrigado pelo comentário Marcelo Rosa. Espero ao menos ter suscitado o interesse pela temática.

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