O massacre de Srebrenica: um ponto de inflexão na proteção de civis das operações de manutenção da paz da ONU

Autor: Coronel R1 Márcio Carneiro Barbosa

Sexta, 09 Fevereiro 2024
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A Guerra da Bósnia ocorreu no período de 1992 a 1995 no contexto de uma guerra civil, de rivalidades entre diferentes etnias e de fragmentação territorial (dissolução) da antiga Iugoslávia.

Segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, “a terrível e sangrenta Guerra da Bósnia ceifou 100.000 vidas”. Para o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), “até dezembro de 1995, estima-se que 900.000 pessoas se tornaram refugiadas em países vizinhos e na Europa Ocidental, enquanto mais de 1,3 milhões foram deslocadas internamente”. Entre outras consequências, o mundo tomou conhecimento sobre o que ocorrera na cidade de Srebrenica (situada a leste da atual Bósnia e Herzegovina, a 15 km da fronteira com a Sérvia): um genocídio étnico cometido contra a população bósnia de maioria muçulmana.

Em 1992, visto que a crise já constituía uma ameaça à paz e segurança internacionais, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução nº 743, de 21 de fevereiro, estabelecendo a Força de Proteção das Nações Unidas (United Nations Protection Force/UNPROFOR), sendo considerada a primeira força de paz da ONU na Croácia e na Bósnia e Herzegovina durante as guerras iugoslavas.

Em abril de 1993, a UNPROFOR declarou Srebrenica área segura (zona de proteção) para os civis em fuga dos combates entre o governo bósnio e as forças separatistas sérvias. Historicamente, durante meses, a cidade esteve sitiada, ocasionando escassez de água, alimentos e medicamentos em virtude da dificuldade de ajuda humanitária.

Em julho de 1995, o Exército Sérvio da Bósnia entra em Srebrenica quando mais de 60.000 muçulmanos bósnios se refugiavam sob a proteção da UNPROFOR. Naquela ocasião, forças sérvias tomaram o controle da situação e decidiram pelo deslocamento forçado (ônibus) de parte desse efetivo para uma zona controlada pelo exército.

Entretanto, na chegada do comboio no seu destino, o escritório do ACNUR constatou que somente havia mulheres, crianças e idosos. A pergunta que se fazia naquele momento era: “onde estavam os homens?” A resposta àquela pergunta foi o massacre, no período de 11 a 25 de julho de 1995, de aproximadamente 8.000 homens e meninos muçulmanos por tropas sérvias.

O genocídio em Srebrenica é considerado o pior acontecimento na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em 2000, por ocasião de seu quinto aniversário, o então Secretário-Geral da ONU, Kofi Annan, declarou que “a tragédia de Srebrenica assombrará para sempre a história das Nações Unidas”.

Com efeito, os acontecimentos de Srebrenica, concomitantemente com o genocídio em Ruanda (1994), influenciaram, decisivamente, as Operações de Manutenção de Paz da ONU nos anos subsequentes. Assim, a partir da UNPROFOR, as missões teriam seus mandatos aprovados pelo Conselho de Segurança sob a égide do Capítulo VII dotados de novos conceitos, condutas, procedimentos e doutrinas no tocante à proteção de civis em conflitos armados.

Destaca-se que, em outubro de 1999, duas missões de paz tiveram seus mandatos aprovados: a Missão das Nações Unidas em Serra Leoa (UNAMSIL) e a Administração Transitória das Nações Unidas no Timor-Leste (UNTAET).

A UNAMSIL, a primeira na história da ONU que mencionava a proteção de civis como tarefa dos peacekeepers, foi instituída pela Resolução nº 1270, de 22 de outubro. No parágrafo 14 consta que a missão de paz poderia “tomar as medidas necessárias para garantir a segurança e a liberdade de movimento de seu pessoal e, dentro de suas capacidades e áreas de desdobramento, proporcionar proteção aos civis sob ameaça iminente de violência física, tomando em conta as responsabilidades do Governo de Serra Leoa”.

Na semana seguinte, a Resolução nº 1272, de 25 de outubro de 1999, estabeleceu a UNTAET, sob a liderança do brasileiro Sérgio Vieira de Mello (Representante Especial do Secretário-Geral da ONU). Para o Timor-Leste, o Conselho de Segurança, no parágrafo 10 da resolução, reiterou “a necessidade urgente de uma assistência humanitária e de reconstrução coordenada e apela a todas as partes para que cooperem com as organizações humanitárias e de direitos humanos, a fim de garantir a segurança, a proteção de civis, em particular, crianças, o retorno seguro de refugiados e pessoas deslocadas e a entrega efetiva de ajuda humanitária”.

Meses depois, em 7 de março de 2000, o então Secretário-Geral da ONU Kofi Annan convocou “um painel de alto nível para realizar uma minuciosa revisão das atividades de paz e segurança das Nações Unidas e apresentar um conjunto claro de recomendações específicas, concretas e práticas para ajudar as Nações Unidas a conduzir tais atividades melhor no futuro”. Os estudos realizados, bem como as recomendações apresentadas, com significativos reflexos para a proteção de civis, ficaram conhecidos como Relatório Brahimi (United Nations A/55/305).

Outra consideração importante que evidencia a prioridade da ONU aos não combatentes foi uma expressão comumente vista nas resoluções: “proteger os civis sob ameaça iminente de violência física”. Desta forma, se pode ler esta tarefa nas seguintes missões de paz autorizadas, no período de 2000 a 2010:

a. Missão da Organização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUC, Resolução nº 1291, de 24 de fevereiro 2000);

b. Missão das Nações Unidas na Libéria (UNMIL, Resolução nº 1509, de 19 de setembro de 2003);

c. Operações das Nações Unidas no Burundi (ONUB, Resolução nº 1545, de 21 de maio de 2004);

d. Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH, Resolução nº 1542, de 30 de abril de 2004);

e. Operação das Nações Unidas na Costa do Marfim (UNOCI, Resolução nº 1528, de 27 de fevereiro de 2004);

f. Missão das Nações Unidas no Sudão (UNMIS, Resolução nº 1590, de 24 de março de 2005); e

g. Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL, Resolução nº 1701, de 11 de agosto de 2006).

Para a capacitação e o treinamento dos capacetes e boinas azuis, o Secretariado da ONU editou uma série de documentos doutrinários para conhecimento obrigatório, de grande importância para os Países Contribuintes de Tropa e de Polícia (antes e durante o desdobramento). Entre outros, são citados, por exemplo:

a. Implementação de Diretrizes de Proteção de Civis para os Componentes Militares de Missões de Manutenção da Paz das Nações Unidas, do Departamento de Operações de Manutenção da Paz (2015);

b. Política de Proteção à Criança nas Operações de Paz das Nações Unidas, do Departamento de Operações de Manutenção da Paz (2017);

c. Manual para a Equipe de Proteção de Crianças nas Operações de Paz das Nações Unidas, do Departamento de Operações de Paz (2019);

d. Handbook A Proteção de Civis nas Operações de Paz das Nações Unidas, do Departamento de Operações de Paz (2020); e

e. Política de Proteção de Civis nas Operações de Paz das Nações Unidas, do Departamento de Operações de Paz (2022).

Desta forma, neste mês de julho de 2023, em que se rememora o vigésimo oitavo ano dos episódios de Srebrenica, verifica-se que o Sistema ONU, a partir de 1999, tomou uma série de medidas para melhor estabelecer e conduzir uma missão de paz, capaz de melhor proteger os civis vítimas de conflitos armados.

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