A data de 5 de maio assinalou um ano do transcurso do Bicentenário da Morte de Napoleão Bonaparte, “Imperador dos Franceses”. Como era natural de se esperar, uma vez que se trata da personagem mais biografada da História, inúmeras e variadas vozes foram levantadas na tentativa de detalhar, “mais uma vez”, o legado deixado por Napoleão.
Quando assinalamos “mais uma vez” é porque o julgamento de Napoleão iniciou-se antes mesmo de sua morte em Santa Helena.
O mundo anglo-saxão é quase unânime na condenação do Imperador, com raras exceções como a do pensador norte-americano Raph Waldo Emerson, que o incluiu em sua obra Representative Men, ao lado de Platão, Montaigne, Swedenborg, Shakespeare e Goethe, deixando aos europeus continentais a possibilidade de se dividirem em torno dessa poderosa figura histórica.
Alemães como Hegel e Nietzsche nunca esconderam sua admiração por Napoleão. O primeiro comparava-o a Prometeu, apontando-o como transformador da Europa feudal e beata, difusor dos ideais iluministas da Revolução Francesa e a "a alma do mundo"; o segundo, por sua vez, via-o como o exemplo mais extremado da "vontade de poder".1
Dois gigantes da literatura russa tinham-no na mais baixa conta. Leon Tolstoi, autor da principal obra literária sobre as Guerras Napoleônicas, Guerra e Paz, atribui-lhe a culpa pelas mortes e pela destruição causadas pelo conflito de 1812 entre seu país e o Império Francês. Fiódor Dostoiévski, por sua vez, via em Napoleão uma amplificação do protagonista de sua obra-prima, Crime e Castigo, Rodion Raskólhnikov, em sua obsessão de ser excepcional e, por isso, imune à lei, e de poder tudo ousar, inclusive o crime.
Em seu país, Bonaparte gozou de ampla aceitação. No imaginário da maior parte dos franceses, l'empereur sempre foi sinônimo de gloire, isto é, de um tempo em que a França foi senhora da Europa, tendo desfilado vitoriosa de Lisboa a Moscou, arrastando consigo os ideais da Revolução e fazendo com que, por ocasião do Bicentenário do Nascimento de Napoleão, em 1969, o então presidente francês Georges Pompidou declarasse: "Não há nome mais glorioso do que o de Napoleão. Partindo do nada, desprovido de tudo, ele conseguiu tudo" 2.
Os tempos mudaram. A opinião pública nunca esteve tão exigente e instruída, e a Europa tão integrada. A internet, o feminismo, o movimento Black Lives Matter, os chamados cancelamentos e a necessidade de consolidar a União Europeia têm revisado a História, derrubando estátuas e removendo monumentos; procurado vencer o nacionalismo; e fazendo com que o atual bicentenário tenha um tom diferente daquele de 52 anos atrás.
Em apertada síntese, os atuais acusadores de Napoleão apontam: o fim da República, em decorrência da proclamação do Império; a misoginia, estampada nos Códigos Civil de 1804 e Penal de 1810; o racismo, exemplificado no restabelecimento da escravidão pela lei de 20 de maio de 1802; e as numerosas mortes, causadas pelas guerras que travou, como as nódoas da herança napoleônica.
“A República não pode prestar homenagem oficial àquele que foi seu coveiro, pondo fim à primeira experiência republicana de nossa história para criar um regime autoritário”, indigna-se um deputado do partido de oposição França Insubmissa.3 "Nenhuma vítima pode celebrar seu algoz, a menos que tenha enlouquecido", afirmaram o Comitê Internacional dos Povos Negros, o FKNG e o Movimento Internacional de Reparação (MIR) que, em comunicado, denunciam as homenagens a um "racista liberticida".4
As Guerras Napoleônicas deixaram um legado de morte e destruição não só na Europa, mas também na América, na Ásia e na África, que foram palco das suas batalhas.
Em sentido contrário, os amantes da légende dorée destacam a fundação do moderno Estado Francês; a promulgação do Código Civil como base legal de um quarto das jurisdições mundiais, incluindo as da Europa Continental, das Américas e da África, e fundamento jurídico dos ideais de igualdade e liberdade da Revolução Francesa; a extinção do feudalismo nos países conquistados; a difusão dos conceitos de meritocracia, la carrière ouvre au talent, e educação secular; além das obras públicas que até hoje embelezam Paris.
Em face do exposto, não nos arriscaremos, neste breve artigo, a tentar resolver uma questão que mil volumes não conseguiram na tentativa de fornecer um balanço definitivo do legado napoleônico. Limitando-nos, portanto, a servir de elemento propedêutico e reflexivo sobre o tema.
O que podemos destacar, e nesse sentido há unanimidade, é que Napoleão foi o maior self-made man da História, e que sua memória permanece viva até os dias atuais, lembrando a todos o poder e os limites da mente humana.
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1. Napoleão, um legado polêmico. Terra. 2021. Disponível em <https://www.terra.com.br/noticias/educacao/historia/napoleao-um-legado-polemico,80080820692ea310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html>Acesso em 20 de agosto de 2021.
2. França recorda os 200 anos da morte de Napoleão. O Estado de Minas. Belo Horizonte. 05 de maio de2021 Internacional. Disponível em:<https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/05/05/interna_internacional,1263555/franca-recorda-os-200-anos-da-morte-de-napoleao.shtml> Acesso em 15 de agosto de 2021.
3. Napoleão e seu legado: sublime ou detestável? . O Estado de Minas. Belo Horizonte. 04 de maio de2021 Internacional. Disponível em<https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/05/04/interna_internacional,1263222/napoleao-e-seu-legado-sublime-ou-detestavel.shtml> Acesso em 20 de agosto de 2021.
4. França recorda os 200 anos da morte de Napoleão. O Estado de Minas. Belo Horizonte. 05 de maio de2021 Internacional. Disponível em:<https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2021/05/05/interna_internacional,1263555/franca-recorda-os-200-anos-da-morte-de-napoleao.shtml> Acesso em 15 de agosto de 2021.
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