NEUROCIÊNCIA NO CONTEXTO MILITAR: UMA TENDÊNCIA MUNDIAL

Autores: S Ten Julio Cezar Rodrigues Eloi
Segunda, 05 Maio 2025
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O que antes seria imaginado na ficção científica, hoje se concretiza: drones são pilotados pelo pensamento de cérebros humanos; e fármacos ajudam a esquecer experiências traumáticas ou produzir sentimentos de confiança para encorajar a confissão em interrogatórios (Howell, 2017). Assim, pesquisa financiada pela Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA) trabalha em implantes cerebrais para aliviar os efeitos de experiências traumáticas em guerras (Howell, 2017).

O que todas essas técnicas e tecnologias têm em comum é que são avanços neurocientíficos recentes impulsionados pela pesquisa militar dentro de um contexto mais amplo de rápido desenvolvimento (Howell, 2017). Dessa forma, os avanços na neurociência levantam uma série de novas questões sobre as maneiras pelas quais pode e deve ser utilizada (Farah, 2012).

Seguindo essa linha de raciocínio, este artigo busca as aplicações da neurociência, com destaque para o contexto militar. Para cumprir tal objetivo, consultaram-se trabalhos publicados nas últimas décadas em periódicos de alto impacto indexados em bases científicas como a Scopus e Web Of Science.

A neurociência é o campo do conhecimento que busca entender a dinâmica dos processos cerebrais por meio da análise dos sinais elétricos que fluem pelos circuitos neurais que se originam na mente (Silva, Ribeiro, Silva & Martins, 2023). A compreensão completa da estrutura e função do cérebro humano é um objetivo atraente da neurociência que, mesmo com as limitações atuais, é útil para abordar alguns problemas urgentes que a nossa sociedade enfrenta (Poo, Du, Ip, Xiong, Xu & Tan, 2016).

Como campo em acelerado desenvolvimento, a neurociência abrange uma gama de aplicações e tecnologias que provavelmente proporcionarão benefícios significativos à sociedade, particularmente no tratamento de deficiências neurológicas e distúrbios psiquiátricos (Royal Society, 2012). Além dessas aplicações, a neurociência sugere uma série focada nos militares, que pode ser dividida em dois objetivos principais:

  1. melhoria do desempenho: relacionada à eficiência das próprias forças; e

  2. degradação do desempenho: para a redução do desempenho do inimigo.


 

Na virada do último século, o establishment de segurança nacional dos Estados Unidos da América (EUA) passou a enxergar a neurociência como componente promissor de suas necessidades, desde então (Tennison & Moreno, 2012). Nesse contexto, entende-se que a neurociência é pesquisa de ''uso duplo'', com o desenvolvimento de projetos de interesse militar e civil (Tennison & Moreno, 2012).

Historicamente, o uso duplo frequentemente envolveu um gotejamento de tecnologia militar e os civis (Tennison & Moreno, 2012). A internet, por exemplo, se originou como um meio não local e distribuído para proteger informações militares (Tennison & Moreno, 2012). No caso da neurociência, no entanto, a pesquisa civil ultrapassou a esfera dos militares (Tennison & Moreno, 2012).

Tanto os relatórios do National Research Council (NRC) quanto do Departamento de Defesa (DoD) revelam interesses contínuos em neurociência, indicando que os militares estão ansiosos para usufruírem da ciência emergente (Tennison & Moreno, 2012). Para a pesquisa em neurociência nos EUA, a DARPA recebeu cerca de US$ 240 milhões em 2011, enquanto o Exército ficou com US$ 55 milhões, a Marinha com US$ 34 milhões e a Força Aérea com US$ 24 milhões (Tennison & Moreno, 2012).

O cérebro humano, com aproximadamente 100 bilhões de neurônios interconectados, permite habilidades cognitivas, significativamente elevadas (Herculano-Houzel, 2012). Este órgão, incrivelmente complexo, também pode hospedar distúrbios clínicos debilitantes, incluindo convulsões, depressão e ansiedade, doença de Parkinson e muitos outros (Kosal & Putney, 2023).

Desvendar os segredos do cérebro humano é um dos maiores desafios científicos já enfrentados (Kosal & Putney, 2023). Os avanços na pesquisa em neurociência permitiram aprofundar a compreensão do cérebro e desenvolver tecnologias para ler e escrever a atividade cerebral, com implicações para a compreensão do comportamento e tomada de decisões (Kosal & Putney, 2023).

Para Kosal e Putney (2023), os EUA e a China iniciaram grandes projetos de pesquisa em neurociência na última década, em conjunto com outros países, incluindo Canadá, Coreia, Japão, Austrália e União Europeia (UE). Essas iniciativas possuem metas ambiciosas que só são possíveis agora com avanços em ferramentas genéticas e técnicas de imagem (Kosal & Putney, 2023).

Kosal e Putney (2023) ressaltam que a Iniciativa BRAIN (Brain Research through Advancing Innovative Neurotechnologies) dos EUA tem o objetivo de “acelerar o desenvolvimento e a aplicação de tecnologias inovadoras para produzir uma nova imagem dinâmica revolucionária do cérebro que mostre como células individuais e circuitos neurais complexos interagem tanto no tempo quanto no espaço”. Além disso, a Iniciativa BRAIN destacou-se como componente importante da estratégia estadunidense para tecnologias (Office of Science and Technology Policy, 2015).

De outro modo, a estrutura do China Brain Project se concentra na capacidade de desenvolver tecnologias tanto para diagnóstico e tratamento de distúrbios cerebrais quanto para imitar a inteligência humana e conectar humanos e máquinas (Poo et al., 2016). Complementa-se que embora o foco inicial desses projetos cerebrais tenha sido tecnologias clínicas para curar doenças e devolver faculdades às pessoas, é provável que tal pesquisa permita o aumento e o uso para pessoas saudáveis nos setores comercial e militar (Kosal & Putney, 2023).

A US BRAIN Initiative e o China Brain Project enfatizam a importância da neurociência para tratar e prevenir doenças cerebrais, distúrbios em populações envelhecidas, mas também destacam objetivos adicionais para acelerar a pesquisa básica nos EUA e a pesquisa aplicada em equipes homem-máquina na China (Poo et al., 2016). As tecnologias de uso duplo, tornadas possíveis pelos projetos cerebrais, provavelmente terão implicações profundas na sociedade, saúde pública e segurança nacional (Kosal & Putney, 2023).

Da perspectiva de segurança nacional, é valioso prever a disseminação de neurotecnologias nos setores comercial e militar (Kosal & Putney, 2023). Assim como os avanços científicos e tecnológicos do passado, a pesquisa em ciências cognitivas, supostamente, tem impacto em futuras políticas de segurança (Kosal & Putney, 2023).

Como as ciências cognitivas se concentram em humanos, elas estão intrinsecamente ligadas ao estudo de processos sociais, incluindo os domínios da política e segurança (Kosal & Putney, 2023). Organismos científicos internacionais, incluindo a Academia Nacional de Ciências dos EUA e a Royal Society do Reino Unido, também se envolveram em discussões sobre a relevância política do campo (National Research Council, 2008, 2009; Royal Society, 2012).

Especialistas do Novo Conceito Estratégico da OTAN observaram que “menos previsível é a possibilidade de que avanços em pesquisa transformem o campo de batalha tecnológico” e que “aliados e parceiros devem estar alertas para desenvolvimentos potencialmente disruptivos em áreas dinâmicas como tecnologia da informação e comunicação, ciências cognitivas e biológicas, robótica e nanotecnologia” (OTAN, 2010). Em complemento, o interesse em neurociências não se limita a nenhuma nação específica, e o potencial de novas tecnologias para afetar conflitos e cooperação certamente é reconhecido (Kosal & Putney, 2023).

Em termos de desempenho na guerra, as aplicações da neurociência e da neurotecnologia incluem neurofarmacologia e inovações em medicamentos para aperfeiçoar o funcionamento do cérebro, aplicações da tecnologia de neuroimagem para melhorar a cognição e a memória (Howell, 2017). O interesse militar significou maiores oportunidades de financiamento da neurociência, no exemplo da DARPA que financia pesquisa neurocientífica para prevenir os efeitos da privação do sono e resistência ao estresse, bem como neurotecnologia para analistas de inteligência (Howell, 2017).

Outros projetos buscaram usar a neurociência para fins de seleção de recursos humanos, para discernir se os indivíduos em potencial possuem aptidões neurológicas úteis aos militares - como aptidões de "aprendizado rápido" ou "assunção de riscos" (Howell, 2017). Em outras iniciativas, há o interesse em aproveitar fármacos que funcionam em neurotransmissores nos cérebros dos soldados (Howell, 2017).

Este breve artigo se propôs a discutir as aplicações da neurociência no contexto militar, dado o fato que o interesse em tal ciência cognitiva não se limita a nenhuma nação específica, como explicado por Kosal e Putney (2023). Entretanto, reconhece-se o destaque das iniciativas dos EUA e China, assim como de outros países, em que se incluem o Canadá, Coreia, Japão, Austrália e a UE.

Por fim, reafirma-se que parte significativa da neurociência advém de ''uso duplo'', pelo desenvolvimento de tecnologias que são de interesse militar e civil (Tennison & Moreno, 2012). Com expressivo orçamento (Tennison & Moreno, 2012), a neurociência tem sido investigada em implantes cerebrais para aliviar os efeitos de experiências traumáticas em guerras, projetos de melhoria da cognição e memória, pesquisas para prevenir os efeitos da privação do sono e resistência ao estresse, seleção de recursos humanos (Howell, 2017), além do desenvolvimento de tecnologias tanto para diagnóstico e tratamento de distúrbios cerebrais quanto para imitar a inteligência humana e conectar humanos e máquinas (Poo et al., 2016).

 

REFERÊNCIAS

Farah, M. J. (2012). Neuroethics: the ethical, legal, and societal impact of neuroscience. Annual review of psychology63 (1), 571-591. Recuperado de https://doi.org/10.1146/annurev.psych.093008.100438 . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Herculano-Houzel, S. (2012). The remarkable, yet not extraordinary, human brain as a scaled-up primate brain and its associated cost. Proceedings of the National Academy of Sciences109, 10661-10668. Recuperado de https://doi.org/10.1073/pnas.1201895109 . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Howell, A. (2017). Neuroscience and war: Human enhancement, soldier rehabilitation, and the ethical limits of dual-use frameworks. Millennium45 (2), 133-150. Recuperado de https://doi-org.ez346.periodicos.capes.gov.br/10.1177/0305829816672930 . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Kosal, M., & Putney, J. (2023). Neurotechnology and international security: Predicting commercial and military adoption of brain-computer interfaces (BCIs) in the United States and China. Politics and the Life Sciences42 (1), 81-103. Recuperado de https://doi.org/10.1017/pls.2022.2 . Acesso em: 23 Fev. 2025.

National Research Council, Division on Behavioral, Board on Behavioral, Sensory Sciences, Division on Engineering, Physical Sciences, ... & Cognitive/ Neural Science Research in the Next Two Decades. (2008). Emerging cognitive neuroscience and related technologies.

National Research Council, Division on Engineering, Physical Sciences, Board on Army Science, & Committee on Opportunities in Neuroscience for Future Army Applications. (2009). Opportunities in neuroscience for future army applications. National Academies Press.

Office of Science and Technology Policy. (2015). A strategy for American innovation. Recuperado de https://obamawhitehouse.archives.gov/sites/default/files/strategy_for_american_innovation_october_2015.pdf . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Organização do Tratado Atlântico Norte [OTAN]. North Atlantic Treaty Organization [NATO]. (2010). NATO 2020: Assured security; dynamic engagement. NATO Public Diplomacy Division. Recuperado de https://www.nato.int/cps/en/natolive/official_texts_63654.htm . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Poo, M. M., Du, J. L., Ip, N. Y., Xiong, Z. Q., Xu, B., & Tan, T. (2016). China brain project: basic neuroscience, brain diseases, and brain-inspired computing. Neuron92 (3), 591-596. Recuperado de https://doi.org/10.1016/j.neuron.2016.10.050 . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Royal Society. (2012). Brain waves: Neuroscience, conflict and security. London. Recuperado de https://royalsociety.org/-/media/policy/projects/brain-waves/2012-02-06-bw3.pdf . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Silva, R. B., Ribeiro, P., Silva, S. G., & Martins, C. L. (2023). Pre-task Intrinsic Cortical Activity in Novice and Experienced Military Specialists: A Cross-sectional Study. Military Medicine188 (11-12), e3514-e3521. Recuperado de https://doi.org/10.1093/milmed/usad257 . Acesso em: 23 Fev. 2025.

Tennison, M. N., & Moreno, J. D. (2012). Neuroscience, ethics, and national security: the state of the art. PLoS biology10 (3), e1001289. Recuperado de https://doi.org/10.1371/journal.pbio.1001289 . Acesso em: 23 Fev. 2025.

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