O autor de Homo Deus é Yuval N. Harari, nascido em 1976, em Israel. Harari é PhD em História pela Universidade de Oxford e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde se tornou conhecido por tratados acadêmicos sobre guerra e estratégia militar.
Homo Deus e o best-seller anterior do mesmo autor, Sapiens, formam, na verdade, um único tratado, no qual Harari aborda o tema “a origem e o destino final da raça humana”.
O livro inicia afirmando que os problemas que sempre afligiram a humanidade (fome, peste e guerra) estão, atualmente, menos frequentes e mais controlados. A partir dessa afirmação, o autor questiona qual será o novo tema a constar da agenda da humanidade. Quando a fome, a peste e a guerra forem totalmente suplantadas, o que nós faremos então? O autor defende que o próximo passo será a busca da imortalidade, felicidade e divindade.
Um conceito bastante presente em seu pensamento é o de algoritmo, definido pelo autor como um conjunto metódico de passos que pode ser usado na realização de cálculos, na resolução de problemas e na tomada de decisões. Harari extrapola esse conceito matemático para afirmar que os organismos vivos nada mais são que algoritmos bioquímicos.
O autor esclarece que sua obra trata-se apenas de uma previsão, não de um manifesto, e está aberta a discussões e alterações. Até porque, como explica Harari, a maioria da humanidade não estará empenhada nessa nova agenda (imortalidade, felicidade e divindade). Tampouco há garantias de que a alcancemos.
A partir de algumas premissas bem delineadas – como a de que a ciência já provou que não existe Deus e de que o livre arbítrio e o individualismo são apenas ilusões –, Harari constrói sua tese. Primeiro, ele projeta que a humanidade criará ficções (tais como criamos no passado as religiões, o dinheiro e as instituições sociais) ainda mais poderosas no futuro, tornando ainda mais importante distinguirmos o que é real do que não é.
Segundo, Harari entende que, na modernidade, os humanos concordam em abrir mão de significado existencial em troca de poder social. Antes, entendíamos estar limitados por um plano cósmico maior. Não mais! Vivemos uma tentação de alcançar a onipotência (alimentada pelos avanços científico e econômico) com o risco de cair em uma insignificância total de propósito (até aqui, impedida pelas religiões humanistas).
A humanidade teria encontrado propósito (e sua salvação) no humanismo, o qual tenta dar significado ao cosmo por meio das experiências humanas. Nossas ética, política e arte não teriam mais o divino como baliza, mas os nossos sentimentos.
No século XX, socialistas e nazifascistas infligiram uma surra histórica aos liberais e aos evolucionistas. Ao final, porém, o liberalismo venceu e suplantou, além dos outros ramos da religião humanista, as religiões tradicionais. Já no século XXI, o avanço tecnológico (engenharia genética e Inteligência Artificial) pode ser o próximo desafiante — e vencer o liberalismo— , pois irá desnudar o fato de que a experiência humana é somente outro produto projetável.
Harari elenca as três consequências práticas do desmoronamento do liberalismo:
a) deixaremos de atribuir valor à utilidade econômica e militar do indivíduo;
b) daremos valor aos humanos somente quando considerados no coletivo; e
c) valorizaremos os super-humanos e não a massa ordinária.
A conclusão do autor é profetizar o surgimento de super-humanos, ou homo deuses, graças à aliança dos algoritmos bioquímicos com os das máquinas. Os super-humanos tratarão os homo sapiens como seres inferiores e novas religiões — as “tecnorreligiões” — surgirão: o tecno-humanismo e o dataísmo. No tecno-humanismo, o sapiens ainda é considerado o ápice da criação, mas, para garantir nossa sobrevivência ante algoritmos sofisticados, devemos fazer aprimoramentos e nos tornarmos homo deuses. Já o dataísmo acredita que não somos capazes de filtrar a enorme quantidade de dados atual e, diante dessa limitação, a esperança é depositada em algoritmos computacionais para a condução de governos e mercados.
Na parte final do livro, Harari reconta a evolução da espécie humana como uma evolução de processamentos de dados. Os humanos são análogos a chips e as revoluções cognitiva e agrícola, bem como a globalização e o sistema financeiro, foram responsáveis por aprimorar o fluxo de informações entre esses chips. O produto final desse sistema será a IoT (“internet das coisas”, em inglês): um deus onisciente e onipotente. Ou “a mão invisível do fluxo de dados”. Se o humanismo afastou Deus e valorou o indivíduo, o dataísmo afasta o sapiens e valora a IoT.
Harari garante que o dataísmo será perseguido pela humanidade porque, para alcançar aquelas aspirações enunciadas no primeiro capítulo do livro (imortalidade, felicidade, divindade), precisamos processar dados muito além da capacidade do cérebro humano.
A perspectiva histórica da evolução humana defendida por Harari é realmente bem construída e elegante. Não à toa ele cativou o interesse de muitos intelectuais ao redor do mundo. Porém, na comunidade científica, olham-no com suspeita; na filosófica, Harari é visto como alguém em território inapropriado.
Quanto às implicações práticas das teses defendidas por Harari, se aplicadas, podemos concluir o seguinte: a) a humanidade caminharia para uma governança única; b) o estado-nação deve ser superado, haja vista o fluxo de dados não poder ser obstaculizado; e c) os regimes políticos como conhecemos hoje, sejam democráticos ou autoritários, são obsoletos, tendo em vista que a política não acompanha o avanço tecnológico e não processa sequer a atual quantidade de dados.
Diante disso, não é absurdo imaginar que Harari sofre de algum nível de misantropia. O seu desejo de um futuro melhor pressupõe a erradicação ou, pelo menos, a instrumentalização de nós, sapiens, por um deus informacional. Em sua distopia, assim como em sua visão histórica, os sapiens são retratados quase como pragas terríveis que precisam ser superadas. O futuro será melhor… mas pra quem?
E quanto às Ciências Militares?
Particularmente quanto à contribuição da presente obra para as Ciências Militares, devemos retomar a questão da importância do indivíduo em função de seu valor militar, a qual seria cada vez menor em decorrência dos avanços tecnológicos.
À medida que os exércitos implementam tecnologia, diminuem a importância de grandes contingentes humanos, assim como os comandantes delegam cada vez mais as suas decisões a algoritmos. Atualmente, já há drones autônomos, que podem tomar decisões baseados em algoritmos pré-definidos, e mais, já são capazes de se deparar com situações inéditas e tomar decisões verdadeiramente próprias. Como questionou o Tenente-Coronel Del Duca: “Como o Direito Internacional dos Conflitos Armados responsabilizará uma máquina?”.
Os Estados, governos e militares devem ter em mente que não basta investir em armamentos ou equipamentos mais avançados. O próprio conceito de conflito armado e a arte da guerra sofrerão mudanças cruciais, difíceis de antever em todas suas facetas.
Se acreditarmos em Yuval Harari, a Ciência Militar não deveria sequer desperdiçar energia predizendo o seu futuro, pois, segundo o cenário desenhado em Homo Deus, algum tipo de algoritmo além da capacidade da inteligência humana será o verdadeiro senhor da guerra.
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