Homo Deus e seu impacto para as Ciências Militares

Autor: Maj Tiago Pedreiro de Lima

Quarta, 02 Fevereiro 2022
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O autor de Homo Deus é Yuval N. Harari, nascido em 1976, em Israel. Harari é PhD em História pela Universidade de Oxford e professor na Universidade Hebraica de Jerusalém, onde se tornou conhecido por tratados acadêmicos sobre guerra e estratégia militar.

Homo Deus e o best-seller anterior do mesmo autor, Sapiens, formam, na verdade, um único tratado, no qual Harari aborda o tema  “a origem e o destino final da raça humana”.

O livro inicia afirmando que os problemas que sempre afligiram a humanidade (fome, peste e guerra) estão, atualmente, menos frequentes e mais controlados. A partir dessa afirmação, o autor questiona qual será o novo tema a constar da agenda da humanidade. Quando a fome, a peste e a guerra forem totalmente suplantadas, o que nós faremos então? O autor defende que o próximo passo será a busca da imortalidade, felicidade e divindade.

Um conceito bastante presente em seu pensamento é o de algoritmo, definido pelo autor como um conjunto metódico de passos que pode ser usado na realização de cálculos, na resolução de problemas e na tomada de decisões. Harari extrapola esse conceito matemático para afirmar que os organismos vivos nada mais são que algoritmos bioquímicos.

O autor esclarece que sua obra trata-se apenas de uma previsão, não de um manifesto, e está aberta a discussões e alterações. Até porque, como explica Harari, a maioria da humanidade não estará empenhada nessa nova agenda (imortalidade, felicidade e divindade). Tampouco há garantias de que a alcancemos.

A partir de algumas premissas bem delineadas – como a de que a ciência já provou que não existe Deus e de que o livre arbítrio e o individualismo são apenas ilusões –, Harari constrói sua tese. Primeiro, ele projeta que a humanidade criará ficções (tais como criamos no passado as religiões, o dinheiro e as instituições sociais) ainda mais poderosas no futuro, tornando ainda mais importante distinguirmos o que é real do que não é.

Segundo, Harari entende que, na modernidade, os humanos concordam em abrir mão de significado existencial em troca de poder social. Antes, entendíamos estar limitados por um plano cósmico maior. Não mais! Vivemos uma tentação de alcançar a onipotência (alimentada pelos avanços científico e econômico) com o risco de cair em uma insignificância total de propósito (até aqui, impedida pelas religiões humanistas).

A humanidade teria encontrado propósito (e sua salvação) no humanismo, o qual tenta dar significado ao cosmo por meio das experiências humanas. Nossas ética, política e arte não teriam mais o divino como baliza, mas os nossos sentimentos.

No século XX, socialistas e nazifascistas infligiram uma surra histórica aos liberais e aos evolucionistas. Ao final, porém, o liberalismo venceu e suplantou, além dos outros ramos da religião humanista, as religiões tradicionais. Já no século XXI, o avanço tecnológico (engenharia genética e Inteligência Artificial) pode ser o próximo desafiante — e vencer o liberalismo— , pois irá desnudar o fato de que a experiência humana é somente outro produto projetável.

Harari elenca as três consequências práticas do desmoronamento do liberalismo:

a) deixaremos de atribuir valor à utilidade econômica e militar do indivíduo;
b) daremos valor aos humanos somente quando considerados no coletivo; e
c) valorizaremos os super-humanos e não a massa ordinária.

A conclusão do autor é profetizar o surgimento de super-humanos, ou homo deuses, graças à aliança dos algoritmos bioquímicos com os das máquinas. Os super-humanos tratarão os homo sapiens como seres inferiores e novas religiões — as “tecnorreligiões” — surgirão: o tecno-humanismo e o dataísmo. No tecno-humanismo, o sapiens ainda é considerado o ápice da criação, mas, para garantir nossa sobrevivência ante algoritmos sofisticados, devemos fazer aprimoramentos e nos tornarmos homo deuses. Já o dataísmo acredita que não somos capazes de filtrar a enorme quantidade de dados atual e, diante dessa limitação, a esperança é depositada em algoritmos computacionais para a condução de governos e mercados.

Na parte final do livro, Harari reconta a evolução da espécie humana como uma evolução de processamentos de dados. Os humanos são análogos a chips e as revoluções cognitiva e agrícola, bem como a globalização e o sistema financeiro, foram responsáveis por aprimorar o fluxo de informações entre esses chips. O produto final desse sistema será a IoT (“internet das coisas”, em inglês): um deus onisciente e onipotente. Ou “a mão invisível do fluxo de dados”. Se o humanismo afastou Deus e valorou o indivíduo, o dataísmo afasta o sapiens e valora a IoT.

Harari garante que o dataísmo será perseguido pela humanidade porque, para alcançar aquelas aspirações enunciadas no primeiro capítulo do livro (imortalidade, felicidade, divindade), precisamos processar dados muito além da capacidade do cérebro humano.

A perspectiva histórica da evolução humana defendida por Harari é realmente bem construída e elegante. Não à toa ele cativou o interesse de muitos intelectuais ao redor do mundo. Porém, na comunidade científica, olham-no com suspeita; na filosófica, Harari é visto como alguém em território inapropriado.

Quanto às implicações práticas das teses defendidas por Harari, se aplicadas, podemos concluir o seguinte: a) a humanidade caminharia para uma governança única; b) o estado-nação deve ser superado, haja vista o fluxo de dados não poder ser obstaculizado; e c) os regimes políticos como conhecemos hoje, sejam democráticos ou autoritários, são obsoletos, tendo em vista que a política não acompanha o avanço tecnológico e não processa sequer a atual quantidade de dados.

Diante disso, não é absurdo imaginar que Harari sofre de algum nível de misantropia. O seu desejo de um futuro melhor pressupõe a erradicação ou, pelo menos, a instrumentalização de nós, sapiens, por um deus informacional. Em sua distopia, assim como em sua visão histórica, os sapiens são retratados quase como pragas terríveis que precisam ser superadas. O futuro será melhor… mas pra quem?

E quanto às Ciências Militares?

Particularmente quanto à contribuição da presente obra para as Ciências Militares, devemos retomar a questão da importância do indivíduo em função de seu valor militar, a qual seria cada vez menor em decorrência dos avanços tecnológicos.

À medida que os exércitos implementam tecnologia, diminuem a importância de grandes contingentes humanos, assim como os comandantes delegam cada vez mais as suas decisões a algoritmos. Atualmente, já há drones autônomos, que podem tomar decisões baseados em algoritmos pré-definidos, e mais, já são capazes de se deparar com situações inéditas e tomar decisões verdadeiramente próprias. Como questionou o Tenente-Coronel Del Duca: “Como o Direito Internacional dos Conflitos Armados responsabilizará uma máquina?”.

Os Estados, governos e militares devem ter em mente que não basta investir em armamentos ou equipamentos mais avançados. O próprio conceito de conflito armado e a arte da guerra sofrerão mudanças cruciais, difíceis de antever em todas suas facetas.

Se acreditarmos em Yuval Harari, a Ciência Militar não deveria sequer desperdiçar energia predizendo o seu futuro, pois, segundo o cenário desenhado em Homo Deus, algum tipo de algoritmo além da capacidade da inteligência humana será o verdadeiro senhor da guerra.

CATEGORIAS:
História Defesa Sociedade

Comentarios

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Ótima análise major, eu também li esse livro e achei que o Yuval viajou um pouco, é complicado prever o futuro, mas o melhor para isso é entender o passado, leia o livro: o novo iluminismo, em defesa da razão, ciência, e humanismo. Lá mostra uma visão bem otimista do futuro, baseado no que a sociedade evoluiu nesses ultimos 200 anos
“Como podem os homens ser lógicos sem conhecerem o Logos, o Verbo do Pai, no qual começaram a ser.” Jo 1,1s. Obs.: Logos = Seleção condizente de leis que comandam o universo, formando um raciocínio / inteligência cósmica onipresente = DEUS. Na minha humilde / limitada consciência e cognição, devemos sempiternamente procurar a verdadeira FELICIDADE através da SABEDORIA, O ESPÍRITO + O SER + A INDIVIDUALIDADE, que, vale mais que o conhecimento e o dinheiro. Com efeito, passando por desrazão, os homens desprezam o espírito, desviando-se de DEUS. NEGAR A RAZÃO É NEGAR A REALIDADE E NEGAR A REALIDADE É NEGAR A EXISTÊNCIA.
A distopia de um mundo governado pela inteligência artificial se configura diariamente. O celular já é o "HD Externo" do nosso cérebro e os Metadados permitem um acúmulo de informações sem precedentes. Em pouco tempo, acessarmos a internet não será uma opção; estaremos inseridos nela, permanentemente. No viés econômico, os algoritmos analisam o que nos interessa, o que observamos e até o que falamos. Diante disso, torna-se inevitável seu impacto nas atividades militares, dissipando o protagonismo humano nos conflitos armados. Com o desenvolvimento do Metaverso e sua "realidade estendida", reforça-se a ideia do texto, num futuro em que os humanos buscam a imortalidade, felicidade e divindade. Parabéns pelo Artigo!
Ao meu ver, a tecnologia AI ainda está muito longe das capacidades humanas. As interfaces cérebro-máquina, hoje em dia, precisam ser utilizados com cuidado, e nem sempre extraem as informações de inteligência necessárias, principalmente quando a criptografia forte é utilizada. As BMI ( brain-machine-interfaces ) anda são utilizadas mais com foco na escravização de indivíduos do que de forna mutuamente produtiva, habilitando a extração ou supressão de sinais dos indivíduoa excepcionalmente inteligentes.
Caro Major, salve! Finalmente uma análise que com argumentação forte, desfaz a Falácia do Espantalho nas obras de Yuval. Mesmo tendo um PhD Yuval tropeça numa fraqueza conceitual. Parabéns! Luiz Henrique Quemel - quemel@outlook.com.
“Como podem os homens ser lógicos sem conhecerem o Logos, o Verbo do Pai, no qual começaram a ser.” Jo 1,1s. Obs.: LOGOS = Seleção condizente de LEIS QUE COMANDAM O UNIVERSO, formando um raciocínio / inteligência cósmica onipresente = DEUS. Na minha humilde / limitada consciência e cognição, devemos sempiternamente procurar a verdadeira FELICIDADE através da SABEDORIA (O ESPÍRITO + O SER + A INDIVIDUALIDADE), que, vale mais que o conhecimento e o dinheiro. Com efeito, passando por desrazão, os homens desprezam o espírito, desviando-se de DEUS. NEGAR A RAZÃO É NEGAR A REALIDADE E NEGAR A REALIDADE É NEGAR A EXISTÊNCIA.
Boa análise camarada. Li somente o primeiro e também achei premissas complicadas na obra. Sem dúvida a maior delas é a desconfiança total na natureza humana, que você corretamente chamou de misantropia. As piores cosmovisões surgiram dessa certeza de que nos encontramos do lado da besta, e não em um meio termo entre a besta e a divindade. Abraços
O problema que sempre afligiu e continuará a perpetuar contra a humanidade é a sede pelo poder político. Fome, peste e guerra são consequências da ação do poder político. A tecnologia nas mãos dos atuais e poderosos políticos gerarão novos problemas (certamente a escravidão digital). Só a divulgação ampla dos conhecimentos tecnológicos retardarão os efeitos maléficos desta implacável sede pelo poder político.
E, mais ainda, para completar o raciocínio, estudos modernos em Física Quântica confirmam o mesmo declarado em Hebreus 11:3, que a matéria é composta de ex nihilo / do nada. Parece absurdo, mas os estudos científicos estão demonstrando em favor disso. Ex nihilo "é uma expressão que indica um princípio metafísico segundo o qual o SER não pode começar a existir a partir do nada." A frase é do filósofo grego Parmênides (515 a.C. - 460 a.C.). DEUS criou toda a matéria existente do ex nihilo, isto é, do nada. Mas, os seres vivos não vieram diretamente do nada, e sim de matéria inorgânica, a ciência já evidencia isso na atualidade. “Por meio da fé nós percebemos que os mundos foram criados pela Palavra de DEUS, e assim segue-se, portanto, que aquilo que nós vemos NÃO VEIO DAS COISAS VISÍVEIS.” HEBREUS 11:3. “Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás.” GÊNESIS 3:19. Foi dito por DEUS a Adão no Jardim do Éden, depois que Adão e Eva comeram o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal que DEUS lhes proibira de comer. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe16059904.htm

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