O período que se descortinou no final da Guerra Fria trouxe consigo a complexa realidade do mundo. Notou-se a emergência de diversos atores não estatais no Sistema Internacional que possuíam "status" de Estado, ao mesmo tempo que a dissolução da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas inseriu novos Estados independentes, todos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU). Em meio a esses acontecimentos, vieram o Consenso de Washington e a Globalização, fenômenos políticos que restringiram o papel do Estado.
Como resultado, houve mudança sistêmica da bipolaridade para a multipolaridade. Assim, a suposta estabilidade proporcionada pela Guerra Fria deu lugar à instabilidade multifacetada, na qual uma miríade de atores - estatais e não estatais - passou a interagir como jamais visto anteriormente, tornando a compreensão do cenário uma tarefa por demais complexa.
O Brasil não ficou imune a essas transformações e reagiu à sua maneira diante desses acontecimentos. Podemos citar alguns dos fatos que marcaram o País nessa época: a promulgação da Constituição brasileira em 1988, que focou muito mais no cidadão do que no Estado; a adesão às diretrizes do Consenso de Washington e os efeitos na economia, que provocaram uma onda de privatizações de empresas e indústrias brasileiras, as quais, até então, eram estatais e consideradas estratégicas para a Nação; a eleição de Fernando Collor de Mello para Presidente da República e seu consequente "impeachment" em 1992, o que produziu efeitos imediatos na política nacional.
Foi nesse período que a crise na segurança pública do Rio de Janeiro ganhou impulso e novos contornos. O Estado passou a receber ajuda federal na área da segurança pública, durante os eventos sensíveis de envergadura mundial, tais como a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento em 1992 (ECO-92) e a visita do Papa João Paulo II em 1997. Durante a ECO-92, o aparato de segurança montado pelo Exército Brasileiro foi o grande responsável pelo aumento da percepção de segurança na capital carioca. Segundo estatísticas, houve redução nos índices de criminalidade, que variaram entre 12,4% e 16,2%, dependendo do local da Cidade[1]. Mas, o que era para ser ação episódica, com o decorrer dos anos, tornou-se mais frequente, passando a esfera federal a receber recorrentes solicitações do governo carioca para apoio na área da segurança pública.
O retrato da crise da capital fluminense
O que se espera de um Estado é que ele promova cinco valores basilares para a sociedade: segurança, liberdade, ordem, justiça e bem-estar. Um Estado pode ser considerado falido[2] quando não consegue garantir esses valores, sendo que o mais importante de todos é a capacidade de proteger seus cidadãos e de garantir adequada segurança para os indivíduos (MILLIKEN; KRAUSE, 2002).
Trinta anos após a Constituição Federal, o Estado apresenta cenário típico de falência estatal. Nessas três décadas, diversos atores desgastaram as instituições e minaram a autoridade estadual, gerando a atual conjuntura, caracterizada por: estagnação econômica, infraestrutura precária, polarização da sociedade, corrupção dos agentes do governo em todos os níveis, colapso das instituições de segurança estadual, massivas campanhas de cunho ideológico nas universidades, ações terroristas propagadas pelas facções criminosas, entre outras.
Em virtude da incapacidade do governo fluminense em administrar o Estado, em fevereiro de 2018, o Presidente da República nomeou o General de Exército Braga Netto como Interventor Federal, cuja atuação é voltada, exclusivamente, para as ações relativas à segurança no Estado do Rio de Janeiro até o final do ano. Por sua vez, o Interventor nomeou o General de Divisão Sinott como Chefe de Gabinete da Intervenção e o General de Divisão Richard como Secretário de Segurança Pública do Estado. A nova cúpula da segurança propôs e sinalizou medidas estruturantes que devem ser tomadas com o propósito de deixar um legado para a sociedade.
Possivelmente, a providência tomada pelo Presidente da República não deverá surtir o efeito desejado, pois o limitado período da intervenção federal (11 meses) não é minimamente adequado para a concretização das ações estruturantes mencionadas pelos militares. A história é recheada de casos que justificam essa assertiva, mas há dois fatos dos mais emblemáticos: o emprego das tropas brasileiras no Haiti e o histórico da Organização das Nações Unidas (ONU) em operações de paz, proporcionado pelo registro de mais de 55 missões dessa natureza. Não raro, verificou-se a necessidade de um período de tempo alargado para estabilizar os locais em conflito e criar as condições necessárias para a promoção de um crescimento equilibrado.
Desse modo, o que há no caso fluminense guarda semelhança com o cenário vivenciado pela ONU nos locais em conflito, conforme o que se segue:
Em primeiro lugar, a falência estatal é oriunda de um quadro de erosão, que alcançou instituições, agentes públicos, figuras políticas, população de baixa renda, universidades e setores de comunicação. Isso quer dizer que o problema não está centrado somente nas instituições de segurança. Para diminuir os níveis de falência do Rio de Janeiro, há que entender que se deve reconstruir grande parte das instituições, com destaque para as voltadas às áreas de segurança, educação e comunicação.
Segundo, porque o Estado vive uma crise sem precedentes na história e que ganhou impulso e novas formas há trinta anos, não sendo possível equacionar o problema em onze meses. Não se interrogam, aqui, os benefícios imediatos de tal medida, mas reconstruir efetivamente um Estado é algo que demanda tempo.
Por fim, diante da crise que vem assolando o Rio de Janeiro, é fundamental que haja envolvimento de todos, sob pena de vermos o Estado e a sociedade carioca tornarem-se reféns de alguns atores não estatais.
REFERÊNCIAS
BIJOS, Leila; OLIVEIRA, Jackeline Nunes. A legitimidade da Guerra nos Estados Fracassados. Revista CEJ. Brasília, 2011.
HOBSBAWN, Eric J. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
MILLIKEN, Jennifer; KRAUSE, Keith. State Failure, State Collapse, and State Reconstruction: Concepts, Lessons and Strategies. Development and Change, Vol. 33, nº 5, p. 753-774. United kingdon: Oxford, 2002.
RODRIGUES, Anselmo de Oliveira. O conceito de Estados Falidos e as Forças Armadas de Angola, Moçambique e da Namíbia sob uma perspectiva comparada de falência estatal. In: A (in) segurança da África e sua importância para a Defesa do Brasil, p. 97-124. Porto alegre: NERINT/UFRGS – LED/ECEME, 2016.
TEIXEIRA, Marco Antônio. Tropas Federais ocupam as ruas da cidade desde a conferência Rio-1992. Rio de Janeiro: Acervo O Globo, 2014.
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