A rivalidade de poder entre os Estados Unidos da América (EUA) e a República Popular da China é tema recorrente em fóruns civis e militares e se intensificou nos últimos anos, tornando-se um grande desafio geopolítico para a comunidade internacional. O Estado chinês tem sido considerado o maior concorrente estratégico estadunidense e a estratégia militar norte-americana considera até que os chineses podem empregar a coerção nuclear como forma de atingir seus objetivos nacionais.
A disputa comercial entre ambos países contribui para intensificar os antagonismos, incluindo o campo militar. Uma crise econômica motivada por acusações relacionadas ao roubo de patentes por parte das empresas chinesas influenciou a Estratégia de Segurança Nacional Americana em 2017, que teve na obra do especialista em relações sino-americanas, o Brigadeiro-General Robert Spalding, intitulada "Stealth War, How China Took Over While America's Elite Slept1" uma grande referência. O autor defendeu a tese de que a China se infiltrou nas instituições americanas para comprometer a segurança nacional dos EUA, e que os chineses estariam desenvolvendo estratégias para evitar um confronto direto com os EUA, buscando reduzir a influência americana em outras regiões do mundo, a exemplo da África.
O fato é que a ascensão chinesa no cenário mundial, notadamente nos campos militar e econômico, levantou novas perspectivas junto aos estrategistas norte-americanos, na medida em que ampliou reflexões sobre ameaças assimétricas, soft power, guerra híbrida, operações multidomínio, entre outros temas relacionados às novas formas de fazer e conduzir a guerra.
Nesse contexto, cabe destacar a edição da Military Review (nov-dez 2018) que publicou o artigo do Maj J.R. Schwandt, do U.S. Army, no qual o autor faz uma abordagem comparativa das necessidades prementes de mudanças nas estratégias do Exército dos EUA, valendo-se de metáforas baseadas em jogos de tabuleiro: Uncovering Hidden Patterns of Thought in War2 - Wei-Chi3 versus Chess4.
Em síntese, o oficial propõe que, no passado, a estratégia militar organizava as tropas para a guerra de atrito, como em jogos de tabuleiro, pois se atuava buscando a total eliminação das forças armadas adversárias, estando essas localmente próximas em um campo previamente ocupado, onde o movimento do inimigo era, em certa medida, visível e/ou projetável.
Especificamente no xadrez, a concentração de energia das forças se daria sobre um centro de gravidade (COG) decisivo, conceito Clausewitziano5, onde a captura de uma peça-chave define a partida. As Forças Armadas dos EUA, assim como no jogo, ainda concentram-se na manutenção de uma vantagem nas capacidades.
Na estratégia em questão, as forças inimigas eram dimensionáveis (peças colocadas de uma vez), e se sabia quais informações eram necessárias para se obter vantagens (o que buscar no campo informacional), a despeito de não se ter a maioria das respostas. Ocorre que, considerando um oponente como a China, passa a ser impositivo estabelecer mudanças significativas na estratégia militar em razão das características próprias desse adversário.
Para entender a ameaça chinesa, o autor afirma que é necessário mudar de uma abordagem baseada no xadrez para uma abordagem wei-chi, pois o xadrez é um jogo de competição baseado em poder, que representa o modo de guerra americano, o wei-chi é um jogo baseado em habilidade, o que representa o modo de guerra chinês.
No wei-chi, diferentemente do xadrez, o tabuleiro inicialmente está vazio, o adversário pode definir o terreno do jogo e a estratégia principal não é o enfrentamento direto, mas sim tirar a liberdade de ação do oponente, adotando a tática do cerco. Nesse jogo de posicionamento, a complexidade de raciocínio aumenta, pois a peça colocada não se move mais, o que dificulta mudanças de planos.
No xadrez, se busca dominar o centro do tabuleiro, já no wei-chi, o ideal é utilizar as bordas como ajuda para cercar a quantidade máxima de território do adversário, pois o cerco do espaço central é sempre mais difícil. Por dedução, os chineses enfatizam fortemente os estratagemas enquanto o Ocidente, via de regra, confia mais na força esmagadora e nas capacidades avançadas.
Esse texto nos traz valiosas reflexões sobre a guerra como fenômeno sociológico e o quão influenciável pela cultura do seu povo pode ser a estratégia militar de um país. Os judeus, por exemplo, que tem uma história de luta pela sobrevivência no Estado de Israel, segundo suas tradições folclóricas, possuem uma espécie de feeling nato conhecido por Ídiche Kop6, no qual a ousadia de questionar o que parece impossível está atrelada a um desejo rigoroso de nunca desistir diante dos desafios. Não é a toa que, mesmo em menor número que seus vizinhos inimigos, as forças de defesa israelenses têm uma trajetória vitoriosa nas guerras árabe-israelenses, desenvolvendo sistemas autóctones, suas armas e sua própria doutrina. O texto também faz renascer a velha discussão sobre o direcionamento para o preparo das Forças Armadas, se baseado em capacidades ou em hipóteses de emprego (HE).
Com efeito, por mais que avance a tecnologia, ainda paira sobre a guerra do futuro a imensa névoa descrita pelo General Clausewitz e a estratégia militar nem sempre saberá quais serão os reais problemas que enfrentará. Como disse o ex-Secretário de Defesa dos EUA Donald Rumsfeld em uma entrevista: “Aquilo que nós não sabemos que não sabemos”. Assim também é no wei-chi, pois em grande parte do jogo não se sabe o que buscar, logo, as respostas certas são muito mais difíceis de identificar. Essa consciência desse estado de ignorância já é tema de estudo e pode abrir portas para novas abordagens na estratégia militar. De certo, talvez somente a assertiva cuja autoria cabe ao estrategista chinês Sun Tzu, que funciona como liturgia para a Atividade de Inteligência Militar: “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas”.
REFERÊNCIAS:
STEALTH WAR: How China Took Over While America's Elite Slept. Editora Portfolio, 2019.
- VERSUS CHESS, Wei-Chi. Uncovering Hidden Patterns of Thought in War. MILITARY REVIEW, 2018.
- RÊGO, Claudio Andrade. O Quarto Quadrante. Centro de Instrução de Gestão de Sigilos, 2019.
- BONDER, Nilton. O Segredo Judaico de Resolução de Problemas. Editora Imago, 1995.
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