Entre reis e duques: o lugar do Brasil no arranjo multipolar

Autores: TC Eduardo de Castro Barros Xavier
Segunda, 22 Dezembro 2025
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Recentemente, tive a oportunidade de assistir uma palestra do Prof. Dr. Paulo Vicente, da Fundação Dom Cabral (FDC), na qual discorria sobre o arranjo geopolítico atual. Interessante e instrutiva, a exposição conduziu uma análise abrangente baseada em dados sobre a interseção de ciclos econômicos, tecnológicos e como o domínio dessas expressões do poder garante o protagonismo das nações.

Ao longo de sua fala, o professor empregava uma perspicaz analogia dos arranjos geopolíticos com o jogo milenar Go (Weiqi), no qual o objetivo é ocupar gradualmente os espaços mais relevantes do tabuleiro. A título de exemplo, essa lógica, marcada pela paciência e pela visão de longo prazo, traduz com clareza o pensamento estratégico chinês, cuja busca por influência global se estrutura em movimentos discretos, porém cumulativos, orientados por uma Grande Estratégia que transcende ciclos políticos imediatos. Este conceito é aprofundado por Henry Kissinger (2012) que, em sua análise sobre a China contrasta a abordagem do Go, de cerco gradual e vantagem relativa, com a estratégia ocidental do xadrez, focada na batalha decisiva. Nesse ponto, Gray (2010) recorda que a estratégia é a ponte que liga o poder militar ao propósito político, sublinhando que, assim como no tabuleiro do Go, o valor da estratégia está em articular objetivos políticos de longo alcance com os instrumentos militares e econômicos disponíveis. Em outras palavras, não basta ter recursos: é preciso convertê-los em ação coordenada e coerente para assegurar ganhos no cenário internacional.

O ponto que merece destaque, portanto, é o arranjo brasileiro dentro desse tabuleiro global. O esquema apresentado organizava o jogo em quatro reis” e três duques, como destaque do mundo multipolar atual. Os reis seriam os Estados Unidos da América (EUA), o bloco europeu, a China e a Índia. Já os duques seriam o Brasil, a Rússia e o Japão. Essa classificação, mais do que uma metáfora, ajuda a compreender como se hierarquizam as capacidades de projeção de poder no mundo contemporâneo. Alves (2010) sustenta que o Estado pode ser entendido como uma tecnologia em permanente evolução, moldada por ciclos de hegemonia e tecnologia que reordenam a hierarquia internacional.

Os reis, por definição, acumulam vastos recursos em múltiplas dimensões. Os EUA se apresentam como potência global que combina supremacia militar, economia diversificada, capacidade tecnológica de ponta e expressivo soft power cultural. O bloco Europeu, embora formado por diferentes países, é capaz de agir em conjunto como ator relevante, somando poder econômico, tradição diplomática e influência normativa, ainda que com fragilidades em termos de coesão interna. A China, por sua vez, é a expressão mais clara da lógica do Go: com um crescimento econômico acelerado que perdurou por muitos anos, investimentos maciços em tecnologia e capacidade de mobilização estatal, vem consolidando sua posição como protagonista no século XXI.

A Índia, embora em estágio distinto, aparece nesse grupo em razão de seu enorme contingente populacional ainda em crescimento, da pujança de seu setor de tecnologia da informação e do peso geopolítico na Ásia e no mundo. Nesse escopo, Kissinger (2014) observa que a ordem internacional não se sustenta apenas na força material, mas também na habilidade de formular uma narrativa legitimadora e estável, capaz de organizar expectativas e consolidar a influência de cada um desses atores. Buzan (1991) complementa esse raciocínio ao indicar que os ciclos de Kondratiev permitem compreender como a liderança em inovações tecnológicas se converte em hegemonia estrutural, ampliando não só a base econômica, mas também a capacidade de definir regras e enquadrar o comportamento de outros atores. Assim, o estatuto de rei” não deriva apenas da soma de recursos, mas da sua utilização estratégica para moldar a ordem internacional.

Os duques, em contraponto, possuem atributos expressivos, mas ainda não reúnem todos os elementos necessários para atuar como reis. O Japão, mesmo com economia avançada e alta tecnologia, enfrenta limitações demográficas e restrições em sua capacidade de projeção militar, o que reduz sua autonomia no tabuleiro. A Rússia mantém vasto território, poder militar significativo e recursos energéticos, mas enfrenta desafios econômicos e políticos que limitam sua inserção global mais ampla.

O Brasil, por sua vez, destaca-se como potência regional com atributos que merecem ser ressaltados: território continental, abundância de recursos naturais, matriz energética renovável, população ainda em crescimento e liderança em sua região. Pecequilo (2022) demonstra que a política externa brasileira tem alternado momentos de continuidade e rupturas, refletindo a tensão entre tradições diplomáticas de longo prazo e inflexões conjunturais que limitam ou ampliam sua projeção internacional.

É nesse ponto que o conceito de "coopetição" trabalhado por Alves (2010), torna-se pertinente: mesmo sem reunir todos os atributos dos reis, o Brasil consegue preservar relevância regional ao competir em alguns setores e, simultaneamente, cooperar em outros, como no comércio agrícola e nas energias renováveis, aproveitando pressões externas como estímulos para modernização. Tal dinâmica dialoga com o que Nye (2011) denomina de futuro do poder: uma configuração em que a capacidade de atração e cooperação pesa tanto quanto a coerção, permitindo que países intermediários mantenham relevância em cenários competitivos.

Ao apresentar o Brasil nesse tabuleiro, é importante perceber tanto o valor quanto os desafios que o País carrega. Por um lado, há um potencial inegável de projeção, sustentado por fatores como a centralidade na América do Sul, a capacidade agrícola de alimentar parte significativa do mundo e a credibilidade acumulada em missões de paz e fóruns internacionais. Por outro lado, persistem vulnerabilidades que explicam a condição de duque: infraestrutura desigual, gargalos em inovação tecnológica e uma política externa nem sempre estável, que oscila conforme conjunturas internas.

O jogo do Go nos ensina que não basta ter peças; é preciso saber onde e como colocá-las. O Brasil, com suas dimensões e recursos, já dispõe das condições necessárias para marcar presença significativa no tabuleiro global. Mais do que rivalizar de imediato com os reis, trata-se de reconhecer o valor que já possui e projetá-lo de forma consistente e coordenada. Ao articular sua Grande Estratégia com vantagens comparativas como território, recursos naturais, capacidade energética e diplomaciao País tem a oportunidade de consolidar-se como um ator de peso, capaz de ampliar sua influência e contribuir para os rumos da ordem internacional.

Referências

ALVES, Paulo Vicente dos Santos. O Estado como uma tecnologia: uma visão da evolução do Estado por meio da coopetição e dos ciclos de hegemonia e de tecnologia. Revista ADM.MADE, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 927, out./dez. 2010. Disponível em: https://mestradoedoutoradoestacio.periodicoscientificos.com.br/index.php/admmade/article/view/102. Acesso em: 10 set. 2025.

BUZAN, Barry. People, States and Fear: An Agenda for International Security Studies in the Post-Cold War Era. 2. ed. Boulder: Lynne Rienner, 1991.

GRAY, Colin S. Estratégia moderna. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2016.

KISSINGER, Henry. Sobre a China. Trad. Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

KISSINGER, Henry. World Order. New York: Penguin Press, 2014.

NYE, Joseph S. The Future of Power. New York: PublicAffairs, 2011.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. Brazilian foreign policy: from the combined to the unbalanced axis (2003/2021). Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 64, e011, 2021. DOI: 10.1590/0034-7329202100111. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbpi/a/PksmBqv6mmZFkPDfxCgVDqm/. Acesso em: 10 set. 2025.

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