Discursos maniqueístas sobre a Educação Militar

Autor: Maj Magalhães

Sexta, 09 Agosto 2024
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Vivemos tempos de desrazão, a reboque de hordas midiáticas insensatas que propagam a discórdia em torno a ideias sem coerência ou consistência do ponto de vista teórico ou do cotejo com os fatos. Sobretudo os ódios e antipatias se alastram com base em estereótipos negativos de pessoas e de instituições, e daí emerge eventualmente a defesa de posicionamentos políticos autoritários e intolerantes. Esse fenômeno se manifesta entre grupos de diferentes tendências políticas, sobretudo entre as mais radicais, que percebem a realidade em preto e branco, sem conseguir apreender as complexidades e aporias da vida, da sociedade e da cultura.

Não é diferente em relação ao tema do Ensino Militar. Circulam discursos maniqueístas que ora elegem a Educação das Forças Armadas como modelo indiscutível para a Educação Básica, ora a repudiam como um paradigma educativo estático e hostil a um projeto educativo fundado na liberdade. Em todos os casos, impõe-se um denominador-comum: a crassa ignorância.

A verdade é que, fora os militares e quem atua no âmbito das Forças Armadas e auxiliares, e, especificamente, na área de ensino e da instrução militar, ninguém compreende realmente o que é Educação Militar. Inclusive quem fala sobre ela do alto da cátedra, por ter realizado pesquisas sobre o assunto, mas sem jamais ter acompanhado as atividades educacionais desenvolvidas pelas escolas, centros de instrução e batalhões. Sem sequer ter entrevistado docentes ou instrutores. É estarrecedor, nesses tempos da pós-verdade, como se pode fazer afirmações taxativas sobre o mérito ou demérito de instituições sobre as quais se sabe tão pouco, praticamente só o que se encontra na internet, algumas normas e regulamentos.

Ora, tenho uma advertência a quem se aventura nesse campo minado dos clichês de praxe. Trata-se de uma língua estrangeira que exige imersão gradual em mares vastos e profundos nos quais se mergulhe de um só fôlego, livres das amarras dos preconceitos, para que sejam intuídas as complexas realidades das escolas militares, encobertas pela aparente simplicidade das normas de ensino. E a imersão só se conquista se você pertence a esses lugares por direito, por ter feito concursos difíceis e passado, você mesmo, pelo processo formativo militar, extremamente árduo, o que lhe permite entender essa peculiaríssima realidade. Se não é por direito, pode ser por afeto, por afinidade eletiva ou mesmo por honestidade de propósito. E aí de nada adianta esbravejar e insultar aquilo que não se entende, e nem tem como ser entendido, de fora, porque aí é que as portas dessas escolas não serão abertas, mas, ao contrário, serão firmemente cerradas para proteger o que lá se passa, pelo valor do que construíram gerações de docentes e instrutores, pela inteligência coletiva que modelou tantas formas eficazes de ensinar e de avaliar, de transmitir a experiência moral e as lides do combate.

Nesse sentido, a insistência no ataque à Educação Militar, por parte de alguns, e a reivindicação eventual de ingerência civil, solapando o princípio da autonomia do ensino, parece não estar compromissada com a conquista da verdade, essa musa severa e inefável nas nossas inóspitas paisagens institucionais. Infelizmente, não se quer realmente conhecer nem aperfeiçoar a Educação Militar. Se assim não fosse, as atitudes seriam simpáticas e empáticas, no intuito de compreender a forma de se viver, de trabalhar, de construir o processo educativo. Entre verdadeiros educadores, tal crítica sem conhecimento de causa seria impensável, tal a necessidade que há de se colocar no lugar do outro, para entender as intencionalidades, os valores que impregnam as ações e as rotinas escolares, além das concepções construídas por gestores de ensino, professores e instrutores ao longo do processo de constituição dos sistemas de ensino das Forças Armadas.

Entre os detratores da Educação Militar, incluem-se os profissionais de áreas adversas ao enfrentamento das questões da formação humana, tais como as Ciências Políticas, Defesa ou Relações Internacionais, que costumam proferir os discursos contundentes sobre uma escola militar que desconhecem por completo. A verdade é que eles nem podem vir a entendê-la de forma adequada devido ao ferramental teórico de sua própria formação intelectual, que não inclui conceitos e habilidades do campo educacional, capazes de descortinar os universos das estratégias de ensino, avaliação, gestão de ensino e da educação moral.

Há também os docentes e pesquisadores da área de Educação e Magistério que têm uma atitude de aversão ao universo militar, que é identificada, há décadas, acriticamente, à truculência, limitação intelectual e autoritarismo. Um dos problemas é que eles conhecem somente a Educação Básica e o Ensino Superior, não tendo jamais estudado ou atuado no âmbito da Educação Profissional militar, em busca de saberes operativos e de ação prática.

A intenção desses pesquisadores não é, portanto, pedagógica, compromissada com a melhoria de ensino das Forças Armadas. Nem é acadêmica, voltada para o avanço do conhecimento científico sobre o ensino militar, nem para a construção de relações sinérgicas das Forças Armadas com as instituições educativas civis. Nada disso, meus senhores. O seu objetivo eventualmente é até político-partidário. É performático, na acepção emprestada por Lyotard, por ter compromisso pragmático com os efeitos que produz e não com a análise criteriosa dos fatos relacionados à Educação Militar.

Além disso, os detratores compartilham o ranço inconfessável às Forças Armadas há mais de meio século, e a postura revanchista. O espantalho continua sentado na sala, sem que nos apercebamos de sua presença, mas destila os seus eflúvios malsãos, enquanto tocamos a vida, com o olhar voltado para o futuro. Assim sendo, esses críticos se esmeram em construir castelos imaginários sobre o processo formativo militar, criando narrativas pessimistas e inconsistentes a partir de textos clássicos ou banais, tecendo palimpsestos sem o mérito da originalidade.

É uma lástima que assim seja. A literatura especializada serve para levantar problemas e cotejar os fatos e não pode substituir o contato com o objeto de estudo, pois sem a experiência, os textos funcionam como dogmas. E esses críticos, infelizmente, enxergam o ensino militar a partir desse telescópio obsoleto e enferrujado, que descortina somente turvas silhuetas e a ilusão de uma estéril imobilidade, própria de uma Instituição anacrônica que é incapaz de se modernizar para cumprir as suas atribuições adequadamente.

Na falta de pesquisas qualitativas sobre os sistemas de ensino das Forças Armadas, supõem-se que as escolas militares são espaços massivamente reprodutivos, nos quais não existe a possibilidade de invenção e de reinvenção pedagógica. Entretanto, se as escolas militares preservam tradições, são também, como toda a Educação Profissional, atreladas a mudanças nas formas de realizar a sua atividade-fim, que, no caso, é a guerra. Existe sempre uma preocupação com a atualização do ensino com base na doutrina. Eis porque, a cada três anos, quando muda o quadro de instrutores militares de um estabelecimento de ensino, costuma ocorrer, por injunção normativa, uma revisão curricular considerando os “inputs” tecnológicos e as diretrizes dos escalões superiores. Desse modo, unidades didáticas relacionadas com as operações de inteligência, de guerra cibernética e gestão e educação ambiental foram inseridas nos currículos militares nos últimos anos.

Entre os detratores da Educação Militar, pulsa ainda um pacifismo programático e imaturo que confunde a missão constitucional de defender a soberania nacional com postura imperialista e expansionista, preconizando o repúdio a qualquer tipo de conflito armado, à revelia do que a história política ensina sobre atitude defensiva e dissuasão. A despeito da quantidade de nações envolvidas em conflito armados nos dias de hoje.

Meus senhores, as sombras da guerra pairam sobre todos os Estados e é preciso que as Forças Armadas estejam em stand-by, sempre prontas para o combate. Ora, não estar em condições de lutar não é benevolência e pacifismo: é pura e simplesmente covardia e irresponsabilidade diante da Nação e do povo brasileiro.

Nesse contexto é importante enfatizar a Defesa Nacional como o conjunto de atitudes e medidas do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas. E para realizar as ações de Defesa, as Forças Armadas precisam de um preparo adequado, diferenciado do ensino civil, que não forma profissionais para enfrentarem situações de risco extremo, em prol de valores coletivos. Essa singularidade é incomensurável aos detratores do Ensino Militar, incapazes de compreender um paradigma educativo tão intenso e visceral, o único que pode inspirar a autossuperação ao soldado no cenário de caos e de morte que é próprio da guerra...

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Educação

Comentarios

Comentarios

A Maj foi incisiva, porém muito delicada. Aguardamos o desenrolar dos fatos. De longe, mas vislumbro a qualidade do ensino Militar, admiro a instituição. Nossa soberania é o ponto. Grata!

Elucidador texto sobre o ensino militar, principalmente em um momento de revanchismo por parte de instituições e atores políticos da nossa sociedade. O diálogo entre as academias (universidades) e a caserna faz-se necessário. Belo texto!

Que artigo espetacular, poucas vezes absorvi tanta sabedoria em tão poucas linhas.

Austregésilo de Athayde, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, dizia que não havia formação educacional tão boa como a dos militares das Forças Armadas. Max Gehringer, comentarista da Globo, disse certa vez que o ano de Serviço Militar Obrigatório lhe ensinou mais do que qualquer curso de especialização ou pós-graduação que fizera. Nenhuma dessas afirmações é possível encontrar na internet, como se a rede mundial fosse a biblioteca de Alexandria, queimada por árabes e cristãos, na tentativa de apagar a verdade.

Ranço, ignorância, vingança, preguiça etc, todos sentimentos mesquinhos fertilizados por idiossincrasias que se perpetuam ao longo das décadas e nos impedem de avançar aquém e além dos Pirineus, como se o certo estive em um só dos lados.

Um texto para ser espalhado e emoldurado, cujas palavras servem de inspiração para a defesa dos valores da caserna, dos nossos valores.

Parabéns e muito obrigado, Maj Magalhães. A Sra enobrece o segmento feminino da Força Terrestre e nos prestigia com sua capacidade fazer tão claro o que precisa ser conhecido pelos brasileiros, principalmente pela Comunidade Acadêmica nacional. Escreva mais!

Excelente conteúdo 

Excepcional texto, particularmente, em tempos onde a razão, a coerência, a ciência, o rigor acadêmico, o compromisso com a pesquisa e a honestidade de propósitos são muitas vezes neglicenciados por falsos e autointitulados "especialistas", que se aventuram em falar sobre Educação Militar. Parabéns Major Magalhães pelo brilhante e silente trabalho, fundamentado por quem conhece a Educação Militar do alto da cátedra e na prática militar docente, forjados na academia e no chão de fábrica da sala de aula.

Excelente análise desta realidade...

Bom artigo. Sugiro que ele seja reescrito com linguagem mais simples para poder ser lido e entendido por um número maior de pessoas. Parabéns Major Magalhães!                                  

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