Crimes de guerra e ação fiscalizatória em conflitos armados

Autor: Coronel Eduardo Bittencourt Cavalcanti

Segunda, 09 Julho 2018
Compartilhar

A respeito da repressão às violações das normas incriminadoras ou do cometimento dos intitulados crimes de guerra, cabe, inicialmente, uma remissão sobre as regras que regem a conduta dos participantes de um conflito armado.

O comportamento nesse cenário é regulado pelo Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA), também denominado Direito Internacional Humanitário (DIH). Trata-se de área do Direito Internacional dedicada à regulação do limite das hostilidades, com uso de determinados meios e métodos, e ao resguardo de certos bens e do zelo humanitário com pessoas protegidas, como feridos, enfermos, prisioneiros de guerra, internados civis, populações civis, e suas subcategorias.

O DICA estabelece mecanismos para garantir o respeito a essas normas, reconhece a responsabilidade individual e considera responsáveis pelas violações às regras os próprios indivíduos que as cometeram, ou que tenham dado ordens a terceiros para as cometerem, exigindo que esses infratores sejam punidos. Entre as infrações estabelecidas pelo DICA, as mais graves são consideradas crimes de guerra e seus autores são processados e julgados como criminosos.

No universo dos delitos de maior gravidade, incluem-se: homicídio intencional, tortura, tratamentos desumanos e atos que causem, intencionalmente, grandes sofrimentos desnecessários, conforme a previsão contida nas Convenções de Genebra de 1949, nos seus Protocolos Adicionais de 1977, e no Artigo 8º do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. O Brasil internalizou esses atos internacionais ao seu ordenamento jurídico pátrio, os quais estão em plena vigência.

Quanto à ação fiscalizatória do dever de cumprir e fazer cumprir as disposições normativas, o Estado é o principal garantidor do Direito Internacional dos Conflitos Armados e assume obrigações para afastar e mitigar violações que possam ser cometidas por seus agentes; ele também é o responsável pela ação ou omissão diante de particulares ou grupos que realizem, sem autorização, funções "próprias de Estado" e incorram em infrações decorrentes desse exercício.

Portanto, a fiscalização primária é do Estado, que tem a obrigação de reprimir todas as violações ao regramento humanitário e de dar publicidade aos atos infracionais também cometidos pela parte oponente. Aduzindo a esse dever fiscalizatório, há a previsão no Artigo 90 do Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra de 1949 (PA I), da constituição de uma Comissão Internacional para o Apuramento dos Fatos.

A Comissão é um órgão permanente, cuja função principal consiste em investigar todos os fatos que se alega constituírem infrações graves às disposições do DICA. É um mecanismo importante, que cuida da aplicação e do cumprimento do regramento humanitário em tempos de conflito armado.

Outra fonte de informações sobre supostas violações às leis do Conflito Armado é o jornalismo, considerando-o subárea das Ciências Sociais impregnada de responsabilidade social. Em determinado instante, uma matéria jornalística se transforma em documento relevante na busca do sancionamento das violações.

Quanto ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), como instituição neutra, imparcial e independente, faz-se imperioso ressaltar sua condição de principal promotor e divulgador do DICA no âmbito mundial. Uma vez que a qualidade de fiscal é incompatível com os requerimentos de neutralidade, pode ser que não se contemple nenhuma atribuição dessa espécie ao CICV, pois seu papel é de guardião e não de fiscal, e menos ainda de juiz.

São exemplos de violações graves ao DICA: matar ou ferir militares que tenham deposto suas armas e que não participam mais das hostilidades; e recrutar crianças para participar das hostilidades. A primeira condenação proferida pelo Tribunal Penal Internacional foi anunciada na Câmara de Julgamento pelos crimes de guerra de recrutamento e alistamento de crianças menores de 15 anos e pelo uso delas em conflitos no Congo, nos anos de 2002 e 2003.

Fica claro e evidenciado que crimes de guerra podem ocorrer não somente em conflitos armados internacionais (CAI), como também em conflitos armados não internacionais (CANI). A esse respeito, há um paradoxo devido à configuração da lei penal militar brasileira. É possível o cometimento de crime de guerra por agentes envolvidos em um conflito armado não internacional de fato, contudo, a denúncia deverá ser por violação da norma incriminadora inerente aos crimes militares em tempo de paz, diante das condições conceituais exigidas pelo Código de Penal Militar – "Crimes militares em tempo de guerra" (Art. 10), "Tempo de guerra" (Art. 15) e "Crime praticado em presença do inimigo" (Art. 25).

Por oportuno, merece destaque a adequada preparação das Forças Armadas como fato gerador do efeito dissuasório desejado para inibir as práticas contrárias à lei. O Estado brasileiro obriga-se a atuar de maneira concordante com diversas obrigações internacionais assumidas, observando as convergências entre as Convenções de Genebra e as disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, como o direito à vida das pessoas fora de combate e o direito de não ser submetido a torturas e tratamentos desumanos, discriminatórios, cruéis ou degradantes.

Inevitavelmente, o regramento humanitário e os direitos humanos incidem, cada vez mais, no amplo espectro das operações militares, o que demanda das Forças Armadas atuação mais cuidadosa, precisa, eficiente e eficaz na utilização da força legal para enfrentar a violência, sob avaliação dos parâmetros de efetividade e de controle dos organismos de supervisão e da opinião pública.

Nesse contexto, a atual "Diretriz para Integração do Direito Internacional dos Conflitos Armados às Atividades do Exército Brasileiro" (2016) visa estabelecer as orientações básicas, de caráter geral, para subsidiar o planejamento e as ações de integração do DICA, em todos os níveis de ensino, preparo e emprego do Exército Brasileiro, por meio de operadores qualificados, fortificando a cultura de respeito aos direitos fundamentais da pessoa e aos bens protegidos, durante o cumprimento da missão constitucional da Força Terrestre.

O Exército Brasileiro vem atuando por meio do aproveitamento de lições aprendidas de países que atravessam conflitos armados e da designação de militares para capacitação em Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) e em Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) nas nações amigas. Além disso, tem cooperado com envio de instrutores para o International Institute of Humanitarian Law, na Itália, e de especialistas nas consultas temáticas promovidas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha.

Medidas sancionatórias devem ser aplicadas, com eficácia, nos casos de desrespeito ao DICA, para impedir que um comportamento reprovável seja tolerado ou mesmo aceito. As sanções penais e disciplinares assumem a função preventiva dissuasória, a fim de contribuir com a conscientização do dever de observar as normas e a demonstração de que a cadeia de comando defende, com firmeza, os valores éticos, profissionais, militares e fundamentais do DICA.

A regulamentação do uso seletivo da força exige operar sempre nos limites da lei, permitindo a conquista de parâmetros de confiança da opinião pública. O apoio da população às ações empreendidas pelo Exército Brasileiro, sob os contornos legais e a ética profissional militar, faz parte do êxito operacional para se alcançar o estado final desejado.

Comentarios

Comentarios
Excelente artigo. Parabéns!
Parabéns ao Cel Bittencourt pelo artigo apresentado. tive o privilégio de participar, ao seu lado, do curso de Direito Internacional em Conflitos Armados, em Spiez, Suíça, no ano de 2008. Fico bastante contente de ver o seu aprofundamento no tema, assunto de importância ímpar para as pretensões de um exército que se projeta no cenário internacional como uma potência regional e mundial. Grande abraço.
“Feliz é aquele que ensina o que sabe; e aprende com aquilo que ensina”. Congratulações Cel BITTENCOURT pelo edificante artigo e desprendimento em aplicar e compartilhar seus conhecimentos.
Dr Alexandre! Seguimos no propósito de integrar o Direito Internacional dos Conflitos Armados às necessidade conjunturais, não somente das atividades operacionais das Forças Armadas, mas também do mister dos demais Poderes e das Funções Essenciais à Justiça. Nada adianta um conhecimento estéril, que não é compartilhado, pois nada reproduz... Obrigado pela opinião!
Cel Echart! Sua leitura é acompanhada de um pensamento crítico! A nossa chance de conhecer as Forças Armadas Suíças e compartilhar os conhecimentos do Curso " Law of Armed Conficts", bem promovido pelo Comitê Internacional de Medicina Militar, foram oportunidades singulares para incrementar a formação de especialistas em DICA, no Brasil, o que é exigível do País como protagonista no cenário regional e mundial! A Escola Superior de Guerra possui seu próprio Curso de DICA, cada vez mais prestigiado e com matrículas concorridas por militares e autoridades civis! Obrigado pela opinião!
Cel Bittencourt, parabéns pelo artigo e estou compartilhaando com os Cadetes da AMAN. Obrigado pela possibilidade de ler seu artigo.
Cel Bittencourt, Parabéns pelo excelente texto! Estimulou-nos a refletir sobre a importância da aplicação do DICA, que tem como papel fundamental a preservação de direitos tão caros ao ser humano, mesmo diante de situações graves como o Conflito Armado Internacional (CAI) ou o Conflito Armado Não Internacional (CANI). Além disso, ilustra bem o cuidado que se teve com a implantação do DIH no nosso Exército Brasileiro, cuja disseminação esperamos seja ampliada cada dia mais na nossa Instituição. Fraterno abraço!
Parabéns, Cel Bittencourt pelo excelente texto. Sua atuação como professor-tutor no Curso de Direito Internacional dos Conflitos Armados do Campus Brasília da Escola Superior de Guerra se distingue cada vez mais com seus estudos e aprofundamento no tema. Abraços,
Excelente texto, Cel Bittencourt! Suas reflexões sobre o DICA (ou DIH) são sempre muito enriquecedoras para os que estudam esse sub-ramo tão interessante do Direito Internacional Público. As exigências internacionais no concerto das Nações são cada vez mais presentes. O Brasil possui grandes e importantes compromissos nessa área e o Exército Brasileiro está inserido profundamente nessa realidade. Esperamos que o estudo do DICA e sua implementação efetiva cresça cada dia mais em nosso País, em especial nas Forças Armadas brasileiras, que sempre se destacam no cenário internacional em termos relativos à observância da conduta ética de nossos soldados, seja em operações, seja nos fóruns de estudo e discussão do DIH. Fraterno abraço
Prezado Cel. Bittencourt. Parabenizo pelo excelente artigo, ao mesmo tempo em que paramos para realizar uma reflexão do que acontece em território brasileiro, sendo a luta do Estado para a manutenção da lei e da ordem, no conflito contra as Organizações Criminosas, que estão cada vez mais organizadas. A reflexão sobre os delitos praticados por seus integrantes e também a caracterização de um conflito não internacional, nos faz repensar a aplicação da legislação penal vigente, podendo haver uma abrangência maior, estendendo a aplicação de legislação para a prática de crimes de guerra, visto que esses grupos criminosos não respeitam quaisquer leis ou regras vigentes. Parabéns mais uma vez e um grande abraço.

Navegação de Categorias

Artigos Relacionados