Caminhos para a Educação Ética Profissional Militar

Autor: Cel Denis de Miranda

Segunda, 04 Março 2024
Compartilhar

A profissão militar tem características próprias que a distinguem de outras carreiras profissionais e, nesse escopo de distinções profissionais, estão os preceitos da ética militar, os quais delineiam aspectos da honra, dos deveres, das condutas, da dignidade e outros tantos que devem ser respeitados por cada membro da instituição.

Distinto também está o cenário descrito no recém-lançado manual de fundamentos “Conceito Operacional do Exército Brasileiro 2023-2040”, que aponta para a maior dificuldade de tomada de decisão ética, no ambiente operacional. A indicação é de um cenário marcado pela hiperconectividade, automação ampliada, judicialização do combate, etc. Surge, ainda, a preocupação com a moral injury (lesão moral), a qual acomete os militares durante e após o combate, pela exposição a conflitos/dilemas éticos profundos, que cada vez mais ferem as almas dos combatentes.

Na atualidade, não resta suficiente ensinar a cada novo ingressante na instituição os preceitos da ética militar, listados no Estatuto dos Militares (Lei Nº 6.880/1980), pois um código de ética profissional não é para ser apenas memorizado. Além de estar na mente, precisa estar no coração. Os preceitos éticos precisam ser vividos e incorporados à identidade militar do indivíduo pela prática repetida em exercícios simulados que exijam a correta tomada de decisão ética.

Mesmo parecendo que o Exército Brasileiro é suficientemente forte no resguardo de sua cultura ética profissional, basta ampliarmos as balizas dos marcos temporais para se perceber as pressões que tem sofrido das transformações da sociedade ocidental no quesito moral e ético.

A figura abaixo relaciona, em uma sequência temporal, os principais enfoques éticos com os filosóficos, evidenciando que as éticas elaboradas para o bem coletivo (das Virtudes, Cristã e Deveres) foram seguidas por éticas voltadas para o bem do indivíduo (dos Prazeres e dos Valores).

 

Imagem do autor a partir da síntese de Martins Filho1

O impacto dessa transição das éticas elaboradas para o bem de todos para outras que visam ao bem próprio tem modificado a sociedade. É possível perceber que as mudanças sociais recentes chegam de forma plural. Nos rótulos desses pacotes de mudanças sociais estão descritos acrônimos tais como VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo) e BANI (frágil, ansioso, não linear e incompreensível). No contexto militar, o General Richard F. Nunes cunhou o acrônimo PSIC, elucidando que “estamos diante de um mundo precipitado, superficial, imediatista e conturbado” (NUNES, 2022).

Qual enfoque ético propicia o efetivo exercício profissional militar no Século XXI?

Dos antigos filósofos gregos herdamos a ética das virtudes (eudemonológica), percebida como a ética clássica, elaborada por Platão e Aristóteles, para conduzir o homem à felicidade natural. A ética cristã (das bem-aventuranças) constitui uma elevação da ética natural, pelas exigências maiores que traz, em face do bem mais elevado para o qual aponta: a felicidade eterna (S. Agostinho e S. Tomás de Aquino). A ética dos deveres (legalista), elaborada por Descartes e Kant, surge na modernidade, focando nas obrigações e proibições; visa ao puro dever e não mais diretamente à felicidade, a qual seria alcançada indiretamente pelo merecimento do cumprimento dos deveres. A ética dos prazeres (utilitarista), elaborada por Bentham a partir de Epicuro, prega a renúncia a prazeres inferiores e imediatos em vista de prazeres futuros e superiores, observando a ótica em que os fins justificam os meios. Na pós-modernidade, surge a ética dos valores (axiológica) centrada naquilo que vai além do que é material e factual para atingir o essencial (valores), sob a égide emocional (SCHELER).

Explorando o resumo apresentado, descarta-se de pronto a maior parte da ética dos prazeres, pois a atividade militar não pode focar nos fins desejados por cada indivíduo, descurando, no caminho, do estrito cumprimento das leis e normas. Por sua vez, a ética cristã pode contribuir no que o anseio individual colimar para a atividade militar, necessariamente coletiva. A respeito, ainda, da ética dos deveres, percebe-se que há a conveniência de uma reformulação da forma como ela é apresentada, pois o destaque para a exigência do estrito cumprimento de normas repercute nas novas gerações como discurso arbitrário e antipático, em que o dever afasta o prazer (MARTINS, 2009). Esse cuidado com a receptividade repulsiva dos deveres pode ser entendido pela atratividade que a ética dos valores tem sido abraçada por boa parte da sociedade pós-moderna. Em tempos de frenética busca por prazeres imediatos, os direitos são exigidos e os deveres adiados ou ignorados. Como não bastasse todo o desmanche até aqui evidenciado, surge o emotivismo (AYER, J. A.) em que os desejos pautam as escolhas pessoais, visando à própria satisfação, na maximização dos prazeres. A ética dos valores (SCHELER) é fruto dessa transmutação de interesse do bem de todos para o bem próprio. A intuição emocional rege o indivíduo para atingir o que considera essencial (valores), para além do que é meramente factual (bens). O que tem valor para o próprio indivíduo é o que lhe move na sociedade atual, ferindo de morte a solidariedade, elemento vital das sociedades saudáveis.

Na verdade, todos os modelos têm coexistido. É evidente que a ética axiológica (dos valores) tem mais aderência hoje que as demais, daí que o individualismo estimulado tem se feito sentir no corpo social por doenças da alma, como depressão e suicídio em números crescentes.

Acerca da mais antiga das éticas, a ética das virtudes, Aristóteles, na obra “Ética a Nicômano”, afirma que a virtude guarda relação com o prazer e a dor, porém o indivíduo não pode se perder na estrita busca por prazer e fuga da dor. Ele precisa equilibrar prazer e dor no seu agir em direção às ações nobres (virtudes). Espera-se que a prática das virtudes incline cada militar para o bem, resultando em sua felicidade profissional plena, como um propósito pessoal que vale a pena viver. O compromisso com a defesa da pátria é o elo que reúne os militares em torno do propósito comum. A virtude, portanto, é uma disposição de caráter que torna o homem bom, enquanto o excesso ou defeito, conforma o vício. Algumas das principais virtudes são: a coragem (o defeito da coragem é o medo e o excesso a temeridade); a generosidade (o defeito é a mesquinhez e o excesso é a prodigalidade); a prudência (o defeito é o simplismo e o excesso é malícia); a justiça (o defeito é a perda e o excesso é o ganho).

Que vida profissional eu quero viver?

Esse é o questionamento ético que cada jovem faz ao buscar uma carreira profissional. No ingresso, muitos não conhecem o código ético-profissional por completo e vão assimilando seus preceitos a cada dia de convívio na caserna. A necessidade de pertencimento ao grupo de convivência profissional faz com que os ingressantes busquem se moldar ao que é considerado bom e certo, seguindo os exemplos daqueles considerados como referências (estereótipos), os instrutores, os profissionais mais antigos, os patronos, primeiramente, Caxias.

Como devo agir profissionalmente no Exército?

Esse é o questionamento moral que cada jovem precisa fazer ao ingressar no Exército. Diante dos princípios e regras morais da instituição militar, cada jovem deverá se adaptar rapidamente para ser plenamente aceito pelo grupo mais amplo de profissionais da caserna. Para isso, os reforços positivos e negativos servem para conduzir o comportamento dos novos que chegam a cada ano. Permanecerão na instituição aqueles que se adaptarem, cedo ou tarde, à cultura militar.

Palavras finais

A abordagem desenvolvida neste artigo acerca da Ética Profissional Militar foi basicamente filosófica, porém cita-se a relevância da Sociologia, da Psicologia e da História Militar como imprescindíveis para o entendimento das relações do profissional militar consigo mesmo, com outros, com a sociedade, no passado, presente e futuro. Novas questões que acometem os militares hoje, como a maior dificuldade para tomada de decisão ética no ambiente operacional e a lesão moral, fazem crer que a interdisciplinaridade na educação ética profissional militar conduzirá a melhores resultados, “vacinando” cada indivíduo militar contra os efeitos psicológicos nocivos dos cenários de guerra presentes e futuros.

Muitos percebem que boa parte da questão ética vivida na atualidade decorre da crise de valores, como uma consequência direta da modernidade (tardia, líquida, reflexiva...). Assim, a escala desajustada de valores dos jovens que ingressam nas escolas militares pode ser o principal impeditivo para a formação da identidade militar. Contra ou apesar disso, surgem três caminhos possíveis a explorar: 1) o caminho da seleção psicológica apurada. Tal estudo já está em andamento pela equipe do Centro de Psicologia Aplicada do Exército (CPAEx), visando facilitar o processo de socialização nas escolas militares e evitando evasões por incompatibilidades éticas crônicas; 2) o caminho do desejo do pertencimento, por ser essa uma característica humana invariável. O desejo de pertencimento é a chave que se mostra viável para conquistar a disposição dos jovens do século XXI para a mudança de comportamento desejada. A repetição dos comportamentos esperados na caserna promoverá o hábito; o hábito se conformará em atitude; a atitude se solidificará em valores. Esse é o modelo de socialização que promove a identidade militar; 3) o caminho da necessária capacitação dos docentes para operarem o processo de socialização diferenciado que o cenário atual exige, pois os jovens que ingressam hoje no Exército evidenciam as marcas de uma sociedade adoecida pela ética axiológica e a dos prazeres, o que exigirá dos socializadores maior esforço e compreensão dos diversos fatores envolvidos. Não bastará repetir o processo de socialização que esses instrutores e professores experienciaram a seu tempo. Novos cenários exigem novas ideias e novas práticas.

Por fim, cabe reforçar que a educação ética profissional militar visa contribuir com a construção da identidade militar, diferenciando o profissional militar autêntico de um mercenário. Em termos éticos, o mercenário vive para si, enquanto o profissional militar autêntico vive para muito além de si. Ambos podem ser tecnicamente competentes, porém, o militar autêntico é capaz de viver segundo as virtudes, os valores e os deveres militares, dedicando-se inteiramente ao serviço da Pátria, defendendo as instituições com honra e integridade.

 

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2015.

BRASIL. Lei Nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Estatuto dos Militares. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6880.htm> Acesso em: 12 dez. 2023.

BRASIL. Manual de Fundamentos Conceito Operacional do Exército Brasileiro - Operações de Convergência 2040. EB20-MF-07.001. 1ª edição 2023. Disponível no site: <file:///C:/Users/0187820337/Downloads/port_971-eme_mf_conops_eb-op_cnvg_2040_eb20-mf-07.101-1.pdf>. Acesso em: 19 dezembro 2023.

LA TAILLE, YVES DE. Moral e Ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006.

LA TAILLE, YVES DE [et al.] Crise de valores ou valores em crise? Porto Alegre: Artmed, 2009.

MACINTIRE, ALASDAIR. Depois da virtude: um estudo em teoria moral. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

MARTINS FILHO, IVES GANDRA DA SILVA. Ética das virtudes X ética dos deveres: um modo de olhar para o código de ética da magistratura nacional. Publicado em jul. 2009. Disponível em <Https://hdl.handle.net/20.500.12178/170051> Acesso em: 19 dezembro 2023.

NUNES, RICHARD FERNANDEZ. O Mundo em Acrônimos e a Comunicação Estratégica do Exército. Publicado em 27 abril 2022. Disponível em <https://eblog.eb.mil.br/index.php/menu-easyblog/o-mundo-em-acronimos-e-a-comunicacao-estrategica-do-exercito.html> Acesso em: 19 dezembro 2023.

NUNES, RICHARD FERNANDEZ. O Mundo PSIC e a Ética Militar. Publicado em 01 Fev 2023. Disponível em <https://eblog.eb.mil.br/index.php/menu-easyblog/o-mundo-psic-e-a-etica-militar.html> Acesso em: 19 dezembro 2023.

ROYAL, BENOÎT. A ética do soldado francês em combate. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2022.

1 MARTINS FILHO, IVES GANDRA DA SILVA. Ética das virtudes X ética dos deveres: um modo de olhar para o código de ética da magistratura nacional. Publicado em maio 2009. Disponível em <https://bd.tjdft.jus.br/jspui/handle/tjdft/2177> Acesso em 19 Dez 2023.

Comentarios

Comentarios
Bem explicado e bem fundamentado em termos conceituais, o artigo flui para o campo da ética militar, evidenciando os prós e contras das diversas correntes na linha do tempo. Apreciei a leitura!

Navegação de Categorias

Artigos Relacionados