O século XXI se caracterizou inicialmente por conflitos de baixa intensidade, com as principais potências se concentrando em lidar com grupos terroristas ao redor do mundo (Gill, 2022). No entanto, com a redução do poder da maioria dos grupos terroristas (com a notável exceção do Talibã), os militares se reorientam para as operações convencionais, afastando-se da era unipolar e, em vez disso, indo para a realidade multipolar (Gill, 2022).
Combinada às mudanças científicas houve a "Revolução nos Assuntos Militares - RAM" (Revolution in Military Affairs), no envolvimento em programas de modernização e novas doutrinas, na integração e guerra de armas combinadas, para atingir os objetivos de forma ágil, com o mínimo de danos colaterais (Gill, 2022). Esta discussão adiciona a RAM, conceito estadunidense impulsionado pela Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) integrada às novas estruturas militares (Neuneck, 2008), à tecnologia blockchain, que fora a sua aplicação nas finanças, tem sido pesquisada pelos governos, inclusive no setor de defesa.
De acordo com Mohamed, Abas e Yusof (2022), o blockchain será uma revolução nas Forças Armadas a longo prazo se muitas aplicações adicionais forem descobertas, bem como se for adotado com efetividade. Para melhor compreensão das possibilidades da tecnologia, os militares devem explorar questões como transparência, integridade de dados, manufatura aditiva, impressão 3D, contratação operacional, blockchain quântico para comunicações resilientes e estimativa logística (Mohamed, Abas & Yusof, 2022).
O advento do blockchain surpreendeu empresas e governos (Cornella, Zamengo, Delepierre & Clementz, 2020). Entretanto, vários pesquisadores estão céticos quanto às vantagens do blockchain para o setor de defesa, segundo Cornella et al. (2020), no Centro de Interoperabilidade do Exército Europeu (European Army Interoperability Center - EAIC).
Por outro lado, para Korsak e Fuqua (2021), o Departamento de Defesa estadunidense (United States Department of Defense - DoD) interessou-se por blockchain na gestão de suprimentos em 2018, pela Agência de Logística (Defense Logistics Agency - DLA). Adiante, a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (Defense Advanced Research Projects Agency - DARPA) testou a tecnologia em 2019, com benefícios à segurança cibernética na Estratégia de Modernização Digital do DoD (Korsak & Fuqua, 2021).
Este artigo tem como objetivo discutir o blockchain e suas características em proveito das operações militares, com base no contexto recente das diversas inovações tecnológicas, a partir da Indústria 4.0 (I4.0) ou 4ª Revolução Industrial (4ª RI). Para atingir tal objetivo, buscou-se responder ao seguinte questionamento: a tecnologia blockchain pode ser considerada uma evolução ou revolução nos assuntos militares?
Recentemente, com a popularização dos criptoativos, tornou-se comum que grande parte do público, inevitavelmente vincule a tecnologia blockchain à famosa criptomoeda bitcoin (Korsak & Fuqua, 2021). Na esteira desta discussão, a literatura trouxe aplicações mais amplas que a tecnologia pode proporcionar, como no exemplo de que qualquer dado ou informação pode ser “tokenizado” e inseridoem um blockchain (Korsak & Fuqua, 2021).
Para Roopika (2020), o contexto histórico do blockchain não é antigo, regressando a meados da década de 1990, quando dois cientistas, Stuart Haber e Scott Stornetta, tentavam resolver uma questão importante: como manter o passado seguro e manter a informação digital segura e impermeável a alterações? Nessa linha de raciocínio, abordou-se também o célebre problema computacional dos generais bizantinos (Roopika, 2020).
Em 1991, Haber e Stornetta publicaram o primeiro artigo para planejar a utilização de uma cadeia de blocos protegidos criptograficamente, visando salvar a integridade de dados anteriores (Roopika, 2020). Em 1993, à expansão do spam e de outros erros, criou-se a ideia da prova de trabalho (proof-of-work), para as contra-medidas (Roopika, 2020).
Finalmente, em 2008, Satoshi Nakamoto trouxe o white paper que introduziu o blockchain na concepção da criptomoeda, em “Bitcoin: A Peer-to-Peer E-Cash System” (Roopika, 2020). As características foram descritas no método de negociação do bitcoin, consolidando criptografia, engenharia da computação e teoria dos jogos (Roopika, 2020).
Esta informação é tão regular que algumas pessoas entendem que o bitcoin e o blockchain são equivalentes (Roopika, 2020). Entretanto, vale destacar que o bitcoin é uma criptomoeda, na forma de aplicação construída com base em blockchain, uma tecnologia extremamente eficiente para resolver problemas específicos (Roopika, 2020).
Conceitualmente, o blockchain é uma sequência de blocos conectados com assinaturas digitais em rede, descentralizada e distribuída (Juan, Perez-Bernabeu, Li, Martin, Ammouriova & Barrios, 2023). Sendo gerenciado por um grupo de nós em rede, cria um livro-razão digital público e descentralizado, difícil de ser corrompido (Juan et al., 2023).
No blockchain, nenhuma pessoa ou entidade tem controle sobre ele, e nenhuma delas pode voltar atrás e apagar ou alterar um histórico de transações (Asmare, Legese & Birara, 2023). A tecnologia combina transparência, imutabilidade e segurança para a rede, sendo quase impossível hackear ou atacar todo o sistema (Asmare, Legese & Birara, 2023).
Outra característica da tecnologia blockchain é o uso da criptografia para proteger transações entre os nós da rede (Asmare, Legese & Birara, 2023). A criptografia garante a segurança, integridade e verificação das informações transmitidas entre os nós da rede, sendo quase impossíveis de serem corrompidos (Asmare, Legese & Birara, 2023).
Ao se utilizar um livro-razão público, descentralizado e distribuído por blockchain, pode-se criar representações virtuais de praticamente qualquer ativo físico, como uma casa, pintura ou joia (Juan et al., 2023). Esse processo, conhecido como tokenização ou digitalização de ativos, envolve transformar direitos de ativos em tokens digitais que podem ser negociados de forma segura e confiável com blockchain (Juan et al., 2023).
Para o analista Paul Tierno (2024), a tokenização se tornou sinônimo de como as discussões sobre a tecnologia blockchain mudaram da criptomoeda - um de seus usos principais - para outras aplicações. Embora os criptoativos tenham sido caracterizados por volatilidade, alguns membros das finanças descentralizadas e tradicionais (centralizadas) percebem a tokenização como o próximo passo na evolução das finanças (Tierno, 2024).
Apesar da adoção de tecnologias semelhantes, criptomoedas e tokenização são produtos distintos. Criptomoedas - como bitcoin e ethereum - são ativos digitais criados de forma exclusiva em seus blockchains associados (Tierno, 2024). De acordo com o referido analista, a tokenização, em contraste, emprega a capacidade de rede dos blockchains para escrever programas que transacionam ativos do mundo real (Real World Assets - RWAs).
Os benefícios sugeridos da tokenização são semelhantes aos das criptomoedas, incluindo transações mais ágeis, economia de custos e eficiência aprimorada (Tierno, 2024). As transações em blockchain ocorrem em tempo real, uma melhoria em relação aos prazos tradicionais de pagamento e liquidação que podem levar alguns dias (Tierno, 2024).
A tokenização simplifica as operações, permitindo aos ativos serem facilmente representados em tokens, enquanto os contratos inteligentes (smart contracts) automatizam processos, como inventários e aquisições, aumentando a escalabilidade e reduzindo a intervenção manual (Kostopoulos, Stamatiou, Halkiopoulos & Antonopoulou, 2025). Além disso, os contratos inteligentes permitem que as etapas de transações multipartes sejam programadas para serem executadas ao mesmo tempo (Tierno, 2024).
De forma didática, os contratos inteligentes podem ser definidos como programas de blockchain que autoexecutam transações quando condições predeterminadas são atendidas (Tierno, 2024). Coerente com a proposta do blockchain, os contratos inteligentes podem ajudar a reduzir o número de intermediários para as transações (Tierno, 2024).
Segundo a pesquisadora Sônia Silva (2022), ao se considerar os avanços do blockchain, temos ainda a Web 3.0, que é um termo genérico para uma nova geração de aplicações e serviços baseados na internet que facilitam a troca de valor numa rede descentralizada. Baseada na Web 2.0, a versão 3.0 é denominada de “web semântica” porque os computadores, e não os humanos, podem ler as páginas (Silva, 2022).
Inclui Inteligência Artificial (IA) e computadores que não precisam transitar por bancos de dados centralizados para processar dados, sendo a evolução da Web atual (Silva, 2022). Desenvolve-se há mais de uma década e se encontra em estágio inicial, no objetivo de criar uma internet mais inteligente e interconectada de marcação semântica e IA (Silva, 2022).
A Web 3.0 permitirá interagir com a internet de forma mais natural e facilitará a criação de aplicativos inteligentes que entendam e respondam às solicitações dos usuários (Silva, 2022). Enquanto a Web 2.0 foi impulsionada principalmente pela introdução de tecnologias móveis, sociais e de nuvem, a Web 3.0 é alimentada por quatro novas camadas de inovação: edge computing; descentralização; IA e aprendizado de máquina; e blockchain.
Na síntese deste trabalho, o caráter inovador do blockchain reflete-se nos criptoativos, tokenização e contratos inteligentes, além da Web 3.0, de forma que é relevante conhecer as suas aplicações militares. Assim, a tecnologia blockchain pode transformar as operações, sobretudo em segurança e eficiência (Kostopoulos et al., 2025).
Os aspectos pesquisados integram-se com tecnologias emergentes, como IA, Internet das Coisas (Internet Of Things - IoT), aplicações em drones, etc (Kostopoulos et al., 2025). Tais áreas incluem o blockchain nas comunicações, transparência, compartilhamento de dados e contratos inteligentes para a gestão da manutenção (Kostopoulos et al., 2025).
À medida que os militares protegem dados confidenciais e sistemas críticos, a integração do blockchain oferece caminho promissor para reforçar a segurança na era digital (Kumar & Khan, 2024). Embora vários pesquisadores possuam pontos de vista distintos sobre o blockchain, sua popularidade aumenta (Tripathi, Ahad & Casalino, 2023).
No futuro, a tecnologia crescerá com inovações na área de melhoria da escalabilidade e minimização do consumo de energia (Tripathi, Ahad & Casalino, 2023). Além disso, nas futuras gerações da tecnologia blockchain, ela pode ser combinada com outras tecnologias emergentes, como aprendizado profundo (deep learning) e IA, para criar inteligência por meio de contratos inteligentes, consenso, etc (Tripathi, Ahad & Casalino, 2023).
A popularidade do blockchain decorre em grande parte dos criptoativos, mas suas potencialidades vão além da criptoeconomia (Juan et al., 2023). Tokens fungíveis, que são intercambiáveis, podem facilitar transações de valor, enquanto contratos inteligentes usando tokens não fungíveis permitem a troca de ativos digitais (Juan et al., 2023).
Empregando o blockchain, as plataformas tokenizadas criam mercados virtuais que operam sem a necessidade de uma autoridade central (Juan et al., 2023). Reforça-se, ainda, que o blockchain traz elevada segurança e confiabilidade (Juan et al., 2023).
Por outro lado, com o crescimento exponencial da internet, aumentam as preocupações com a segurança cibernética, na mudança da arquitetura de um modelo de leitura/gravação para um paradigma mais recente baseado em blockchain, a Web 3.0 (Silva, 2022). Junto das oportunidades, na Web 3.0, há riscos que precisam ser detectados e mitigados, como as violações de dados, ciberataques e engenharia social (Silva, 2022).
A Web 3.0 é um mundo do metaverso, conceito que pode tornar a guerra convencional obsoleta (Ahona, 2022). Em conflitos tradicionais, nações entram em guerra por algo tangível e valioso para elas, de forma que batalhas reais acontecendo em campo virtual podem soar como ficção científica, mas, aparentemente, não é tão absurdo (Ahona, 2022).
Na busca de conclusões, dadas as características do blockchain na tokenização, contratos inteligentes, Web 3.0 e metaverso, há a possibilidade de várias aplicações na guerra do futuro. Para Korsak e Fuqua (2021), há capacidades em cibernética, operações e logística. Nesse raciocínio, Cornella et al. (2020) indicam que o blockchain trará segurança às comunicações e logística, tornando as Forças Armadas mais eficientes.
O desenvolvimento da tecnologia blockchain oferece maior confiança e disponibilidade de dados que podem ajudar a moldar a logística e planejamento militares (Cornella et al., 2020). Para tais autores, os Estados Unidos pretendem usar o blockchain para bancos de dados, logística e impressão 3D, semelhante à China e Rússia.
Nos próximos anos, ao se combinar com a IA, IoT, computação em nuvem (cloud computing) e big data, o blockchain terá prioridade para ser aplicado em gestão, suporte e segurança (Zhu, Zhang, Ju & Wang, 2020). Desta maneira, é fundamental pesquisar o potencial da tecnologia blockchain e prever seu impacto no campo militar (Zhu et al., 2020).
Por fim, as evidências deste artigo indicam que no momento o blockchain pode ser considerado uma evolução significativa, mas não uma mudança radical na escala da "Revolução em Assuntos Militares" (Cornella et al., 2020). Para entender as aplicações do blockchain nos desafios táticos, deve-se examinar o potencial das soluções associadas à integridade de dados, manufatura aditiva, impressão 3D de grande porte, contratação operacional e logística, dentre outros (Cornella et al., 2020; Mohamed, Abas & Yusof, 2022).
Referências
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