Aumento de efetivo: dogma ou paradigma?

Autor: Coronel R1 José Arnon dos Santos Guerra

Quinta, 09 Maio 2024
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Quem conduz o mundo não são os homens, são as ideias.
Victor Hugo
O efetivo do Exército Brasileiro tem permanecido inalterado por décadas, a despeito do aumento das necessidades de defesa ao longo dos anos, como a vigilância dos 17 mil quilômetros de fronteiras terrestres e a ocupação dos grandes espaços estratégicos que permanecem desabitados há séculos.
É provável que a percepção de tranquilidade excessiva oriunda de uma paz duradoura tenha contribuído com essa situação e fez surgir, como que um mantra, a ideia “sem aumento de efetivo” - que está sempre na concepção de qualquer iniciativa organizacional. Este hábito tem raízes capilarizadas, contudo, a principal está em terreno árido, o orçamento da Força Terrestre, porém, não se pode esquecer que o principal motivo da existência de um exército é a Defesa da Pátria.
Se o aumento do número de militares fosse uma exigência só pela necessidade de ocupação do território, um espaço merece muita atenção: a imensa área do Pará delimitada, ao Norte, pelas fronteiras com a Guiana e o Suriname; ao Sul, pelo rio Amazonas; e Roraima e Amapá, a Oeste e Leste, respectivamente. Em um espaço de 262 mil Km2, o Exército reúne 66 homens e mulheres, no Pelotão Especial de Fronteira (PEF) de Tiriós(PA), sendo que 36 são empregados na atividade-fim e os demais no apoio, o que representa 0,00015 H/Km2, evidência irrefutável de que esta quantia é muito pequena diante da necessidade de se vigiar uma imensa fronteira, além de inviabilizar a concretização de qualquer política pública, como a assistência à população local.
Nesse contexto, sabe-se que o Estado é percebido pela população por meio da materialização de suas ações. É natural que a segurança também seja importante para as populações dos interiores do País, e não apenas nos grandes centros urbanos. Onde há olhos do Estado, há um traço mínimo de dissuasão da criminalidade.
Em uma viagem de Boa Vista a Uiramutã, 314 Km ao norte da capital de Roraima, o trajeto é percorrido da seguinte forma: Boa Vista à entrada para o Contão, por 172 Km, em 2 horas pela BR-174; dessa entrada até o Contão, 90 Km por mais 2 horas; e do Contão à Uiramutã, 117 Km por 8 a 10 horas. Em todo o percurso, não se observa qualquer traço da presença do Estado, nem mesmo de polícias, como não há em boa parte das 5.570 cidades do Brasil. Era assim entre 2010 e 2012 e as coisas não devem ter mudado muito naquela região, onde há diversas reservas indígenas. Na década passada, muito se falou da criação do PEF no Contão, projeto que não se realizou até hoje. Teria a criação de novos cargos impedido a execução do projeto? Pode ser que não, mas certamente foi um dado importante do problema. O indígena é um brasileiro que merece segurança e emprego como qualquer outro.
Para não ficar somente na Amazônia, ampliemos a análise sob o prisma histórico.
Segundo o Censo de 1872, o Brasil possuía, em suas forças de terra, 646.710 homens mobilizados, distribuídos entre três armas: Artilharia, Cavalaria e Infantaria, sendo esta a mais numerosa. Esses homens pertenciam ao que era chamado, à época, de Guarda Nacional, tropas adjudicadas às 21 províncias e à disposição do Império quando a situação exigisse. A Reserva mobilizável dessa Guarda reunia outros 132.698 homens. A soma desses números alcançava a proporção de 7,73% da população, que era de 10.075.978 brasileiros. Atualmente, o Exército possui cerca de 204.000 homens ou 0,1008% de uma população de 203.080.756 habitantes. Nas proporções imperiais, o número atual deveria ser superior a 15 milhões de militares, o que não é razoável, assim como algo entre 200 e 220 mil é muito pouco.
De acordo com o site US Facts, em 2019, quando considerado o efetivo das Forças Armadas em relação à população, o Brasil ocupava o 126º lugar entre as 172 Nações, com a proporção de 0,17%. A Rússia e a Ucrânia, em guerra atualmente, ocupavam as 31ª e 32ª posições, com 0,69% e 0,61%, respectivamente. Os EUA, a 52ª posição, com 0,46%. A China, a 138ª posição, com 0,16%. A vizinha Argentina, com quem nos rivalizamos regionalmente, desde o período colonial, do futebol à religião, situava-se à nossa frente, na 125ª, com 0,19%. Para cada país há uma explicação diferente para essas proporções: a China, apesar do baixo percentual, reúne o maior efetivo do mundo, com 2,3 milhões de militares em suas tropas, não havendo necessidade de ampliar o seu quantitativo; e os EUA, com 1,5 milhão, complementa esse menor número com o maior poderio bélico, tecnológico, cibernético e nuclear jamais visto na história, e não precisa de mais soldados.
O maior desafio é justificar a demanda por mais soldados, sob o ponto de vista econômico. Diante de economistas, pesa muito a premissa de Adam Smith, que coloca o exército como trabalhadores improdutivos, ao lado de clérigos, advogados, médicos, artistas, entre outros, alegando que a segurança e defesa que produzem neste ano não comprará sua proteção, segurança e defesa para o ano que vem. Contudo, o pai do Liberalismo Econômico também associou a diversificação do estrato social como fonte de geração de bens, sendo o soldado um dos pilares das riquezas criadas aquém e além fronteiras; nesse sentido, um efetivo maior torna-se relevante para o consumo de itens que movimentam engrenagens poderosas da cadeia produtiva nos centros industriais, onde os trabalhadores deixam de depender de um sistema assistencialista que desumaniza o homem, segundo as palavras do grande político e escritor francês Victor Hugo: Não queres ser trabalhador, hás de ser escravo.
Atualmente, buscam-se alternativas complexas para ilustrar o interesse de um exército para a economia, tal como o conceito da tripla hélice, no qual o soldado é um instrumento de políticas públicas que se reflete em cooperação dentro e fora do País. Sabe-se, embora nem todos afirmem publicamente, que o setor de defesa, além de empregar muita gente, sempre foi o motor dos avanços tecnológicos, tendo a guerra como combustível. Quando a indústria de defesa avança, ela desenvolve tecnologias duais, novos tipos de materiais; permite que o homem chegue mais longe, ocupe novos espaços e reforce a presença do Estado aos que não têm. É irracional um centro rico com um entorno pobre e é por isso que o Exército é tão importante para as áreas mais remotas do Brasil. A criação da 22ª Brigada de Infantaria de Selva, em 2014, no Amapá, é prova inconteste da importância da Força Terrestre na economia local.
Quando o desafio de quebrar esse paradigma foi proposto, alguns colegas contribuíram com opiniões. Uma delas veio da obra de John J. Mearsheimer, The Tragedy of Great Power Politics (2001): os Exércitos são o ingrediente central do poder militar, pois são o principal instrumento para conquistar e controlar território - o objetivo político supremo em um mundo de estados territoriais. Em resumo, o componente-chave do poder militar, mesmo na era nuclear, é o poder terrestre. Sob este argumento, é justo defender o aumento de efetivo, ainda mais considerando os espaços não ocupados. E como se daria esse acréscimo?
Em 2022, 57,6 mil jovens incorporaram no Exército Brasileiro. Lembro-me como se fosse hoje, na década de 90, o alistamento era um evento um pouco complicado: poucos queriam servir, o salário era muito baixo, a comida era simples e o serviço, demasiado. Hoje, o serviço mudou pouco; tudo melhorou e o processo se inverteu. Atualmente, há mais voluntários do que vagas. No Planalto Central, de um total de 29 mil alistados por ano, 16 mil estão em boas condições, em torno de 12 mil são voluntários e apenas 3 mil incorporam, ou seja, mais de 70% de voluntariado. E por que servir é tão importante para o jovem?
Os motivos são muitos: além de ser um orgulho para o jovem e para sua família, é uma boa oportunidade de emprego, muitas vezes o primeiro; a assistência à saúde e a alimentação para esses milhares de meninos são necessidades reais, que muitos precisam; o salário abre portas para a ascensão social, permitindo até mesmo uma carreira no Exército, por meio de concursos para as escolas de formação ou cursos de Cabo e Sargentos Temporários. Na Força, há generais que deram seu primeiro passo dentro de um quartel como Soldado, inclusive como Atirador de Tiro de Guerra. É possível que o poeta Olavo Bilac, o patrono do Serviço Militar, ao vislumbrar da eternidade essa jornada até o generalato, orgulhe-se da defesa de suas ideias em vida.
Há outras razões que justificam mais militares para o Exército e seria ideal que isso ocorresse em cargos de recrutas, sem esquecer os dos seus comandantes. Uma razão plausível seria empregá-los em missões subsidiárias, muitas e variadas atribuídas ao Exército. Para jovens militares, esse trabalho serve como aprendizado inicial dos valores da Força e da vida, como hierarquia, disciplina e respeito à coisa pública, entre outros. Também, acredito que um aumento significativo de vagas para recrutas pode ajudar muito a nossa juventude. Percebi, vivendo uma época na Europa, que o nosso Exército é invejado pela sua juventude. Não podemos desprezar a importância da mocidade brasileira no contexto da Defesa; essa turma precisa de desafios para escapar do ostracismo da vida moderna.
Quem leu este artigo até aqui, sabe que o assunto não se esgotou. Faltou, por exemplo, questões relacionadas à tecnologia. Há uma percepção associada a esse segmento: quanto mais tecnologia, menos recursos humanos. Toda vez que algo novo é introduzido no ambiente do trabalho, uma quantidade de cargos precisa ser criada, tal como ocorre com a cibernética, aviação, comunicações, etc.; às vezes, isso sai mais caro. Essa abordagem merece um aprofundamento maior.
Finalmente, esse texto é um convite para os leitores se aprofundarem em algo importante para o País. O Exército Brasileiro deve ou não aumentar o seu efetivo? Será que, após tanto repetir, o tal paradigma não se transformará em um dogma? A meu ver, desfazer conceitos que impedem a construção da capacidade adequada de proteção do Brasil é desmontar armadilhas para as futuras gerações de brasileiros. É apenas uma ideia!    

Comentarios

Comentarios

Belíssimo artigo!

Concordo. Perfeito! Boas ideias têm que ser debatidas.

Excelente, Guerra. Uma abordagem clara, direta e bem fundamentada, inclusive com sua experiência própria.

Excelente Cel Guerra! Poderíamos trazer muito para os jovens nas fronteiras!

  Brilhante análise. Tema de extrema relevância para o nosso País. Parabéns!  

Excelente artigo coronel, concordo plenamente com o senhor.

Concordo! Excelente texto, muito bom.

Parabéns!!!

Parabéns pela profundidade e clareza de suas ideias neste texto inspirador!

Achei interessante essa pesquisa e da importância do exército brasileiro, principalmente nas áreas mais remotas, de selva e fronteira, onde há carência de políticas públicas. Nessas áreas, é o exército que dá apoio às comunidades desses locais, além de defender o território brasileiro e nos faz refletir sobre quão é importante o efetivo do exército para cobrir essas áreas.

Excelente artigo.

Concordo! A dimensão do nosso exército tem que ser compatível com a do nosso país. Olha essa enchente no Sul, nem todo o efetivo do exército é capaz de cuidar do povo gaúcho com a pressa que ele precisa.

Excelente Artigo! Concordo com você!

Artigo mais que perfeito! 👏🏼👏🏼👏🏼

Perfeito! 🙏

Parabéns pelo artigo pela iniciativa conta conosco, José Arnon Guerra.

Realmente é um paradigma, pois temos uma realidade constada com dados. Infelizmente temos uma população que não entende a missão de um exército, e este artigo oferece uma resposta à pergunta: o brasileiro entende a necessidade do seu exército?

A importância da presença e atuação   das FFAA, principalmente o EB, em  todo território nacional, é imprescindível para que tenhamos uma pátria livre. Porém,  o cenário atual, políticamente falando, não está num momento favorável. Aumentar e treinar o efetivo é  uma necessidade, como também, melhorias salariais. Lutar pelo aumento de efetivo, é louvável, mas será que é interesse do executivo nacional? 

Vivemos momentos difíceis,precisamos de muita luta e união, para que ,assim possa consolidar -se e comquistar um futuro próspero...

Senhor Cel, José Arnon dos Santos Guerra .

Para mim, é um imenso orgulho, ver tal matéria postada pelo senhor, e de sua autoria.

Não é uma coisa boa a guerra, mas, imagino que não há um desejo mais forte das autoridades competentes, em aumentar o efetivo das forças armadas, em Especial o Exército Brasileiro, que é quem opera em sua grande maioria, no solo, em terreno, seja ele como for, a missão será cumprida.

Se, não tem o inimigo atirando contra a vidas dos civís, eles não tem o tamanho da ideia de aumentar sua segurança, é aqui não é uma crítica para os civís, em dizer que não estão nem aí para a força, mas, como eles não fazem parte do dia a dia da caserna, não tem muito a noção da importância do nosso trabalho, em excessão as autoridades que visitam os quarteis, mas, mesmo assim, só vão de passagem para uma visita e sair de lá  com alguma impressão.

Além do impulso na economia local, há economia na própria força, pois vejo que no passado, eu mesmo fiz parte de um efetivo que foi de Manaus -AM para servir em Boa Vista- RR. 

Éramos em torno de 400 homens, e o ano era 1989.

Mas, nos dias de hoje, como o senhor falou na matéria: sobram voluntários para entrar na força, no passado, era preciso deslocar uma aeronave Hércules, para completar efetivos necessários, para guarnecer uma parte da fronteira.

Então, dessa maneira, veja o gasto de logística, que nos dias de hoje, seria econômia tanto para a força quanto para o Estado.

Então, é super importante que a presença do estado se faça necessário, principalmente na ponta da linha, que é a fronteira.

Agora, trago aqui, uma triste notícia, pois trabalhei 20 anos, em um pelotão de fronteira, e, só sabe o que é isso, quem estave lá, e agora nos dias atuais, ao invés de transformar o pelotão em uma companhia, segundas informações, se reduzio o efeito.

É lamentável.

Aproveito, para agradecer ao senhor, quando foi Cmt do CFR/7• BIS.-RR, pelo trabalho de excelência que fez naquele estado, pois o trabalho, muda o cenário de um lugar.

Deixo aqui meus parabéns ao senhor, por esse excelente campo visual que o senhor tem sobre a necessidade da ampliação da força terrestre.

Selva Brasil!

 

Interessante o assunto que levanta o tema. Para um aumento do efetivo talvez a população necessite perceber uma necessidade de maior presença do Exército em seu cotidiano, porém o que eu tenho visto é que o Exército vem sofrendo uma campanha de propaganda negativa e diversos ataques. Esta campanha vem tanto da população, que talvez não entenda a limitação de recursos que sofre o EB e o tanto que é feito com o pouco recurso que tem, quanto da própria esfera política, que vem cortando o orçamento e reduzindo a capacidade de ação das Forças Armadas e aumentando o descontentamento da população. Quem esteve em locais remotos como grande parte dos PEFs de Roraima, sabe que só a mão do exército chega até lá. Com este processo de desvalorização do exército, fica muito mais fácil a população aceitar, e às vezes até mesmo defender ativamente que sejam realizados cortes nos recursos destinados à Defesa. Acredito que o futuro das Forças Armadas residirá em sua boa relação com a população, obtendo seu apoio, demonstrando que podemos contar com elas sempre, até mesmo nos momentos em que a tudo já se foi, até mesmo a esperança.

Artigo lúcido, que tráz luz a um tema muitíssimo importante, e no mínimo interessante!

Creio também caro coronel, que as contratações do veteranos "PTTC", vai de encontro ao seu artigo e demostra de fato uma lacuna nos quadros do Exército Brasileiros, soma-se a isso Unidades isoladas em estados da federação que desempenham papel de Grandes Unidades, devido ao seu emprego local em várias frentes, e muitas da vezes se desdobram para bem cumprir sua missão.

É preciso rever esse conceito quanto ao efetivo das FFAA.

A presença de um PEF nos rincões desse nosso Brasil é gigante, seja pela estratégia de presença de estado naquele longínquo lugar, como historicamente já foi feito, ou então como muito bem apontado neste artigo, pela influência na economia local, onde dezenas de militares e suas famílias ajudaram a circular riquezas. Este reflexo secundário é significativo para o desenvolvimento regional colocando no mapa aquela localidade e sua população. Um ponto relevante a ser considerado frente ao necessário aumento do efetivo.

Faltou também abordar as pos

Artigo sensacional!

Muito bem escrito e fundamentado.  Concordo que o aumento de efetivo é uma realidade que deve ser implementada e estruturada pelo Estado.

A questão do serviço militar obrigatório deve ser repensada. O próprio artigo traz fundamentos contundentes no sentido de que a "procura é maior que a oferta".

Ainda no tocante ao serviço militar obrigatório, é fácil constatar que a alta demanda de ingresso nas Forças Armadas, em especial, no Exército Brasileiro, não se limita aos jovens que completam 18 anos, mas também aos médicos(as), farmacêuticos(as), dentistas e veterinários(as) (MFDV), profissionais altamente qualificados que se inscrevem, voluntariamente, para servir a Pátria nos locais mais remotos do Brasil.

Então, o serviço militar obrigatório ainda é necessário na atualidade? É possível abrir vagas para mulheres que se voluntariarem para prestar o serviço militar inicial?

Como muito bem disse o autor, esse é apenas o introito do debate.

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