Ato de lealdade

Autor: Subtenente Ricardo da Silva Vieira

Segunda, 13 Novembro 2017
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​No meio jurídico, a expressão latina "data venia" é muito conhecida. Pode significar "dada a licença", "dada a permissão" ou "com o devido respeito". Ao ser empregada em diversos contextos jurídicos, como forma de respeito ao superior ou ao colega, essa sentença representa a maneira polida de começar um argumento discordante sobre algo que acabara de ser apresentado, o que evita ao emissor ser mal interpretado ou taxado de arrogante.

Nesse ambiente, o profissional do direito deve assumir a responsabilidade pelas opiniões e ideias que apresenta, ainda que, para fazê-lo, tenha que discordar dos interlocutores. Todavia, é imprescindível que se ancore à discordância, a coragem moral, a iniciativa e o respeito, para que não se perca a chance de agregar valor à discussão e de beneficiar toda a instituição com a riqueza da diversidade de pensamentos. Esse conjunto de concepções pode ser identificado como discordância leal.

Na Inglaterra do Século XVIII, o conceito de discordância leal teve origem na ideia de uma "oposição leal à sua Majestade", na qual o partido derrotado nas eleições poderia expressar suas opiniões de forma legítima, sem o risco de ser acusado de traição. A lealdade, nesse caso específico, significava fazer, com absoluta responsabilidade, sugestões pertinentes ou críticas construtivas, em prol dos legítimos interesses da sociedade representada. A "contrario sensu", seria desleal não expressar as opiniões sinceras ou não discordar simplesmente para procrastinar ou tumultuar os processos. Sob o mesmo ponto de vista, é possível transportar tal conceito do ambiente político, empresarial e jurídico para o meio militar.

Nas Forças Armadas, que preveem o posicionamento hierárquico entre seus membros, uma sugestão ou uma manifestação diante de militar superior podem ser recebidas de diferentes maneiras: como a expressão plena da lealdade ou como algum tipo de afronta. Cabe ao superior hierárquico saber distinguir uma situação da outra. Destaca-se que não se trata de discordar meramente, mas de assessorar sob outra perspectiva, com efetividade e competência. O objetivo é somente agregar mais subsídios antes da tomada de decisão.

Ter esse tipo de comportamento, mesmo em ambiente disciplinado e hierarquizado, não só é possível, mas também desejável, desde que seja de maneira educada, construtiva e oportuna. Ao se desenvolver desse modo, tal idiossincrasia estimula a reflexão e enriquece o processo decisório, sem prejuízo da disciplina intelectual, pois, uma vez esgotada a fase argumentativa, o Comandante decidirá. Desse momento em diante, a lealdade estará em cumprir a decisão como se fosse sua, independentemente de opiniões pessoais.

Militares com certas iniciativas podem ser incompreendidos. Contudo, os chefes que sabem aproveitar essa forma de manifestação conquistam mais do que a mera obediência de seus subordinados. Eles angariam o respeito e a confiança, que só podem ser traduzidas em uma palavra: lealdade.

Em qualquer nível hierárquico, saber ouvir é virtude que todo líder deve possuir. Aqueles que tiveram experiências positivas ao ouvirem e ao ser ouvidos, certamente, saberão reproduzi-las. Ao reconhecer no subordinado que se expressa corretamente, o mesmo ímpeto e entusiasmo que ele próprio detinha, o líder será capaz de explorar essa atitude corajosa em benefício do comando.

Quem emprega a lealdade como atitude natural, demonstrando abnegação e coragem, preocupa-se com a Instituição e com o bem-estar de seus integrantes. Mesmo arriscando possível desaprovação do chefe ou dos companheiros, esse militar é capaz de apresentar seu ponto de vista sem revestir-se de desobediência. Essa conduta tem a finalidade de exercitar a disciplina e a coragem moral, além de reforçar a cadeia de Comando. Entretanto, tal atitude depende de variados fatores, como a escolha do momento e local apropriados, a forma adequada de explanação e o estilo de liderança.

Recentemente, o Exército Brasileiro (EB) instituiu o cargo de Adjunto de Comando. A atribuição a um graduado de assessorar o comando, em aspectos relativos às praças, enfatiza o processo de transformação do EB, dentro do espectro mais importante: a dimensão humana. Essa iniciativa pioneira permite à Força, de maneira sistemática e institucionalizada, desfrutar do ponto de vista e das experiências diferenciadas desses militares. Com a ampliação do rol de ferramentas de apoio à decisão, os graduados, agindo com lealdade, ética e imparcialidade, reforçam a autoridade do comando e contribuem para o comprometimento e o bem-estar da tropa.

Reunindo as lições colhidas por décadas, dentro dos mais variados ambientes de trabalho pelo mundo, conclui-se que esse perfil de lealdade não prejudica a disciplina, tampouco mina a liderança dos chefes. Ao contrário, quando bem aplicado, reforça a autoridade do comandante, agrega valor e aumenta o comprometimento do grupo. Os subordinados realmente leais serão reconhecidos pelas iniciativas e contribuições para o êxito da organização militar (OM) e servirão de exemplo para todos.

Em síntese, cabe ao líder, em todos os níveis, estabelecer as condições adequadas para o desenvolvimento e a aplicação da lealdade de maneira devida e produtiva, evitando os excessos. A total falta de iniciativa e comprometimento e a dissensão frequente e desmedida em nada contribuirão para o sucesso das pessoas e, muito menos, da fração da OM.

Vale lembrar que é preciso ser extremamente leal, não apenas ao comando e à Instituição, mas principalmente a si mesmo, a fim de dizer o que precisa ser dito nas oportunidades em que for necessário. É imprescindível ter, ainda, a coragem moral e a abnegação para fazer cumprir a decisão tomada como se fosse sua, pois, só assim, o emprego dessa lealdade específica será profícuo.

Por isso, antes de qualquer julgamento, é fundamental que todo líder militar busque a essência da lealdade dentro de si, uma vez que, em algum momento da carreira, ele carregou o mesmo desejo de expressar suas opiniões. Além disso, é importante propor melhorias e sugestões em benefício das Unidades militares e de todo o Exército.

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Comentarios

Comentarios
Texto de excepcional competência na conceituação e na explicação. Sejamos leais para que sejam conosco. Tato, educação, disciplina intelectual, abnegação, e momento oportuno são ferramentas ideias para a lealdade quanto a exprimir pensamentos.
Grato companheiro por suas gentis palavras. A lealdade está nos pequenos atos, mesmo quando eles parecem ser discordantes, basta saber como, onde e quando fazê-los.
Excelente texto e estarei compartilhando com o Estado Maior e com os companheiros da minha OM. Identifico esse contexto de lealdade com o que aprendemos no Curso de Adj Cmdo.... o chamado feedback negativo, pois é o tipo de dica para melhorarmos procedimentos e atitudes. Parabéns Ricardo. Abraço Rabelo (Bda Inf Pqdt).
“Absoluta franqueza, ainda que com o Rei”. Era assim que os militares prussianos assessoravam seus Chefes no Estado-maior. Parabéns pelo texto.
Parabéns ao companheiro pelo texto! A lealdade é uma virtude indispensável para o militar. Ela se manifesta em várias situações e, até mesmo, na hora de contribuir com uma sugestão.
Agradeço o comentário Ten Francinaldo. Precisamos trabalhar nossas virtudes e valores desde a formação para que todos saibam como lidar com essas manifestações de lealdade. Os praças podem contribuir em muito com a Força Terrestre, desde que da maneira correta e no momento oportuno.
Grato pelo comentário Cap Cezar. É exatamente este o espírito da Oposição Leal ou da chamada Discordância Leal.
Muito obrigado companheiro Rabelo. É fundamental essa atitude de lealdade tanto com o Comando da OM quanto com a tropa. Parabéns pelo trabalho junto à Bda Inf Pqdt.
Parabéns pelo texto, ST Ricardo! De fato, esse entendimento maduro sobre a lealdade melhorou nos últimos anos, principalmente porque vários Comandantes em diversos níveis perceberam que a lealdade sincera e fundamentada em argumentos não pode ser vista como desobediência ou enfrentamento da autoridade. A lealdade ancorada em opiniões abalizadas colabora para o crescimento institucional, evita acidentes, economiza recursos, melhora a imagem e traz segurança jurídica, operacional e material. Parabéns pela exposição do tema.
Muito obrigado pelo comentário Maj Newton Cabral. Foi exatamente com a intenção de propor uma reflexão e discussão sobre este tema delicado que redigi este texto. Acredito que evoluímos muito, mas ainda precisamos trabalhar certos aspectos da lealdade e alguns conceitos interna corporis.
Grande amigo Ricardo. Como sempre se expressando de maneira correta e pertinente, textos como o seu agregam muito em nossa atividade. Um ensinamento importante que você nos deixa, que é de suma importância para aqueles que assessoram no exercício de suas funções, é observar "...o momento e local apropriados, a forma adequada de explanação..." para contrapor ou apresentar seu ponto de vista. Parabéns pelo trabalho. S Ten MEDEIROS. Selva.
SELVA! Meu camarada Medeiros, sabemos o quanto assessorar é sensível e como é fundamental ter discernimento para empregar esta prática assertiva e profícua, particularmente na função de Adjunto de Comando. Saber reconhecer a oportunidade certa para fazer uma observação, sugestão ou mesmo uma crítica construtiva pode representar o sucesso ou o fracasso da missão. Obrigado por seu comentário.
Caríssimo, irmão ST Ricardo. Parabenizo-o pela construção do belíssimo texto. Sem dúvida, você nos ajudou a despertar para uma nova visão, quando pensamos em lealdade. O sentido, agora, vai além. "Quem emprega a lealdade como atitude natural, demonstrando abnegação e coragem, preocupa-se com a Instituição e com o bem-estar de seus integrantes"
Quero parabenizá-lo companheiro pela iniciativa em nos conduzir a uma nova visão que nos inspira a buscarmos o melhor dentro da nossa personalidade. As palavras contidas no texto nos leva a meditar sobre a lealdade e como o seu uso nos conduz a uma forma de sermos autênticos ao expormos a nossa opinião de forma sincera, e se não for dessa maneira, estaríamos praticando a deslealdade, não apenas para com os outros, mas principalmente para com a nossa própria consciência.
Primeiramente gostaria de parabenizar o companheiro pela visão límpida e pontual dessa grande indagação, "como discordar de uma opinião de seu chefe, comandante?" mantendo-se a idéia da contribuição prática e ativa para o bem da Instituição, concordo plenamente na linha da lealdade, lealdade primeiramente consigo, pois a convicção faz parte do carácter do ser humano, em segundo momento para com o correto assessoramento ao chefe/comandane, pois é pré-requisito para o desenvolvimento de um ambiente pautado pelo respeito e confiança mútua.

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