As Batalhas de Debaltseve e Ilovask: lições do conflito no Donbass para o combate moderno

Autor: Maj Vinícios Martins do Vale

Sexta, 08 Março 2024
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1. Operações de Informação e forças militares irregulares

 

A Guerra da Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022 com a invasão russa do território ucraniano, é um desdobramento de conflitos políticos e militares que se arrastam desde a Revolução Laranja, série de distúrbios contra resultados eleitorais ocorridos na Ucrânia em 2004.

Em 2014, após convulsões sociais que culminaram na derrubada de um presidente ucraniano simpático à Federação Russa, diversas províncias do país rebelaram-se contra o novo governo, formando milícias armadas para garantir sua independência. Com o apoio explícito da Rússia, essas forças irregulares lutaram batalhas decisivas, garantindo grandes vantagens militares para Moscou no momento de anexação desses territórios, decisão tornada pública por Vladimir Putin alguns dias antes da invasão russa.

Entre essas batalhas, as consideradas mais relevantes por analistas militares são a de Ilovask e Debaltseve, as quais expuseram características inovadoras e marcantes da doutrina militar moderna. Entre essas características, destacam-se o uso de Operações de Informação e o emprego de forças irregulares atuando por procuração (proxy), que serão detidamente analisadas no presente artigo.

 

2. Antecedentes: desestabilização e fraturas étnicas

 

A Ucrânia passou a existir como entidade independente do Império Russo somente em 1917, como condição para a assinatura do tratado de Brest-Litovski, que tratava da saída da Rússia da Primeira Guerra Mundial e a cessação das hostilidades com as potências centrais. O tratado, assinado pelo recém-formado governo revolucionário Bolchevique, impôs diversas perdas territoriais aos russos.

Após a derrota das potências centrais na guerra, o tratado tornou-se sem efeito, e a Ucrânia foi absorvida pela recém-criada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Sua permanência no bloco perdurou até a dissolução da URSS, em 1991, quando passou a ser um Estado independente, mas integrando ainda a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), uma organização que reunia diversas ex-repúblicas soviéticas sob a influência russa.

A Ucrânia é um país multiétnico, com populações de diversas origens, religiões e línguas. As porções mais a leste do país, na região do Donbass (bacia do rio Donetz), são majoritariamente habitadas por russos étnicos ou populações que têm o russo como língua principal. Já a porção mais a oeste do país é habitada por populações que falam principalmente a língua ucraniana e não possuem ligações étnicas fortes compopulações russas. Essa diversidade étnica mostrou seus sintomas de fratura iminente em 2004, quando houve a Revolução Laranja.

Após a declaração de vitória do presidente Yanukovych nas eleições de 2004, candidato com sua base eleitoral no Donbass e explicitamente apoiado pelo governo russo, houve diversas denúncias de fraude eleitoral e a eleição foi anulada. Os protestos pela anulação apresentavam o laranja como cor simbólica, daí o nome Revolução Laranja. Houve diversos distúrbios e ameaças de separação no leste do país causados pela anulação, mas ao final novas eleições foram realizadas, agora com a derrota de Yanukovych, e a situação foi temporariamente estabilizada.

Em 2010, Yanukovych foi novamente declarado vencedor das eleições, dessa vez tomando posse. Durante seu mandato, tentou equilibrar as demandas de maior aproximação com a União Europeia (UE) e a manutenção de laços com a Rússia, porém, no final de 2013, ao não assinar um tratado comercial com a UE, as porções mais ocidentais do país iniciaram uma série de protestos. A convulsão social escalou e atos de extrema violência passaram a ocorrer. Em fevereiro de 2014, Yanukovych abandonou o país e refugiou-se na Rússia. Um novo governo assumiu o poder em Kyev, no que ficou conhecido como Revolução da Dignidade ou Euromaidan, mas dessa vez as províncias do Donbass, Donetsk e Lugansk não aceitaram a queda de Yanukovych e declararam a independência em relação ao governo de Kyev, dando início à guerra civil.

 

3. A mobilização: informação e infiltração

 

Grandes ofensivas nos campos diplomático, econômico e informacional foram executadas pela Rússia em auxílio às autoridades das recém-declaradas Repúblicas de Lugansk e Donetsk. Nos organismos internacionais, o Kremlin interveio para apoiar o reconhecimento da situação autônoma das repúblicas, além de prover toda a sorte de auxílios e ligações econômicas diretas para a manutenção dos serviços básicos e das estruturas estatais rebeldes. A ofensiva no campo informacional, porém, foi a que mais se destacou durante esse período.

O fato, de entre as instalações tomadas pelos revoltosos estarem nas estações de rádio e de televisão, já denota a importância dada à dimensão informacional. Após estabelecerem o controle delas, as milícias bloquearam as transmissões ucranianas e passaram a transmitir conteúdos produzidos pela Rússia ou favoráveis a ela. A mídia tradicional russa (televisão e rádio) teve grande impacto na transmissão da narrativa pró-Kremlin, complementada pelo habilidoso emprego de vários instrumentos cibernéticos.

Elementos de inteligência e forças especiais russos infiltrados contribuíram para a mobilização das populações do Donbass contra o novo governo em Kyev. Após a fase de agitação, esses indivíduos seriam essenciais na formação das milícias armadas que realizaram campanhas contra as tropas regulares ucranianas.

Diversas Técnicas, Táticas e Procedimentos (TTP) foram empregados na dimensão informacional para atingir os objetivos pretendidos pelas repúblicas rebeldes. As organizações de mídia estatais russas passaram a reforçar as narrativas principais em favor dos rebeldes, tais como a submissão do novo governo ucraniano à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e suas supostas inclinações neonazistas, além da suposta perseguição das autoridades ucranianas aos cidadãos falantes da língua russa. Essas narrativas eram disseminadas para os públicos internos e deparavam-se com poucos questionamentos, já que as mídias estatais praticamente dominam o espectro informacional doméstico russo. A agência de notícias TASS e os meios RT e Sputnik, que transmitem em diversas línguas no meio internacional (Sputnik atua no jornalismo virtual em português), encarregaram-se de propagar as narrativas russas para mobilizar apoio internacional.

No campo cibernético, os russos fizeram amplo uso de TTP visando à coleta de dados negados e a disseminação de suas narrativas no meio digital. Exércitos de trolls (perfis em redes sociais que tumultuam os debates em prol de determinadas organizações) insuflavam os discursos das mídias estatais russas, enquanto conversas comprometedoras entre autoridades norte-americanas, da OTAN e ucranianas eram interceptadas e tornadas públicas.

Todas essas ações na dimensão informacional foram essenciais para facilitar as ações dos rebeldes e dos russos e causar a paralisia nos centros de decisão da Ucrânia e seus aliados. Ao lograr a anexação da península da Crimeia e a independência das províncias rebeldes, sem necessidade de uma intervenção militar convencional de ampla escala, pode-se dizer que a Federação Russa alcançou a superioridade de informações.

As ações informacionais russas foram atualizadas, principalmente, após a breve Guerra da Geórgia, em 2008. Desde os tempos soviéticos, autoridades russas dispensam grande atenção ao tema, mas recentemente essa doutrina foi adaptada para o combate na Era da Informação. Em 2013, o General Valery Gerasimov, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas russas desde 2012 (atualmente, assumiu o comando das tropas russas em sua “operação especial” no Donbass), publicou em 2013 um famoso artigo em que analisa a Primavera Árabe e faz um prognóstico sobre a importância do espaço informacional nos conflitos modernos. Alguns meses após a publicação, a doutrina informacional russa foi posta em ação na Ucrânia, no que alguns analistas ocidentais denominaram de “Doutrina Gerasimov”.

 

4. Os combates: Ilovask e Debaltseve

 

Após a derrubada de Yanukovych e da secessão das províncias rebeldes, o exército ucraniano encontrava-se em situação deplorável. Para suprir suas necessidades de defesa e realizar uma ofensiva visando sufocar a rebelião no Donbass, as Forças Armadas ucranianas mobilizaram “batalhões de voluntários”, muitos desses financiados por grandes empresários locais. A ofensiva para retomada dos territórios foi designada de “Operação Antiterrorista”.

Com o objetivo estratégico de separar as duas províncias rebeldes e a ligação dessas com a Rússia, de onde recebiam grande quantidade de suprimentos e forças, os líderes militares escolheram a tomada das localidades de Debaltseve, mais a norte, e Ilovask, a sul, como pontos de partida para a operação.

Em agosto de 2014, forças ucranianas iniciaram a ofensiva contra Ilovask, acreditando, como diziam os informes de inteligência, que a cidade era fracamente defendida por elementos rebeldes. Após a perda de diversos veículos blindados e combatentes, as forças ucranianas perceberam o equívoco da inteligência, já que a cidade contava com dispositivos defensivos fortemente estabelecidos. Mesmo à custa de diversas perdas e baixas, os ucranianos lograram ocupar grande parte da localidade, porém a informação de grandes reforços russos em equipamento e combatentes acendeu o alerta para o risco que corriam as tropas de serem envolvidas pelos flancos e cercadas. Foi o que realmente ocorreu.

As forças ucranianas cercadas em Ilovask passaram a sofrer fortes ataques e as baixas entre suas fileiras alcançaram uma situação crítica. Ao perceberem a inutilidade de sustentar combate contra forças com grandes vantagens táticas, os ucranianos se renderam. A queda de Ilovask abriu caminho para a ocupação de toda a região por forças rebeldes, forçando as autoridades ucranianas a negociarem, por meio de países intermediários, com os russos. Fruto dessa derrota, foi assinado o tratado Minsk I, fato que expôs a vitória estratégica para os rebeldes e russos, já que nele eram reconhecidas as províncias rebeldes como entidades proto-estatais.

O tratado assinado, porém, não foi capaz de impedir a retomada das hostilidades. Em janeiro de 2015, as forças rebeldes concentraram-se em torno da localidade de Debaltseve, um importante centro rodoviário e ferroviário na região do Donbass, além de cercarem e ocuparem o aeroporto de Donetzk, garantindo a posse das vias de acesso à região.

A Batalha em Debaltseve é considerada, por muitas fontes, o batismo de fogo do Grupo Wagner. Importante instrumento de projeção de poder da Federação Russa, o grupo formou-se a partir de um núcleo de militares e agentes de segurança que atuaram em firmas privadas na Guerra Civil Síria apoiando o governo de Bashar Al Assad, aliado ao Kremlin. Após o motim ensaiado contra Putin por seu proprietário, Prigozhin, e sua morte logo após, em um acidente aéreo, as operações do grupo passaram a ser detalhadamente monitoradas e analisadas. O modus operandi inaugurado em Debaltseve passou a ser empregado em vastas regiões do continente africano e no Oriente Médio, desafiando a influência ocidental nessas regiões.

Além de forças rebeldes locais e combatentes do Grupo Wagner, alega-se que operadores de Forças Especiais russas (Spetsnaz) e integrantes de organizações de inteligência militar (GRU) participaram das operações, grande parte deles em funções de comando.

Após intensos combates, as forças ucranianas viram-se novamente cercadas, agora em Debaltseve. Para fugir ao cerco, realizaram diversos pequenos ataques para forçar uma retirada da localidade. Nesse esforço, sofreram grande número de baixas e perda de vastas quantidades de armamentos leves e pesados, inclusive diversos carros de combate.

Com a queda de Debaltseve, os ucranianos, novamente, não tiveram outra saída a não ser negociar na esfera diplomática. Após a perda da localidade, foi assinado o acordo de Minsk II, o qual não serviu para impedir a invasão e anexação russa das províncias do Donbass, iniciada em fevereiro de 2022 pela Federação Russa.

 

5. Desfecho

 

As vantagens obtidas pelas forças separatistas nas duas batalhas são claras. Após os acordos Minsk I e II, Donetzk e Lugansk passaram a ser consideradas, em um círculo internacional restrito mas influente, entidades proto-estatais. A relativa independência alcançada permitiu à Federação Russa exercer sua influência nos novos entes de maneira assertiva, facilitando as operações de ocupação do território desencadeadas em fevereiro de 2022, quando declararam a anexação das províncias.

O emprego de forças por procuração (proxy) mobilizadas nas províncias rebeldes, reforçadas e comandadas por tropas convencionais e oficiais russos, mostrou-se capaz de enfrentar, com sucesso, um exército regular convencional em uma campanha clássica. O uso da tática de cerco por essas forças é outro aspecto a ser ressaltado já que, além das batalhas de Debaltseve e Ilovask, o cerco do aeroporto de Donetzk também alcançou seus objetivos na campanha rebelde no Donbass.

Além das forças rebeldes, o uso de tropas do recém-formado Grupo Wagner facilitou a projeção de força da Federação Russa sem que ocorresse a escalada do conflito. Apesar de privado, é notório o poder de direção do Kremlin sobre as operações desencadeadas pelo grupo. Essa característica peculiar permite às autoridades de Moscou empregarem esses combatentes mantendo o que se denomina de “negação plausível”, quando a responsabilidade estatal é plausivelmente negada, apesar de notória.

O uso de Operações de Informação concomitante com operações cinéticas, no caso do Donbass, alcançou um grau de sucesso admirável. A anexação da península da Crimeia e a independência obtida por populações sob sua influência foram alcançadas pela Federação Russa sem o emprego de uma operação militar convencional, o que só veio a ocorrer em 2022, de maneira planejada e com vantagens militares significativas.

Do exposto, pôde-se verificar a pertinência da análise dessas duas batalhas para acompanhar tendências no combate moderno. Com o acompanhamento das evoluções da Guerra da Ucrânia e as operações do Grupo Wagner na África, essas tendências poderão ser confirmadas ou refutadas, dependendo de seus desfechos.

 

Bibliografia:

 

COHEN, Michael. Ukraine’s battle at Ilovaisk, august 2014: the tyranny of means. Military Review, jun. 2016.

 

FOX, Amos . The siege of Ilovaisk: manufactured insurgencies and decision in war. Association of the United States Army, abr. 2021.

 

RACZKIEWYCZ, Mark. Looking back at the Battle of Debaltseve. Ukrainian Weekly, mar. 2019.

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O emprego de forças irregulares, a exemplo dos grupos mercenários, proporciona aos governos a capacidade de exercer influência sem a necessidade de uma presença direta e oficial, permitindo o alcance de objetivos estratégicos discretamente, com menor desgaste e, por vezes, sem responsabilidades legais e políticas. No entanto, o emprego dessas forças "proxy" também apresenta riscos, como a perda do controle sobre esses grupos, potencial desestabilização da região onde atuam, abuso dos Direitos humanos e a até o enfraquecimento das Forças Armadas oficiais. Artigo oportuno e esclarecedor. Parabéns camarada!
Excelente artigo, que ajuda a compreender melhor as origens da atual guerra entre Rússia e Ucrânia, bem como as tendências do combate moderno, com ênfase em Operações de Informação e Guerras por Procuração.

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