A soberba e a guerra

Autor: Coronel R1 José Arnon dos Santos Guerra

Quarta, 28 Agosto 2024
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Uma organização militar tem traços peculiares difíceis de compreender para quem não viveu qualquer experiência dentro de um quartel, até mesmo para as pessoas que têm laços com os militares. Ser diferente não é peculiaridade da caserna, afinal todos os trabalhos têm suas singularidades.

Nos quartéis deve reinar o respeito absoluto pela hierarquia, de outra forma não seria uma instituição bem organizada e regulada verticalmente, que lida melhor com a solução de problemas dentro desse tipo de estrutura, tal como a Igreja Católica, onde a exigente disciplina também é quesito fundamental. Esses dois atributos, hierarquia e disciplina, tão típicos de uma instituição militar, são importantes para qualquer outra organização, em maior ou menor grau, sendo, entretanto, mais flexíveis nas civis.

O que não pode existir em uma organização cuja missão é resolver problemas, às vezes com o uso da violência, é a soberba entre os comandantes, em qualquer nível do estamento castrense, do cabo ao general.

A soberba é um sentimento de superioridade que predomina em mentes orgulhosas, colocando o sujeito em um patamar superior aos demais, coroando-o com uma auréola de importância que nem sempre ele tem. No catolicismo, é o primeiro da lista dos sete pecados capitais.

Teria esse sentimento origem em talentos inatos, reforçados pelos excessos dos pais durante a infância e desenvolvido por adulações insistentes, amizades de ocasião e formalidades excessivas na caserna? É provável.

O excesso de vaidade brota das virtudes pessoais, que, exercitadas à exaustão, aperfeiçoam o agir e acumulam sucessos, proporcionando a chance de desenvolver, na maturidade, ouvidos moucos às opiniões alheias. Esse processo fertiliza o gênio prepotente, tornando-o incapaz de entender que não é o dono da verdade.

Dois exemplos históricos contrastantes contribuem para entender melhor o que aqui se pretende expor. Napoleão, na batalha de Waterloo, enganou-se pelo sinal de cabeça “concordo” do guia Lacoste e sepultou 2 mil cavalos e 1.500 homens entre as barrancas da azinhaga de Ohain, sendo derrotado por um general que não o igualava em genialidade; Caxias, por pouco, não foi presa semelhante do destino, quando, na passagem pela ponte sobre o rio Itororó, percebeu que seu ajudante de ordens confundia-se com suas determinações por conta do barulho e da própria afoiteza, assumiu a liderança, lançou-se contra a sólida defesa do General Caballero em um ataque frontal, tipo de manobra ofensiva que não estava mais na moda naquele momento, e consagrou-se.

Resumindo, Napoleão acreditando em sua onipotência teve tempo de parar, pensar e agir, mas não o fez. Caxias, diante do desastre iminente e de espada em punho, bradou: "Sigam-me os que forem brasileiros!”, partiu para cima da posição fortificada, sua tropa o seguiu cegamente e acabou por salvar a honra do pavilhão imperial.

O que distingue o fracasso do primeiro do sucesso do segundo é a quantidade de amor-próprio. Napoleão jamais acreditou que seria derrotado. Caxias temeu a derrota, resignou-se e venceu. Aliás, seu testamento é prova de sua modéstia ímpar, tanto quanto as honras oferecidas aos vencidos nas rendições. O resultado mais perceptível da atitude interna do espírito do Patrono do Exército foi a não dissolução da dimensão continental do Brasil, amalgamada em seus fragmentos com o cimento da sua humildade.

O exemplo mais robusto de como a arrogância conduz à derrota encontra-se precisamente na Guerra da Criméia (1853-1856), quando as tropas britânicas registraram um de seus piores desastres sob a chefia de aristocratas transformados em generais pela hereditariedade e não pelo mérito.

As empáfias dos Generais Brudenelle e Bingham solaparam a coragem e o profissionalismo dos combatentes ingleses, na ambição por poder, visibilidade, glória e fama, sentimentos disputados entre eles durante anos na corte inglesa, em meio a mansões, bailes, coquetéis, fardas enfeitadas com ouro e adulações sem fim, até que a guerra os chamou e lhes mostrou sua crueldade. O final dessa história você encontrará no livro da Biblioteca do Exército, A Carga da Cavalaria Ligeira, Anatomia de um Desastre, de Cecil Woodham-Smith.

A lição que se depreende dessa leitura é que a soberba não pode ser cultuada entre soldados, em qualquer nível de liderança, principalmente nas estratégicas, onde a rede de intrigas se faz mais ardilosa e as armadilhas são construídas com gatilhos muito sensíveis.

Cabe a um comandante tratar seus subordinados com atenção, respeito e civilidade, como os que dispensa à sua família. Ouvir e servir são requisitos essenciais para os homens acreditarem em seus superiores e os seguir sem questionar. Inclusive, nunca é demais repetir a sábia parte do nosso juramento, que, às vezes, confunde seres presunçosos: “... e com bondade os subordinados...”.

Pelas lições sem fim que a história ensina, vê-se que a humildade contribui mais do que o orgulho na guerra. A hierarquia e a disciplina podem garantir a vitória pelas mãos de um comandante inteligente e corajoso, mas dificilmente a garantirão sob a tutela de um vaidoso.

Em suma, o esquecimento será o troféu dos que, na sua jornada profissional, tiveram a soberba como traço mais conhecido da sua personalidade, porque é inegável que a morte, o fim de tudo e de todos, igualará as diferenças cultivadas em vida, sem qualquer distinção.

  1. HUGO, Vitor. Os Miseráveis. Book House. Kindle, [s.d.].

  2. DORADIOTO, Francisco F. Monteoliva. Maldita Guerra: A nova história da Guerra do Paraguai. Companhia das Letras. 3ª Ed. Kindle, [s.d].

  3. WOODHAM-SMITH, C. A Carga da Cavalaria Ligeira, Anatomia de um Desastre. Biblioteca do Exército, 2005.

CATEGORIAS:
Ética Militar

Comentarios

Comentarios

Excelente texto. A soberba e a vaidade inerentes ao ser humano estão  presentes em diversas instituições e em qualquer convivência em.grupo. E muitas vezes elas bloqueiam a tomada de decisão equilibrada e embasada em dados reais, e estas decisões acabam voltadas para atendimento de visões e propósitos equivocados.

Excelente artigo, Cel Guerra ! Obrigada pelas sábias palavras e eternos ensinamentos !!!

Boa noite, todos que lêem as inúmeras ricas informações e maravilhosos textos em relação a caserna e a história o quão foi e continua sendo imprtantissima e uma marco para a história mundial, sempre muito sábio nas palavras Coronel Guerra, minha mega admiração pelo senhor.

Coronel, parabéns pelo texto! Precisamos sempre ficar vigilantes para não cairmos no vício da soberba, que deve ser combatido com humildade e gratidão. Obrigada por compartilhar lições tão importantes!

A soberba, especialmente em ambientes militares, pode ser um veneno insidioso, minando a eficácia da liderança e comprometendo a coesão da equipe. No dia a dia, um líder que se deixa levar pela vaidade e arrogância corre o risco de desconsiderar as contribuições valiosas de seus subordinados, tomando decisões baseadas em uma visão distorcida de sua própria infalibilidade.

A soberba, especialmente em ambientes militares, pode ser um veneno insidioso, minando a eficácia da liderança e comprometendo a coesão da equipe. No dia a dia, um líder que se deixa levar pela vaidade e arrogância corre o risco de desconsiderar as contribuições valiosas de seus subordinados, tomando decisões baseadas em uma visão distorcida de sua própria infalibilidade.

Excelente texto que traz uma análise profunda sobre a importância da hierarquia e disciplina nas organizações militares, ressaltando como esses valores são cruciais para o funcionamento eficiente dessas instituições. A discussão sobre a soberba em cargos de liderança, apoiada por exemplos históricos como Napoleão e Caxias, é elucidativa e demonstra como a humildade pode ser um diferencial determinante em momentos críticos. A reflexão sobre o impacto do orgulho e a necessidade de respeito e atenção aos subordinados destaca a sabedoria necessária para um comando eficaz, tornando o texto uma valiosa lição sobre liderança e ética. Parabéns ao autor, Eterno Comandante do C Fron RR / 7BIS, pela brilhante abordagem e contribuição.

Muito boa leitura!

Parabéns pelo texto caro Amigo. Matéria muito importante a ser compreendida e apreendida pelos jovens Cmt que a cada ano assumem tão exclusiva e relevante missão em nossas instituições militares!! 

A bibliografia e os exemplos utilizados esclarecem perfeitamente sua visão e opinião!

Parabéns!!

A soberba, antecede ao fracasso...

Muito boa leitura, é uma aula para minha jornada atual meu CMDT. Um forte abraço e sucesso Cel Guerra...

Gostei muito do artigo!

Soberba é um dos 7 pecados capitais, bem colocado neste texto quando vemos que ele gera outros pecados, como a arrogância e a vaidade 

Parabéns, Guerra!!!

Com certeza, a humildade é um dos principais atributos da personalidade dos verdadeiros líderes!!!

Excelente artigo! O autor está de parabéns pelo objetividade e clareza do texto! Obrigado Cel Guerra!

Caro Coronel R1 José Arnon dos Santos Guerra,

Seu texto oferece uma visão clara e perspicaz sobre a dinâmica das organizações militares, ressaltando a importância de hierarquia e disciplina. Concordo plenamente que a soberba entre os líderes pode ser prejudicial. Em qualquer instituição, especialmente nas militares, a humildade e o respeito são fundamentais para garantir a coesão e a capacidade de resolver problemas de maneira eficaz. Seu ponto sobre a necessidade de manter um equilíbrio entre poder e humildade é essencial para a eficácia e o bom funcionamento das instituições hierárquicas.

Sempre sábias palavras e bastante robusto e rico o texto que nos transmite melhores informações históricas e de extrema importância noticiar para todos, sempre maravilhoso ler os artigos aos quais o senhor escreve, sucesso sempre! Grande abraço, Ten Marcele 

Meu cmt , pura verdade a soberba é o começo do fim . Parabéns!!!

Clareza de Argumentação: A linha de raciocínio é clara e bem organizada, levando o leitor a entender a relação entre a estrutura militar e a necessidade de humildade nos líderes.

Uso de Exemplos Históricos: A escolha de figuras como Napoleão e Caxias enriquece o texto, proporcionando uma conexão entre teoria e prática que torna o argumento ainda mais convincente.

Relevância das Comparações: A comparação com a Igreja Católica, outra instituição hierárquica, é uma adição valiosa que amplia a compreensão sobre a importância da disciplina e hierarquia, mesmo fora do contexto militar.

Parabéns Cel Guerra!

BOM DIA CEL GUERRA,EXELENTE TEXTO E DE BOA LEITURA PARABENS E MINHA CONTINENCIA AO SR .

UM FORTE E FRATERNO ABRAÇO.

ATT. BELASQUEM

Excelente reflexão meu amigo! A humildade não é sinal de fraqueza, e sim de inteligência emocional, requisito básico para se alcançar qualquer objetivo. Saber reconhecer os erros, corrigi-los e aí sim, passar confiança aos seus pares, superiores e principalmente seus subordinados. Parabéns e sucesso sempre!

Excelente texto Cel. Guerra! Ao fazer a dualidade entre dois ícones das batalhas, há de mostrar o quanto a soberba pode ser crucial na vitória ou derrota. A diferença entre o líder e a patente está nas ações que consideram legítima a humildade e o exemplo como modos de prosperar a hierarquia e disciplina como algo natural e aceito por toda a cadeia da organização. 

Que venham mais bons textos de reflexão como esse! 

A soberba acontece desde que o mundo é mundo, contudo saber como ela se apodera do ser humano é questão de debates, criação com zelo em excesso é uma das prováveis causas, o que se sabe é que a soberba precede a queda.

Excelentes anotações Cel, venho observando isso a algum tempo, onde saciar os egos e as vontades próprias parece ser mais importante do que trabalhar pra resolver os problemas em prol do bem comum de todos....

Excelente texto, parabéns, nos faz refletir sobre soberda e vaidade, nos diversos ambitos em q ela se apresenta no texto. Um conhecimento muito bom de aprendizagem.

Muito boa sua reflexão Guerra sobre um atributo que não coaduna com nossa profissão de Soldado! A liderança  que um comandante possui advém única e exclusivamente de seu exemplo junto a seus pares e subordinados. Jamais a soberba contribui para o exercício de nossa profissão. Um abraço!

Excelente artigo Cel .Guerra! A humildade, bem diferente de representar fraqueza, comporta muitas vezes ações com maior grau de prudência e discernimento, possibilitando a tomada de decisão mais assertiva, não açodada e com sabedoria, passando mais segurança a toda equipe.

Excelente artigo!

Verdade, que só olha para o próprio umbigo perde a valiosíssima Visão Global!!!

 

Excelente artigo do Cel Guerra. Merece ser lido por todos os chefes e, principalmente, por aqueles perseguem a liderança.

 

Artigo incrível! Parabéns! 

Excelente texto, Coronel! A soberba pode estar presente em todo ambiente que o ser humano coordena um grupo e na guerra o preço por esta desvirtude por custar mais caro, inclusive para tropa.

Excelente texto, Cel! Ainda sou soldado, e tenho muito que aprender. Porém já aprendi bastante com esse texto!

Meu estimado amigo Guerra.

Texto claro, pertinente, atual. Muito bem redigido, com exemplos históricos e o necessário transporte no tempo aos dias atuais. Parabéns. Brilhante.

Forte e fraterno abraço. 

Taranto.

Que texto forte e verdadeiro, muitos precisam entender mais sobre essa decisão. Meu irmão serve ao exército e tenho maior orgulho dele, sei que lá ele tem bons ensinamentos e esta aprendendo cada dia mais para o mundo. Sábias palavras coronel o senhor é demais, tive o privilégio de conviver e conhcer uma pessoa espetacular como o senhor, profissional e dedicado no que faz sempre! abraços.

A soberba precede a queda!

Em qualquer área. Parabéns pelo texto com exemplos históricos.   

Belíssimo texto Cel e de grande reflexão. A linha é tênue entre hierárquica, disciplina e soberba. Qualquer desalinhamento desses três pilares, compromete a coesão e a moral da tropa. Portanto, é crucial que líderes militares mantenham um equilíbrio justo entre o respeito pela hierarquia, a aplicação da disciplina e o cuidado para não cair na armadilha da soberba, garantindo assim um ambiente de trabalho respeitoso e eficaz.

Ótimo registro sobre o comportamento do comandante e a influência que sua personalidade pode exercer sobre o resultado de uma batalha. Justifica o estudo de psicologia e história nos bancos acadêmicos militares.

Quanta densidade de conhecimento nesse artigo. Ao citar o fracasso na Guerra da Criméia, me recordei do que disse o sábio Salomão: "A soberba precede à ruína". 

Excelente artigo, coronel. Tive a grata oportunidade de aprender muito sob o seu comando no C Fron RR/7º BIS e durante essa leitura pude visualizar diversas derrotas nas guerras do dia a dia de comandantes (tanto nos meus 7 anos de EB quanto nos meus atuais 10 anos de PMRR) ocasionadas pela soberba... O Sr foi cirúrgico em suas palavras e de fato a humildade é um grande atributo para a vitória na guerra. Selva! 🫡

Coronel, Muito bom, o sr foi um exemplo de Cmt, tive a oportunidade de ser seu subordinado no CFRON RR 7ºBIS. 

Parabéns, Cel Guerra! É um texto com ensinamentos valiosos para o líder militar!

Sábias palavras Cmt. Obrigado! 

 Provérbios 16: 18. A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito, a queda.   Selva! 

Excelente texto! Humildade acima de tudo!

Excelente texto! Humildade sempre em primeiro lugar!

Excelente texto comandante, somente alguem com sua liderança é capaz de descrever com riqueza de detalhes as características de um excelente líder.

Parabéns pelo artigo.

Este é um tema que transcende gerações. A vida em sociedade é um indicativo claro de que não somos capazes de resolver todos os problemas por conta própria e, portanto, esse sentimento de onipotência não deveria existir, contudo, ainda que a espécie humana evolua, essa “necessidade” de autoafirmação deve prevalecer por muito tempo, pois faz parte da natureza humana. Como exposto no texto, nas organizações civis existe uma maior flexibilidade nessas relações que serão mais de coordenação que subordinação e, talvez por isso, proporcione uma convivência menos conflituosa.

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Conteúdo excelente

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