A saída dos EUA do Afeganistão e o reordenamento geopolítico na guerra entre Rússia e Ucrânia*

Autor: Ten Cel Anselmo de Oliveira Rodrigues

Segunda, 04 Julho 2022
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Considerações iniciais

Enquanto o mundo envidava esforços para combater a pandemia da covid-19, um fato ocorrido em agosto de 2021 reordenava as peças do tabuleiro geopolítico global. Trata-se da retirada dos EUA do Afeganistão. Mesmo sendo um Estado colapsado e estando longe de ser um player global, o Afeganistão ocupava uma posição estratégica nesse tabuleiro. Com o decorrer dos meses, fica cada vez mais clara a influência desse evento no comportamento e na postura geopolítica adotados pelos quatro principais atores estatais da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Em vista dessa realidade, este artigo se propõe a analisar os movimentos geopolíticos efetuados pela Rússia, pelos EUA, pela Europa e pela Ucrânia no contexto desse conflito.

 

Estados Unidos da América

Em 2021, os EUA, além de estarem sofrendo os efeitos colaterais da pandemia da covid-19 (quarentena, desemprego, queda do PIB, mortes etc.), também passaram a ser pressionados por sua própria população pelo longo tempo de permanência no Afeganistão e pelos elevados custos decorrentes desse período prolongado. Como o atual presidente americano havia feito uma promessa de retirar os EUA do Afeganistão até setembro de 2021, ele ignorou os relatórios oriundos da inteligência estadunidense e, no pronunciamento realizado em 30 de agosto de 2021, decretou oficialmente a saída dos norte-americanos do Afeganistão.

Mesmo sendo amplamente criticado por vários países do sistema internacional, o presidente americano manteve a decisão. Por mais atabalhoada, a retirada dos EUA do Afeganistão foi um movimento geopolítico inteligente e preciso, pois permitiu aos norte-americanos a possibilidade de ter a liberdade de ação necessária para concentrar seus esforços em seus objetivos prioritários: China e Rússia.

Com liberdade de ação, os EUA tiveram fôlego necessário para intervir na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Nessa guerra, os norte-americanos estão empregando uma estratégia caraterizada por sanções econômicas, pelo envio de materiais de emprego militar (MEM) e pela atuação de instituições. Um exemplo de sanção econômica é a retirada da Rússia do sistema swift. O envio de MEM ficou evidenciado na declaração emitida pelo atual secretário de imprensa do Pentágono em 1º de abril de 2022, ocasião em que anunciou a doação de US$ 300 milhões em equipamentos militares à Ucrânia (EUA, 2022). Com relação às instituições, os EUA atuam em duas dimensões do conflito. Por meio de empresas como Nike, Ford e Mc Donalds, os norte-americanos atuam na dimensão econômica, haja vista que tais companhias encerraram suas atividades na Rússia. Através de Big Techs como Google, YouTube, Facebook, WhatsApp, Instagram, Apple, Microsoft e Amazon, os EUA atuam na dimensão informacional do conflito, pois essas empresas estão moldando o ambiente informacional e auxiliando de forma decisiva para que o ocidente exerça o domínio da narrativa durante a guerra (CORRÊA, 2022).

 

Rússia

A Rússia, por sua vez, não compreendeu a manobra geopolítica realizada pelos EUA. E, assim, Moscou não foi eficaz quando invadiu a Ucrânia em fevereiro de 2022, pois compreendeu que os norte-americanos não teriam condições de atuar externamente devido aos efeitos colaterais ocasionados pela covid-19. Contudo, o ambiente VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo) de outrora deu lugar ao ambiente BANI1 (frágil, ansioso, não-linear e incompreensível) dos dias atuais, onde tudo acontece ao mesmo tempo (pandemia, mudanças climáticas, terrorismo, ascensão da China como player global, Europa combalida, guerra informacional, guerra cibernética etc.). E o que se viu foi uma forte reação oriunda do ocidente, ora encorajando, ora auxiliando a Ucrânia na guerra contra a Rússia.

Não se sabe ao certo qual é a intenção geopolítica da Rússia neste momento. Alguns analistas entendem que o país ambiciona desequilibrar a balança de poder e acelerar o processo de tornar o mundo multipolar. Outros analistas inferem que a manobra russa é depor o atual presidente ucraniano e colocar um governo alinhado à Rússia. A versão oficial de Moscou se traduz em uma operação militar especial que visa ajudar as províncias ucranianas de Luhansk e Donestsk em seus processos de emancipação. Independentemente das versões existentes, não restam dúvidas de que a Rússia está encontrando dificuldades para alcançar seus objetivos, pois não vislumbrava que o ocidente iria se mobilizar e ajudar a Ucrânia da maneira como está acontecendo.

 

Europa

A Europa, mesmo fragilizada e carente de uma liderança expressiva desde a saída de Angela Merkel à frente da Alemanha, vem realizando movimentos geopolíticos significativos no transcorrer dessa guerra. Da mesma forma que os norte-americanos, os europeus apoiam a Ucrânia. Para tanto, utilizam uma estratégia indireta que contempla o emprego da União Europeia, da OTAN e de algumas empresas.

Através da União Europeia, a Europa impôs uma série de sanções à Rússia que abarcam desde o setor de transportes, de economia e energético até as vias diplomáticas. Por meio da OTAN, os europeus estão oferecendo ajuda militar aos ucranianos, posicionamento que se tornou público durante o pronunciamento feito pelo secretário-geral da OTAN em 7 de abril de 2022, momento em que deixou claro que a OTAN prestava ajuda militar aos ucranianos, e que a assistência se traduzia, tão somente, ao envio de armas e ao fornecimento de ajuda humanitária à Ucrânia (DEUTSCHE WELLE, 2022). Por meio de algumas empresas, como Spotify, Adidas e Shell, a Europa busca pressionar ainda mais a economia russa, uma vez que tais empresas encerraram suas atividades na Rússia.

 

Ucrânia

A Ucrânia, sob a liderança de seu atual presidente, surpreendeu todos e vem oferecendo uma grande resistência em seu território. A mudança da postura política ucraniana, que passou a ser mais assertiva e fortemente alinhada com o ocidente a partir de 2019, tem encontrado forte apoio de sua população, que tem na figura de seu atual presidente o líder que o país precisa nessa guerra. Por meio das redes sociais, a Ucrânia está conseguindo obter uma certa vantagem no domínio informacional da guerra. De maneira inteligente e hábil, o presidente ucraniano tem sensibilizado o lado ocidental do conflito que, por sua vez, tem apoiado os ucranianos por meio de ações no campo político, econômico e militar.

Em que pese os bilionários prejuízos que a Ucrânia está sofrendo nessa guerra, decorrente dos bombardeios efetuados pela Rússia em seu território, ainda é cedo para concluir se o país está ganhando ou se está perdendo este embate. Como afirma Clausewitz (1983), há uma névoa cinza que paira sobre uma guerra, que torna difícil depreender sobre seu futuro. E nesse conflito não é diferente, pois o elevado número de variáveis presentes torna difícil o exercício de prever o que ocorrerá.

 

Considerações Finais

A retirada dos EUA do Afeganistão foi um evento duramente criticado pela sociedade internacional, principalmente pela maneira como ocorreu. Contudo, ao saírem do Afeganistão, os EUA puderam ter a liberdade de ação necessária para intervir no conflito. Com uma estratégia utilizada na década de 1990 e ajustada aos dias atuais, uma espécie de “proxy wars” contextualizada ao ambiente BANI, os EUA empregam as instituições, notadamente as Big Techs, para atuar nessa guerra. A Rússia, por sua vez, não compreendeu os movimentos realizados pelos EUA no tabuleiro geopolítico global e cometeu um erro ao invadir a Ucrânia, pois não entendeu que a saída dos EUA do Afeganistão resultaria no aumento de liberdade de ação norte-americana e automaticamente na perda de liberdade de ação russa. A Europa, encorajada pelos EUA e por meio das instituições, age de forma significativa no transcurso dessa guerra. O apoio da OTAN à Ucrânia tem fortalecido a resistência dos ucranianos e, sob a liderança de seu presidente, a Ucrânia, mesmo arrasada, tem surpreendido o mundo.

Por fim, cumpre mencionar que este estudo não teve a pretensão de esgotar o assunto e nem tampouco quis impor uma verdade aos fatos, mas tão somente procurou analisar a crise no Leste Europeu sob uma perspectiva geopolítica.

 

Referências:

CLAUSEWITZ, Carl Von. Da Guerra. Tradução do original para o inglês por Michael Howard e Peter Paret. New York: Oxford University Press, 1983.

CORRÊA, Marlos de Mendonça. As Big Techs e o conflito Rússia vs Ucrânia: o domínio informacional. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022

COSTA, José Luiz Machado e. Ameaça externa e defesa nacional. O Estado de São Paulo, 20 de abril de 2022.

DEUTSCHE, Welle. NATO chief pledges more assistance for Ukraine and neighbors. DW, 2022. Disponível em: https://www.dw.com/en/nato-chief-pledges-more-assistance-for-ukraine-and-neighbors/a-61394391. Acesso em: 29 de maio de 2022.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Department of Defense. Defense Department Announces $300 Million in Additional Assistance for Ukraine. U. S. Department of Defense, 2022. Disponível em: https://www.defense.gov/News/Releases/Release/Article/ 2987119/defense-department-announces-300-million-in-additional-assistance-for-ukrain e/#.YkegNCnR4iA.twitter. Acesso em: 29 de Maio de 2022.

SRIDHARAN, MITHUN. BANI: A new framework to make sense of a chaotic world? Thinking Insights, 2021. Disponível em: https://thinkinsights.net/leadership/bani/ Acesso em: 29 de maio de 2022.

* Artigo publicado na Editoria Mundorama em 27 de junho de 2022.

 

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1 O conceito BANI (brittle, anxious, nonlinear and incomprehensible - frágil, ansioso, não-linear e incompreensível) foi cunhado pelo antropólogo norte-americano Jamais Cascio durante um evento do Institute of the Future e se tornou conhecido em 2020, diante do colapso mundial causado pela pandemia do coronavírus Covid-19 (SRIDHARAN, 2021).

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