A guerra deriva dos males privados e/ou públicos de um Estado, gerando graves consequências, as quais foram observadas nas últimas guerras. O tema sobre a guerra justa retorna ao debate público sempre que inicia uma nova guerra. Esses debates, antigos e atuais, fizeram com que surgissem o Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA).
Conforme Pelegrini (1997), a teoria militar descreve a melhor maneira de os homens travarem a guerra no universo descrito pela ciência, e a filosofia contribui para o estudo da natureza do homem nesse universo. Essa busca faz com que o profissional da guerra não perca a sua humanidade no combate, como no relato do soldado americano que participou do massacre de My Lai durante a Guerra do Vietnã. Segundo o relatado, o ocorrido foi possível após o comandante da fração perder toda a sua orientação moral (ANDERSON, 1998):
Você não precisava procurar pessoas para matar, elas simplesmente estavam lá. Eu cortei suas gargantas, cortei suas mãos, cortei suas línguas e escalpelei-os. Eu fiz isso. Muitas pessoas estavam fazendo isso, e eu apenas segui. Acabei de perder todo o senso de direção
Observa-se que os instrumentos legais não impedem a guerra, tampouco, como em My Lai, as atrocidades de ocorrerem.
Até o indivíduo mais virtuoso pode ser tomado por um sentimento de vingança que poderá desencadear uma raiva avassaladora, tornando a moralidade e o DICA testemunhas das barbaridades. Ao dissipar a paixão da vingança, a consciência abre caminho de volta e começa uma batalha separada pela paz interna do indivíduo (WEAD, 2015).
Se não é impossível impedir a guerra, é necessário preparar os líderes militares para ela, incluindo, nesse preparo, o treinamento ético. Platão, em A República, já considerava a guerra uma arte que deveria ser executada por guardiões (termo que utilizava para designar os soldados da polis) habilidosos. Para esse autor, o bom e nobre profissional das armas precisaria unir em si o espírito filosófico com a agilidade e a força.
Ao “conhecer a ti mesmo”, estaria menos sujeito a ser enganado voluntariamente naquilo que é a parte mais verdadeira e elevada de si mesmo, não permitindo que mentiras ou promessas falsas de grupos se apoderassem de sua alma. E o mais importante: impediria a frouxidão moral ao permitir o controle sobre os prazeres mais íntimos (sexuais, de poder, de glória, de reconhecimento).
Platão afirmava que a educação militar seria melhor aplicada se feita na juventude do guardião, dentro dos parâmetros éticos e virtuosos necessários para a manutenção da polis, permitindo que o conhecimento adquirido não se tornasse indelével e inalterável na fase adulta. Com isso, não estaria sujeito às pressões de mudanças externas, o que permitiria manutenção das virtudes necessárias para a defesa do Estado.
Atualmente, dentro dessa visão filosófica, forças armadas mais experimentadas em combate têm buscado desenvolver programas de ética militar visando a guerra justa, além de estarem buscando mecanismos para coibir atos imorais que ferem as leis da guerra e os valores éticos do Estado ao qual pertencem. Embora muitos militares não tenham formação filosófica, suas atitudes e sua maneira de pensar ressoam os princípios básicos da filosofia, principalmente os princípios do estoicismo – que mostram a importância de ser justo, sábio e corajoso na carreira das armas, ao ajudar o militar a lidar com a incerteza e com o perigo do combate (MULROY, 2020). Sêneca, filósofo estóico, escreveu sobre o tema da raiva e as suas consequências. Afirmou que a raiva descontrolada leva a más decisões, demonstrando, assim, a importância do controle das emoções para a tomada de decisões racionais.
Do exposto, cresce de importância o treinamento em filosofia moral para os líderes militares do exército do futuro, pois o líder tem um papel fundamental na condução da guerra e na conduta moral de seus subordinados. A liderança moral, exemplificada pela virtude e fortalecida pelos princípios morais estabelecidos no jus in bello, pode firmar os valores de seus subordinados assaltados pelos horrores da guerra.
De acordo com Mulroy (2020), o treinamento buscaria remover a emoção das respostas táticas e das decisões operacionais pela repetição em cenários realistas. O controle das emoções, através da prática, pode servir como uma ajuda fundamental na prevenção de eventos trágicos em um combate, além de manter os padrões morais de seus subordinados, mesmo em unidades com liderança desvirtuosa.
Além do citado anteriormente, aos líderes militares caberá, também, enfrentar a luta interna dentro do seu ser e impedir que seu senso de honra falhe ao ser confrontado pelos extremos do combate. A vitória ou a sobrevivência não podem ser mais valorizadas do que as convicções morais sobre o que é certo e o que é errado.
Há, no entanto, um consenso universal de que, para ser eficaz, o treinamento em ética deve ser orientado para a prática e ser relevante. Enfrentar casos de comportamento imoral simplesmente dando outra palestra sobre “valores do guerreiro” provavelmente não gerará muito efeito (R, 2007). Pela obrigatoriedade do serviço militar, essa capacitação cresce de importância, pois cidadãos têm ingressado nas forças militares com valores morais deturpados e/ou contrários às instituições. É necessário integrá-los por meio de algum treinamento formal de ética, devendo coincidir o mais próximo possível com os valores morais da sociedade a que servem.
O objetivo primordial é treinar os líderes para que ajam com ética, não porque tenham sido instruídos ou porque acham que isso os fará parecerem bons, mas porque eles mesmos determinaram que é a coisa certa a fazer. Do contrário, podem acabar por concordar com ações antiéticas de seus subordinados ou agir por consequência da pressão de seus pares devido ao estresse da guerra. Esse treinamento ético deverá estar integrado ao treinamento militar desde o estágio inicial, como parte fundamental do processo de formação dos líderes militares. A própria força da instituição militar, por meio de suas tradições históricas, sua atmosfera e o exemplo e a pressão dos pares, já contribui para a capacitação ética do recém-chegado à instituição militar.
Conclui-se, portanto, que a filosofia moral é importante para a formação dos líderes militares ao contribuir para a construção de valores e de virtudes morais coerentes com a sociedade e a instituição militar a que servem. Um programa de treinamento ético fornece ferramentas para o controle das emoções, permitindo a tomada de decisões acertadas. O treinamento deverá ser contínuo durante toda a carreira militar e inserido em um programa ético focado em atividades práticas.
Por fim, verifica-se que, além das melhores armas e equipamentos para operar no campo de batalha, devemos ajudar os líderes a se conhecerem para serem justos, sábios e corajosos num mundo cada vez mais incerto.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, D. L. (1998). Facing My Lai, Moving Beyond the Massacre. Lawrence, KS: University Press of Kansas.
KIRKPATRICK, C. E. (1990). Lesley J. McNair Training Philosophy for a New Army. U.S. Army Center of Military History, nº 17, Winter 1990/1991, pp. 11-17.
MULROY, M. (Dezembro de 2020). Where philosophy intersects with war training: stoic soldiers. Fonte: https://www.loboinstitute.org/7324-2/.
PELLEGRINI, R. P. (August de 1997). The Links between Science, Philosophy, and Military Theory: Understanding the Past, Implications for the Future.
PLATÃO, A. (s.d.). A REPÚBLICA: Versão Original. (A. Cunha, Trad.)
ROBINSON, P. (2007). The US Army War College Quarterly: Parameters. Parameters 37, v.7, nº 1.
WEAD, C. S. (March- April de 2015). Ethics, Combat, and a Soldier's Decision to Kill. Military Review, pp. 69-81.
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