“O homem sábio é cheio de força, e o homem de conhecimento confirma o seu vigor (Provérbios 24,5)”.
Prólogo
No artigo publicado anteriormente, iniciou-se a apresentação ao leitor do tema da educação direcionada à formação profissional militar do oficial do Exército Brasileiro (EB) com vistas a sua atuação na Era do Conhecimento. Chamemos isso, a partir desse ponto e para simplificar, de Educação Militar. Mas, vale ressaltar que o escopo desse texto está limitado à formação do oficial combatente.
O referido artigo, por outro lado, recordou que já existe no EB uma cultura funcional, isto é, uma cultura que cumpre funções necessárias à própria existência da Instituição como corpo social, bem como ao equilíbrio dinâmico dos indivíduos pensantes que a compõem1. Dentro desses termos, foi abordado que um dos frutos dessa cultura é a apologia da experiência (do saber advindo da prática) sobre o saber discursante, sobretudo quando a disciplina é a guerra. Vale acrescentar a isso a observação feita por Hude de que “uma cultura que não pensa na guerra é inapta para formar os chefes militares”.2
Sim, a ciência e a técnica são concretamente apreendidas com a prática, não há outro modo. Mas, só esses saberes são necessários na Era do Conhecimento? E quanto ao sentimento do dever? Como se o experiencia? Em outros termos, como se adquire por meio da experiência o “saber o que sentir”, especialmente no momento certo e na proporção certa?
Com essas questões em mente, tomemos, agora, o termo Educação Militar como objeto de nossa reflexão. Frise-se, na perspectiva desse autor.
A Educação Militar
Educar, como se depreende do próprio sentido da palavra (do latim ex-ducere, que quer dizer guiar para fora), é um processo de guiamento de uma pessoa para além do seu horizonte subjetivo de consciência, ou seja, para uma expansão dessa mesma consciência no sentido de uma maior compreensão objetiva do mundo que a cerca.
Dessa forma, atualiza-se (transforma-se) a percepção do “eu sou” para aquela apontada pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset como “eu sou eu e minha circunstância”. Nesse contexto, a educação militar compreenderia tal circunstância como a “realidade do caminho” que é percorrido pela própria pessoa com vistas à formação (transformação) dela mesma em outra que, no caso de tornar-se militar com a patente de oficial, além de manifestar valor e espírito militar, tenha acentuada capacidade de atuação no mundo.
Dentro desses termos, portanto, pela educação militar ampliaria-se o potencial de ação da pessoa no mundo, pois esse atributo seria tanto maior quanto mais conhecimento dele ela o tiver. Em outras palavras, para essa pessoa a sua realidade corresponderia à sua capacidade de ação no mundo, ao seu poder de compreensão dos aspectos da realidade que impactam suas decisões e ações.
Pelo que se depreende até aqui, a educação militar é vista como um processo (caminho) de aperfeiçoamento da pessoa. O EB denomina esse caminho como “Itinerário Formativo”. Ora, se é um itinerário, podemos presumir que temos cinco componentes que o constituem: o peregrino, o destino, os guias, as estações e as próprias condições do caminho a ser percorrido. Vale lembrar que este trajeto é percorrido de forma voluntária, pois nenhum(a) cidadão(ã) brasileiro(a) é obrigado(a) a ser oficial do EB.
Desde já, consideremos que o core dessa análise é o peregrino, ou seja, o educando. É nele que ocorre a transformação, que tem início quando ele(a) exerce a sua liberdade de se autodeterminar no sentido de decidir sobre qual vida deseja viver. Sendo assim, o processo pode ser observado como iniciando-se com respostas a duas questões, uma de sentido ético e outra de sentido moral. Quanto a primeira, pode ser assim formulada: que vida quero viver?3 Ele(a) então responde: ser oficial do Exército.
Quanto à segunda, por sua vez: como devo agir? A resposta natural será: de modo a alcançar a felicidade, realizando-se profissional e pessoalmente, que, em razão da primeira resposta, estará ligada ao bem da Instituição a qual irá servir. É, nessa hora, na conjunção dessas duas respostas, que a chama do entusiasmo é acesa no espírito desse educando.
Passemos ao segundo componente, o destino. Qual é, portanto, o telos4 do itinerário formativo? Qual o seu sentido? A resposta será sinalizada ao educando quando estiver na situação de cadete.
Todos os dias, quando ele entrar em forma no Pátio Marechal Mascarenhas de Moraes na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), uma frase que representa a essência do ser oficial do EB refulgirá em sua consciência: Cadete! Ides comandar, aprendei a obedecer! Em boa lógica, pode-se inferir dessa sentença que o “ides comandar” significa “ides ser comandante5”. O destino do oficial, logo, é “ser comandante”, é ser um militar com capacidade de conduzir uma força militar para a realização de sua missão, o que já pressupõe uma longa preparação com uma forte educação.
Pátio Marechal Mascarenhas de Moraes
Fonte: o autor.
Prosseguindo, como a educação é um guiamento, entram em cena os guias, ou seja, os educadores. São eles: os instrutores e monitores das diversas escolas, passando pelos oficiais mais antigos (seus companheiros de jornada), até aqueles que são, talvez, os mais importantes nesse processo: os comandantes.6 Estes, o educando, em todos os níveis de sua carreira, os encontrará no caminho a ser percorrido, os quais contribuirão com seus exemplos para a formação do seu caráter, valor e espírito militar.
Enfim, são todos esses educadores que manterão e fortalecerão a chama do entusiasmo do educando. Vale destacar, porém, que é um guiamento, ou seja, o guia aponta a direção a seguir e qual a melhor forma de fazê-lo, mas é o próprio educando que decidirá seguir ou não o que foi indicado. E, é só a sua consciência que poderá dar testemunho de sua transformação, que validará o seu autoaperfeiçoamento.
Quanto às estações, são extremamente importantes nesse itinerário formativo. Elas são as escolas de formação, de aperfeiçoamento e de altos estudos militares, além das de especialização e centros de instrução. Todas como pontos de reunião e difusão de conhecimento e compartilhamento de experiências, onde os professores, instrutores e monitores selecionados pela Instituição apresentarão o “arcabouço ético militar”7 que sustenta uma profissão profundamente ética e submissa a valores e padrões morais que ajustarão todo o comportamento pessoal e profissional do oficial, preparando-o para a condução das operações bélicas.
Chegamos, então, às próprias condições do caminho a ser percorrido. O presente texto limitou-as às da Era do Conhecimento. Sendo assim, quais são os seus desafios? Seus obstáculos? Quais suas tensões em relação ao educando e aos educadores? E quais capacidades e competências que advirão como necessárias ao ser comandante? Assunto para a próxima parte.
BIBLIOGRAFIA
CAMÕES, Luís Vaz de (1980; reimp. 1999). Os Lusíadas. Ed. Comentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 654 p. (Coleção General Benício; v. 354).
COURTOIS, Gaston (2012). A arte de ser chefe. Tradução de Job Lorena de Sant’Anna. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 152 p. (Coleção General Benício).
COUTINHO, Sérgio Augusto de Avelar (1997). Exercício do comando: a chefia e a liderança militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 274 p. (Coleção Taunay; v. 28).
HUDE, Henri (2019). Preparando-se para o futuro: ferramentas de apoio para o tomador de decisão. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 136 p. (Coleção General Benício; v. 558).
SCATOLIN, Adriano (2009). A invenção no Do orador de Cícero: um estudo à luz de Ad Familiares I, 9, 23. Orientadora: Profa. Dra. Zélia L. V. De Almeida Cardoso. São Paulo: Universidade de São Paulo. 213 p. (Tese apresentada ao Programa de Letras Clássicas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP).
SCRUTON, Roger (2020). A Cultura Moderna. Tradução de Judite Jóia. Lisboa (Portugal): Biblioteca Nacional de Portugal. 209p. (Cultura Moderna, Extra-coleção, Edições 70)
TREVISAN, Leonardo N. (2011). Obsessões patrióticas: origens e projetos de duas escolas de pensamento político do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 276 p. (Coleção General Benício; v. 482)
1 Hude, 2019, p.54.
2 Idem, p. 57.
3 Questões abordadas pela Assessoria de Ética e Liderança Militar do Departamento de Educação e Cultura do Exército em 14 de novembro de 2023.
4 Telos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação.
5 Ser comandante, segundo Coutinho, é exercer o poder de decisão e o poder de mando.
6 Courtois, no livro “A arte de ser chefe”, ressalta que o comandante atua como guia e educador.
7 Coutinho, 1997, p. 63.
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