80 anos do pioneirismo das enfermeiras da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na 2ª Guerra Mundial

Autor: DANIEL MATA ROQUE

Quarta, 14 Agosto 2024
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A 2ª Guerra Mundial (1939-1945) foi, indubitavelmente, o maior e o mais sangrento conflito bélico da história, impondo à humanidade perdas incomensuráveis, sofrimentos dilacerantes e tragédias de toda ordem. Paradoxalmente, trouxe consigo importantes inovações tecnológicas de emprego dual, portanto, passíveis de serem aplicadas em benefício da sociedade, com reflexos positivos em diferentes campos do poder. No Brasil, essa intrigante dicotomia contrastou a tristeza pela morte de combatentes e civis com a esperança no futuro da Nação, estimulada por guinadas na política interna e promissores avanços socioculturais e econômicos.

Durante a criação, a organização, a preparação e o emprego da FEB na campanha da Itália, a influência do Exército dos Estados Unidos da América (EUA) foi total. Nesse escopo, aquele país aliado solicitou incluir no contingente expedicionário brasileiro mulheres enfermeiras que pudessem somar esforços às americanas, à época sobrecarregadas e desgastadas por anos de guerra. Como consequência, foi criado o Quadro de Enfermeiras da Reserva do Exército (QERE), em fins de 19431.

Visando formar rapidamente esse Quadro, implementaram-se várias chamadas em jornais de grande circulação, enaltecendo a mulher brasileira e destacando o papel da enfermeira na guerra. Como resultado, centenas de voluntárias2 acorreram ao chamado da Pátria, egressas de diferentes partes do Brasil3. Para o processo de seleção, era exigido ser brasileira nata, solteira ou viúva, não possuir filhos e estar na faixa etária de 20 a 40 anos4. Complementarmente, deveriam possuir diploma de enfermeira, certificado de curso de samaritana, de voluntária socorrista ou declaração para o exercício da enfermagem, emitida por entidade de saúde.

Uma vez selecionadas, as voluntárias deveriam frequentar o Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército (CEERE), como requisito final para o ingresso ao QERE5. Sob a responsabilidade da Diretoria de Saúde do Exército, esse curso apresentou como principal objetivo preparar adequadamente as enfermeiras para o rigor da guerra, adaptando-as com presteza e objetividade à vida na caserna. Composto por módulos didáticos que combinaram instruções teóricas e práticas, as atividades curriculares contemplaram também a prática intensiva do treinamento físico militar6.

No Rio de Janeiro, funcionou o primeiro CEERE, concluído em 25 de março de 1944. Das 50 participantes, 37 foram convocadas para a FEB. Encerrado em 21 de julho do mesmo ano, o segundo curso formou 21 voluntárias, das quais 13 foram selecionadas para o embarque à Itália. Outras 17 alunas convocadas realizaram o CEERE nos Estados da Bahia, do Ceará, de Minas Gerais e do Paraná, dando números finais ao quantitativo de mulheres do Exército que seguiriam para a guerra: 67 expedicionárias no total7.

Pioneiras e determinadas, essas corajosas e resolutas moças marcaram definitivamente o ingresso do segmento feminino nas Forças Armadas do Brasil. Muito embora o grupo parecesse algo heterogêneo, havia entre suas componentes aspectos bastante comuns, seja relacionado às condições socioeconômicas, seja quanto à origem familiar. Muitas eram filhas, netas ou sobrinhas de militares do Exército e da Marinha. Algumas possuíam parentes ou amigos nos quadros da FEB. Outras, inclusive, descendiam de consagrados heróis nacionais da Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), como foi o caso das enfermeiras Aracy Arnaud Sampaio8, Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero9 e Lúcia Osório10.

Aprovadas no CEERE, incluídas no QERE e convocadas para integrar a FEB, as enfermeiras seguiram para a Itália em diferentes grupos, por via aérea, ao longo do segundo semestre de 1944. O denominado Destacamento Precursor de Saúde, por exemplo, no qual estavam cinco enfermeiras11, desembarcou em Nápoles em meados de julho, após longa viagem com escalas em Natal12, no Brasil, e em diversas outras cidades no norte da África, como Dakar, Casablanca, Argel, Túnis e Orã, já reconquistadas pelos Aliados.

Embora possuíssem bagagem acadêmica13 e alguma experiência, as enfermeiras da FEB se depararam no Teatro de Operações com uma situação absolutamente nova e desafiante. Houve, pois, a necessidade de se integrar e adaptar às novas estruturas e funções nos hospitais norte-americanos aos quais estavam distribuídas14, sem perda de tempo, implicando a superação de barreiras culturais, peculiaridades organizacionais e dificuldades impostas pela comunicação em um outro idioma. Nesse processo, o convívio com as americanas resultou extremamente benéfico, permitindo às brasileiras compreenderem de forma mais holística a importância da mulher no esforço de guerra e na sociedade moderna, fazendo-as refletir e ampliar seu pensamento crítico acerca do tema.

Durante o desenrolar da guerra, a jornada das pioneiras brasileiras cobrou o seu preço e os efeitos colaterais se fizeram sentir. Expostas às sensações únicas do combate, embora não estivessem na linha de frente, inexoravelmente presenciaram, em primeira pessoa, o horror da guerra: sangue, ferimentos, mutilações, carnificina, membros dilacerados, vísceras expostas, dor, angústia, sofrimento e morte. Ainda assim, se desdobraram, ultrapassaram seus limites e conseguiram manter intactos os melhores sentimentos de humanidade, compaixão e propósito de bem servir15. Como consequência, algumas não se adaptaram ao serviço em campanha ou sofreram ferimentos físicos ou traumas emocionais graves, que impuseram uma evacuação para tratamento no Brasil ou nos EUA.

De volta à terra natal, vitoriosas e condecoradas pelo seu valor militar em combate, as expedicionárias foram dispensadas e regressaram à vida civil, da mesma forma que a maior parte dos integrantes da FEB. Após grande esforço, que contou com o imprescindível incentivo e apoio de renomadas personalidades nacionais16, as febianas reincorporaram ao Exército, na condição de Tenentes Enfermeiras, no ano de 195717. Esse fato sintetizou, de maneira indelével, o justo reconhecimento da Instituição à importância e ao papel da mulher nas Forças Armadas e na sociedade, muito além do aspecto histórico e simbólico.

O segmento feminino seria incluído novamente na carreira militar das Forças Armadas somente em 1980, quatro anos após a transferência para a reserva da Major Elza Cansanção Medeiros, uma das últimas enfermeiras da FEB a deixar o serviço ativo. Esse mais recente pioneirismo coube à Marinha, seguido pela Aeronáutica, em 1982, e pelo Exército Brasileiro, que formou em 1992, na Escola de Administração do Exército, em Salvador(BA), as primeiras integrantes do Quadro Complementar de Oficiais.

Passados mais de 30 anos, a presença feminina nas fileiras verde-oliva não para de crescer. Comprometidas e perfeitamente integradas, elas ocupam, em condições de igualdade, cargos e funções em todos os níveis da Força, inclusive no exterior, como em missões de paz sob a égide da Organização das Nações Amigas (ONU), nas quais o Brasil se faz representar. Competentes e dedicadas, são vetores que contribuem para a efetividade da Instituição em diferentes áreas: administrativa, técnico-científica, de saúde e bélica. Inspiradas no legado único das enfermeiras da FEB18 e escrevendo, a cada dia, suas próprias histórias, essas oficiais e praças são decisivas para a coesão, a prontidão e a credibilidade do Exército do século XXI.


 


 


 

1 Decreto-lei nº 6.097, de 13 de dezembro de 1943, assinado pouco mais de 4 meses após a criação da FEB, ocorrida por meio da Portaria Ministerial nº 4744, de 9 de agosto do mesmo ano.

2 No Brasil, nunca houve o serviço militar obrigatório para mulheres.

3 No caso do efetivo masculino, apesar do aparente entusiasmo da população com a declaração de guerra e o apoio ao combate contra o Eixo, os índices de voluntariado na FEB foram bastante baixos.

4 Atendendo à expectativa de um maior número de mulheres e ampliando, dessa forma, o número de voluntárias, algumas condições iniciais foram flexibilizadas meses depois: a faixa etária mudou para 22 a 45 anos e passaram a ser aceitas na seleção desquitadas e casadas, essas últimas com a permissão do marido.

5 Inicialmente Enfermeiras de 3ª Classe, posteriormente alçadas à condição de Tenentes Enfermeiras, já na Itália, por determinação do Comandante da FEB, General de Divisão Mascarenhas de Moraes.

6 Foram desenvolvidas variadas e exigentes sessões de treinamento físico militar, em importantes Estabelecimentos de Ensino do Exército Brasileiro, como a Escola de Educação Física do Exército e o Colégio Militar do Rio de Janeiro – Imperial Casa de Thomaz Coelho.

7 Outras 6 enfermeiras integraram o 1º Grupo de Aviação de Caça, o lendário “Senta a Pua”, que somadas às da FEB, perfizeram um total de 73 mulheres do Serviço de Saúde das Forças Armadas na guerra.

8 Brigadeiro Antônio de Sampaio (1810-1866), atual Patrono da Arma de Infantaria do Exército Brasileiro, comandou, durante a Guerra da Tríplice Aliança, a lendária “Divisão Encouraçada”, composta pelos Batalhões “Vanguardeiro”, “Treme-Terra” e “Arranca-Toco”. Faleceu em consequência de ferimentos na Batalha de Tuiuti, em 24 de maio de 1866, o maior e mais sangrento combate travado na América do Sul.

9 Marechal Hermenegildo de Albuquerque Portocarrero (1818-1893), Barão de Forte de Coimbra. No contexto da Guerra da Tríplice Aliança, liderou, em dezembro de 1864, a heroica resistência de militares e civis brasileiros no Forte de Coimbra, contra os invasores paraguaios, em número absurdamente superior.

10 Marechal Manuel Luis Osório (1808-1879), atual Patrono da Arma de Cavalaria do Exército Brasileiro, Marquês do Herval e conhecido como “O Legendário”. Além de destacado herói na Guerra da Tríplice Aliança, foi um eminente soldado e estadista do Império do Brasil.

11 Enfermeiras Antonieta Ferreira, Carmem Bebiano, Elsa Cansanção Medeiros, Ignácia de Mello Braga e Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero.

12 Cidade nordestina que passou à história com a alcunha de “Trampolim da Vitória”, em razão de sua importância geoestratégica para os Aliados, no transcurso da 2ª Guerra Mundial.

13 Algumas eram oriundas de escolas de enfermagem do Rio de Janeiro-RJ (Anna Nery, Alfredo Pinto e Cruz Vermelha Brasileira) e outras de São Paulo-SP (Escola de Enfermagem da USP).

14 Hospitais de Campanha desdobrados em Nápoles, Valdibura, Pisa, Pistoia e Livorno. As 6 representantes da Aeronáutica foram destacadas para o hospital militar localizado em Amarina de Pisa.

15 Descrição do cenário do serviço em campanha e do correspondente comportamento das enfermeiras da FEB, com base no relato da Tenente febiana Isabel Novaes Feitosa (FEITOSA in CRUZ, 2002, p. 185).

16 Políticos, pessoas influentes da sociedade e oficiais de alta patente da FEB, inclusive o seu Comandante, o General Mascarenhas de Moraes.

17 Lei Federal de 1º de junho de 1957.

18 A última representante desse grupo, a Capitão Virgínia Portocarrero, faleceu em 2023, aos 105 anos.

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Parabéns pela brilhante passeio na história, exaltando o papel e a contribuição das enfermeiras no apoio a saúde dos febianos.

 

TC Claudia Macedo

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