A Educação Militar na Era do Conhecimento (Parte I)

Autores: General de Brigada R1 Severino de Ramos Bento da Paixão
Quarta, 15 Janeiro 2025
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Quando se trata da educação direcionada para a formação profissional militar do oficial no Exército Brasileiro (EB), logo me vem à mente o Canto X, estrofe 153, da obra de poesia épica Os Lusíadas do escritor português Luís Vaz de Camões. Dessa estrofe, os quatro últimos versos apresentam-se como constituintes do que parece ser o princípio definitivo para a formulação e execução dessa educação militar:

A disciplina1 militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Senão vendo, tratando e pelejando.”(grifo nosso)

O verso anteriormente grifado, tal como um lampejo, nos remete de pronto à experiência como âmago do saber como fazer a guerra, pois só vendo, tratando e pelejando, ou seja, praticando, se adquire a ciência e a competência para o exercício de tão importante atividade destinada a preparar a dimensão humana do aparelho de guerra componente do Poder Terrestre do Estado brasileiro. É essa a premissa, portanto, que servirá de ponto de partida e que proverá harmonia e unidade ao argumento que será desenvolvido neste ensaio.

Posto isso, para entendê-la de forma mais precisa, faz-se necessário alcançar o seu contexto dentro do Canto X. Vejamos, pois, a estrofe que a antecede, a 152:

"Fazei, Senhor, que nunca os admirados

Alemães, galos, ítalos e ingleses,

Possam dizer que são pera mandados,

Mais que pera mandar, os portugueses.

Tomai conselho só de exprimentados,

Que viram largos anos, largos meses,

Que, posto que em cientes muito cabe;

Mais em particular o experto sabe.2" (grifo nosso)

A estrofe transmite, de forma poética, a exortação que o narrador, Vasco da Gama, faz ao rei de Portugal, D. Manoel, sobre com quem deveria buscar conselho para preparar e conduzir a defesa de sua pátria. Para tanto, começa concitando o rei para que nunca permita que os alemães, franceses, italianos e ingleses digam que os portugueses nasceram mais para serem mandados do que para mandar. Sendo assim, para que isso não ocorra, “Tomai conselho só de exprimentados”, ou seja, com os que têm largo tempo com a realidade da guerra, suas batalhas, severidade, incertezas, contingências e sofrimento. Não se aconselhe com os que somente estudam, pois, embora tenham muita sabedoria, o esperto, aquele que é experiente, sabe mais em profundidade.

E, para ilustrar sua afirmação, o navegador português apresenta o exemplo do filósofo Formião, apontado por Cícero na sua obra Do Orador. Examinemos, agora, a estrofe 153 completa:

"De Formião, filósofo elegante,

Vereis como Anibal escarnecia,

Quando das artes bélicas, diante

Dele, com larga voz tratava e lia.

A disciplina militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando ou estudando,

Senão vendo, tratando e pelejando.3”(grifo nosso)

O general cartaginês, cuja fama certamente o Rei a conhecia, é citado para dar autoridade ao conselho de procurar os experientes na guerra: “Vereis como Anibal escarnecia” do extravagante filósofo Formião, que falava horas sobre as artes militares sem nunca ter de um combate participado. Adverte o poeta, então, que a excelente disciplina militar – suas virtudes bélicas – não se aprende dissertando, mas pelejando, em outros termos, trabalhando de forma dura e cansativa, quiçá, participando do próprio ato de combater.

Retornando a Cícero (106 a.C. – 43 a. C.), conhecido filósofo e orador romano, e a sua obra precitada, é possível nela ainda apreender mais detalhes desse episódio. Para narrá-lo, o autor emprega um diálogo entre os personagens de Cátulo e de Antônio. Nessa conversa, Cátulo afirma que não precisa de um mestre grego que nunca tenha pisado em um fórum, a fim de com ele aprendesse oratória. Para comprovar, cita a ocasião em que Anibal fora convidado por Antioco para ir a sua casa em Éfeso – cidade onde o general se exilara quando expulso de Cartago – para ouvir Formião lecionar sobre o ofício de general e a arte militar em geral. Quando, após a preleção, Anibal é perguntado acerca da sua opinião sobre aquele filósofo, diz-se que respondera nunca ter visto um velho que delirasse por tanto tempo. E Cátulo, concordando com o cartaginês, prossegue:

76. De fato, o que podia haver de mais arrogante ou loquaz do que um grego, que nunca vira um inimigo, nunca conhecera um acampamento, nunca, enfim, tomara a mínima parte em qualquer cargo público, dar lições de arte militar a Aníbal, que por tantos anos lutara pelo poder com o povo romano, subjugador de todos os povos?”4 (grifo nosso)

Ora, pelo até aqui exposto, tanto Camões como Cícero fazem a apologia da experiência sobre o saber discursante, ainda mais quando a disciplina é a arte da guerra, ofício tão necessário à sobrevivência de uma nação. Não restam dúvidas, pode-se afirmar então, de que essa lição repercutiu e repercute na mente dos formuladores da educação militar do Exército Brasileiro.

A era do conhecimento, contudo, parece ampliar o entendimento do saber que se faz necessário para ser um profissional militar no século XXI. Nessa seara e dialogando com Scruton, há três tipos de saber: saber que, saber como e saber o que. O primeiro tipo busca a informação (a ciência). O segundo, a competência (a técnica). Já o terceiro, a virtude (a arte)5. É aqui, nesse terceiro tipo, que este ensaio busca inserir-se, pois, por vezes, ou seja, nem sempre, o militar sabe o que fazer, o que dizer e o que sentir. E para alcançar esse saber, ainda segundo Scruton, a educação moral é o caminho.

Para finalizar esta parte, que já fixa alguns limites do que se pretende abordar nas seguintes, recorramos ao Estatuto dos Militares. Verifica-se então que existe uma correspondência dessa Lei com o que foi escrito no parágrafo anterior, pois o seu Art. 28 indica claramente que o sentimento do dever impõe, a cada um dos integrantes das Forças Armadas brasileiras, conduta moral e profissional irrepreensível. Ora, educar para o que sentir – principalmente para ter o sentimento do Dever – também emerge como algo necessário a ser buscado na Educação Militar na Era do Conhecimento.

 

BIBLIOGRAFIA

CAMÕES, Luís Vaz de (1980; reimp. 1999). Os Lusíadas. Ed. Comentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 654 p. (Coleção General Benício; v. 354).

TREVISAN, Leonardo N. (2011). Obsessões patrióticas: origens e projetos de duas escolas de pensamento político do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 276 p. (Coleção General Benício; v. 482)

SCATOLIN, Adriano (2009). A invenção no Do orador de Cícero: um estudo à luz de Ad Familiares I, 9, 23. Orientadora: Profa. Dra. Zélia L. V. De Almeida Cardoso. São Paulo: Universidade de São Paulo. 213 p. (Tese apresentada ao Programa de Letras Clássicas do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP).

SCRUTON, Roger (2020). A Cultura Moderna. Tradução de Judite Jóia. Lisboa (Portugal): Biblioteca Nacional de Portugal. 209p. (Cultura Moderna, Extra-coleção, Edições 70)

1 Refere-se, nesse verso, às diferentes matérias ou campos de estudo ensinados para a formação do profissional militar.

2 Camões, 1980, p 650.

3 Idem, p. 651.

4 Scatolin, 2009, p. 214.

5 Scruton, 2020, p. 33.

CATEGORIAS:
Educação

Comentarios

Comentarios

"Vendo, tratando e pelejando."

A frase está, em bronze, na entrada do Corpo de Cadetes da AMAN e na porta da sala do Chefe do DECEx. Não é por menos: novas técnicas e meios surgem, mas sempre será "vendo, tratando e pelejando" que as verdadeiras competências militares (a "disciplina militar prestante") serão desenvolvidas. Para que não nos esqueçamos nunca. 

Parabéns pelo que já li, caro Gen Paixão.   

Gen Novaes, Cmt Op Ter

 

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