Borboletas em Uauá (*)

Autores: Cap Marco Antonio do Carmo Rodrigues
Sexta, 14 Novembro 2025
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Já se passaram cento e vinte e oito anos do fim da chamada “Guerra de Canudos” e revisitar a participação do Exército Brasileiro naquele conflito atende a um chamado para uma compreensão histórica madura e desapaixonada. Um morticínio imenso de homens e mulheres brasileiros, fardados ou não, resultante de fatores diversos e inesperados. Naquele que foi um dos capítulos mais dramáticos pelos quais nossa Força Terrestre atravessou, alguns “gatilhos” capitais, no que se refere ao início efetivo da luta, acabaram por ser ignorados, ou muito timidamente destacados, uma vez que sua importância no encadeamento factual resultante salta aos olhos de qualquer investigador honesto. Um vilarejo remoto no caminho para Canudos foi o palco desse cenário dramático. Usando uma analogia genérica, vamos destacar o desenrolar de uma operação militar policial que desaguou em importante (**) conflito entre brasileiros de nossa História.

Efeito borboleta é um conceito da chamada teoria do caos usado para descrever como pequenas alterações em condições iniciais podem levar a grandes e imprevisíveis diferenças no resultado de longo prazo em “sistemas dinâmicos”. A metáfora usada para se compreender esse processo é que o bater de asas de uma borboleta pode, em última análise, causar um tornado do outro lado do mundo. De forma direta, “efeito borboleta” significa que pequenas ações ou eventos podem ter consequências significativas e inesperadas mais tarde. Isso pode ser especialmente relevante em áreas como a previsão do tempo, onde pequenas variações nas condições iniciais podem levar a resultados muito diferentes. O conceito foi popularizado pelo matemático e meteorologista Edward Lorenz, que o usou para descrever a sensibilidade de sistemas meteorológicos a pequenas mudanças. No entanto, o efeito borboleta também se aplica a outras áreas, como a economia, a biologia e as relações sociais, e no nosso caso aqui, em História, lógico, de forma retroativa. 

Fazendo uma analogia conceitual com o efeito borboleta, podemos auferir que muito do desenrolar crítico e imprevisto em que “a questão do Conselheiro” se transformou está relacionado ao que se sucedeu em Uauá, naquele fatídico 21 de novembro de 1896. A ação do conselheirista naquele episódio foi um “bater de asas” devastador. Naquela ocasião, nosso País ainda não tinha provado de forma efetiva a face burocrática do federalismo (oficializado pela carta de 1891). E logo se viu um embate sangrento que colocou seu Exército na situação delicada de impor a lei e a ordem dentro de seu próprio território. De forma bem resumida, tivemos como personagem central a figura do Antonio Vicente Mendes Maciel, um religioso que acabou se transformando em um líder messiânico estabelecido no carente sertão baiano de fins do século XIX. Carismático e dono de uma retórica envolvente e convincente, Antonio “Conselheiro” logo começou a rivalizar sua influência tanto com a autoridade eclesiástica como com o poder político regional. É fato documentado que ainda antes de se instalar em Canudos, o Conselheiro e os seus já haviam sido confrontados com três operações policiais, no ano de 1892, que não tinham conseguido desbaratá-los, no âmbito do cenário sertanejo baiano.

Pela necessidade de defender a cidade de Juazeiro de um possível ataque dos conselheiristas que seria motivado por um desentendimento com um fornecedor de madeira, o governador baiano requisitou ao Exército a ação de uma tropa de cerca de cem homens para a “delicada” missão de “manutenção da ordem perturbada no interior...”. O Comandante do 3º Distrito Militar, atual 6ª Região Militar, sediada em Salvador, designou ao Tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, o comando de cem soldados para o intento. Proteger Juazeiro parece ter sido o objetivo mais urgente, e na ideia de se antecipar a possível e alardeada marcha agressiva dos canudenses, Pires ordenou que partissem ao encontro dos jagunços visando mitigar a ameaça antes que avizinhassem à cidade. Após pousar em Uauá, vilarejo no meio do caminho, a tropa foi surpreendida e atacada no fim da madrugada pelos homens do Conselheiro, com ferocidade e tenacidade quase sobrenatural. O embate causou a morte de cerca de cento e cinquenta sertanejos, dez mortos e dezessete feridos entre os soldados, e inaugurou o sequenciamento dramático que resultaria nas próximas três expedições numa guerra de quase um ano de duração com um número aproximado de 25 mil mortos.

Análise contemporânea sobre o uso efetivo do poder de coerção estatal nos revela que enfrentamentos envolvendo forças armadas e concidadãos são assuntos muito delicados. Normalmente, imersos em preconceitos deslocados que acabam por turvar, na maioria das vezes, uma compreensão mais realista, assumem um lado e acabam por desconsiderar totalmente as motivações do outro. A narrativa padrão, quase uníssona, retrata a Guerra de Canudos como uma ação (do governo) para combater um vilarejo que passou a representar uma “ameaça” política a uma república ainda em fase de se estabelecer. As motivações desses “pobres” homens do sertão, em suas razões sociais, culturais e religiosas que desaguariam nesse triste capítulo de nossa história foram e continuam sendo exaustivamente debatidas. Mas é lícito que possamos recortar a ação da tropa do Tenente Pires como a resposta do Exército ao chamado de um ente federado ante uma ameaça representada pelo início das hostilidades de homens que se puseram à margem da lei (ainda que os referenciais legais, éticos e morais daquele momento não sejam os mesmos ao longo do tempo, ontem e hoje). Resta relembrar o ataque dos conselheiristas à tropa, em Uauá, como o fato grave que desencadeou a Guerra. Essa visão, até um pouco fatalista, pode contribuir para diminuir certos preconceitos herdados pela historiografia oficial a respeito de Canudos e nos ajudar, como soldados de Caxias, e como cidadãos do século XXI, a entender melhor como os rumos de ações militares de âmbito menor podem resultar em verdadeiros conflitos escalados, cujo preço a ser pago pode ser alto demais, mesmo que em nome da ordem e do progresso.

(*) Em homenagem aos soldados de Caxias mortos em Canudos.

(**) Outros conflitos internos, como a Cabanagem (1835-1840) podem entrar numa disputa por esse lamentável ranking.

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