2 ª Fase das Operações na Bacia do Serchio: Término do Batismo de Fogo da Força Expedicionária Brasileira (FEB)

Autores: Cel André Dias Cesar Campiani Maximiano
Sexta, 25 Outubro 2024
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Durante o mês de setembro de 1944, os êxitos alcançados pelo IV Corpo de Exército1 impuseram um novo reposicionamento de tropas. Como consequência, em 29 daquele mês, o Destacamento FEB2 foi enviado para uma Zona de Ação mais a leste, balizada pelo vale do rio Serchio. A chegada dos demais integrantes da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária (1ª DIE) em Nápoles3 não permitiu o seu emprego imediato, em razão de pendências relacionadas à preparação do efetivo e à distribuição de equipamento. A incerteza da situação fez com que o General Crittenberger mantivesse sob o seu controle duas organizações militares febianas em diferentes momentos da 2ª Fase de Operações dos brasileiros: o I Batalhão do 6º Regimento de Infantaria e o II Grupo de Obuses do 1º Regimento de Obuses Auto-Rebocado, menos a 2ª Bateria.

A Ordem de Operações nº 12, do IV Corpo, datada de 28 de setembro de 1944, determinava ao Destacamento FEB progredir na direção-geral de Castelnuovo di Garfagnana, mantendo o esforço principal ao longo do vale do Serchio. A nova frente havia praticamente dobrado de tamanho, passando a ter 20 km de largura. A leste, o contato com o Grupamento Tático da 92ª Divisão de Infantaria do Exército (Task Force 92)4 deveria ser estabelecido e mantido. A oeste, estava a Task Force 45, dissociada dos expedicionários por uma cadeia montanhosa de vulto.

A nova área de atuação, bem mais humanizada5 e com o terreno ainda bastante movimentado, dificultava a progressão da tropa, situação agravada pelas chuvas contínuas. A temperatura, típica do outono europeu em área montanhosa, caía muito ao final do dia, por vezes nevando. Vários dos soldados alemães naquele momento na Itália eram veteranos experientes realocados da Frente Oriental. Na Zona de Ação dos febianos, havia integrantes da 42ª Divisão Ligeira, dispostos em uma efetiva defesa em setor6. O rápido avanço e as vitórias da fase anterior produziram, em todos os escalões, uma inobservância generalizada quanto à capacidade combativa do inimigo e a sua determinação para prosseguir lutando. Os laços afetivos estabelecidos entre brasileiros e italianos, fruto do fluxo migratório destes ao Brasil no final do século XIX e princípio do século XX, haviam contribuído para o surgimento de um comportamento amigável por parte da população.

Castelnuovo di Garfagnana7, um dos baluartes da Linha Gótica8, possuía um grande valor, pois era por onde passava, paralela à linha de frente, a última rodovia no sentido leste-oeste que conectava a cidade de La Spezia, no litoral do Mar Tirreno, até Modena, no centro-norte do país. Do ponto de vista tático-operacional, sua perda afetaria a capacidade dos nazifascistas reposicionarem tropas e manterem um adequado fluxo logístico. Sob o prisma estratégico, sua queda impactaria na própria campanha do Eixo no Mediterrâneo, por contribuir para o controle aliado de toda a península em um prazo mais curto.

As chuvas torrenciais adiaram para 5 de outubro o começo do movimento. Ao término dessa jornada, a linha Motrone – San Romano – Ghivizzano foi ocupada. No final do dia 6 de outubro, foi conquistada a linha Bologna – Fornaci – Coreglia. Em Fornaci, foi capturada praticamente intacta a Fábrica de Munição de Catarozzo, responsável, inclusive, pela produção e estoque de peças de aviação do Eixo. Em 11 de outubro, a linha Barga – Gallicano foi atingida com sucesso.

Em 14 de outubro, após idas e vindas, o II Grupo de Obuses e o I Batalhão retornaram em definitivo ao comando do General Zenóbio da Costa. No dia 20 de outubro, a Inteligência Militar concluiu haver indícios da presença de integrantes da 232ª Divisão de Infantaria alemã na Zona de Ação brasileira, ocupando as alturas que por sul dominam Castelnuovo di Grafagnana (objetivo principal da 2ª Fase). Na mesma data, a linha Verni - Albiano - Sommocolonia foi conquistada e o avanço, suspenso. No dia 28 de outubro, os relatórios de inteligência indicaram a saída da 232ª Divisão de Infantaria da frente febiana, substituída pela Divisão de Infantaria Monterosa italiana, menos experiente. Em consequência, o prosseguimento do ataque foi autorizado (figura 1).

A posse da linha de alturas Monte San Quirino - Battosi - Colle - Pian del Rio - Cota 906 - Le Rochette - Lama di Sotto - Pradoscello era fundamental para a FEB. Para conquistá-la e mantê-la, foi planejado empregar inicialmente o I Batalhão no ataque, reforçado pela 7ª Companhia do III Batalhão, a leste do rio Serchio. O III Batalhão, em contato com o inimigo, seria ultrapassado pelo I Batalhão. Após o cumprimento da missão do I Batalhão, o esforço principal mudaria para o lado oeste do Serchio, com a finalidade de investir e conquistar Castelnuovo di Garfagnana.

A conquista do objetivo do I Batalhão se daria igualmente de forma faseada. Primeiramente, a porção mais elevada seria atacada, para, em seguida, o restante ser tomado, sem haver uma preparação de fogos, favorecendo o Princípio de Guerra da Surpresa. As 1ª e 2ª Companhias atacariam primeiro e conquistariam a porção leste (mais alta), respectivamente a Cota 906 e a linha de alturas Le Rochette - Lama di Sotto - Pradoscello. Mediante ordem, a 3ª Companhia conquistaria a porção central (Battosi - Colle - Pian del Rio) e a 7ª Companhia, o Monte San Quirino, mais próximo ao Serchio. Um Pelotão da 1ª Companhia permaneceria na base de partida de Sommocolonia, ao passo que outro, da 7ª Companhia, guarneceria Albiano.

Ao anoitecer de 30 de outubro, a missão do I Batalhão estava cumprida conforme planejado. O pouco tempo para a ocupação do terreno resultou em séria vulnerabilidade. A frente a ser defendida era muito maior do que a doutrina previa e as posições dos pelotões estavam completamente isoladas. Não foi planejada reserva de tropa para essa ação e a possibilidade de infiltração inimiga era uma ameaça crescente. Os estoques de munição não foram preposicionados para a manutenção das posições conquistadas e o remuniciamento, confiado ao transporte de mulas, falhou, pelas dificuldades do terreno, do clima e da ação inimiga (figura 2).

Entre 2h e 3h de 31 de outubro, tropas italianas e alemãs contra-atacaram de maneira vigorosa em toda a frente, com um efetivo de, pelo menos, três batalhões9, demonstrando grande habilidade tática, profundo conhecimento do terreno e prévio ensaio das ações. O ponto de penetração inicial foi justamente o setor mais fraco da defesa (o do pelotão que ocupava Battosi, pertencente à 3ª Companhia), que pego de surpresa e sem munição suficiente, sustentou o fogo até ver-se obrigado a retrair, com o saldo de um grupo de combate capturado. A segunda posição a cair foi a do pelotão da 7ª Cia, em Monte San Quirino.

Ao amanhecer de 31 de outubro, a situação do I Batalhão era bastante complicada e caótica. A 3ª Companhia, com menos um pelotão, recebia nova e forte pressão. À medida que o tempo passava, só piorava. Os Postos de Comando da 3ª Companhia e da Companhia de Petrechos Pesados, desdobrados provisoriamente em um casarão de três pavimentos na contra-encosta de Colle, foram cercados e atacados. Nesta ação, o Tenente Pinto Duarte10 perdeu heroicamente a vida, cobrindo a retirada dos demais camaradas que estavam naquela instalação. Mais febianos caem capturados e, às 13h do mesmo dia, é dada a ordem de retraimento às 3ª e 7ª Companhias em direção a Barga. Ao III Batalhão, que apoiava o retorno dos integrantes do I Batalhão, é determinada a ocupação da base de partida de Albiano por um pelotão seu.

Na sequência, as posições ocupadas pelas 1ª e 2ª Companhias passaram a ser hostilizadas. A 1ª Companhia resistiu com invulgar determinação e coragem a três contra-ataques, repelindo o inimigo até esgotar toda a munição. Antes do quarto e fatídico contra-ataque, foi dada a ordem de retraimento à subunidade para Sommocolonia. Por volta de 1h da madrugada de 1º de novembro, a 2ª Companhia, extremamente pressionada e isolada, recebeu a mesma ordem. Dessa forma, foram retomadas pelo inimigo todas as posições anteriormente conquistadas (figura 3).

O fulminante contra-ataque ítalo-germânico trouxe aprendizados à FEB. Ficou patente que eventuais equívocos na análise dos fatores da decisão, sobretudo em razão do otimismo provocado por êxitos anteriores em combate, capaz de contagiar todos os escalões, comprometem, em definitivo, o sucesso da operação. O impacto da combinação terreno-inimigo-condições meteorológicas indica o quão ousada será a missão. O estado sanitário dos combatentes e o seu desgaste físico e mental imporá, por vezes, a necessidade de uma pausa nas operações. O estudo do inimigo e de sua matriz doutrinária de emprego regem, de forma determinante, todo e qualquer planejamento.

Os exércitos marcham sobre os seus estômagos”, ensinou o grande Marechal Napoleão Bonaparte. A logística dita, portanto, até onde o combate pode chegar e a efetividade da tropa lutando, em síntese, não perdoará os improvisos. Por fim, é importante ressaltar que as várias vezes em que o Comandante do IV Corpo de Exército necessitou manter sob o seu controle parte da tropa brasileiras, pressionado pela incerteza da situação, houve prejuízos tanto ao planejamento do Destacamento FEB como à sincronização de suas ações na operação.

Após 45 dias ininterruptos de combate11, os febianos avançaram 22 km na Bacia do Serchio, em uma frente de até 20 km, sofrendo 290 baixas em ação, das quais 14 foram fatais. Foram aprisionados 258 inimigos, sendo 50 italianos e os demais alemães, além de capturados inúmeros armamentos e outros materiais de guerra do Eixo. Passado o batismo de fogo, foi desfeito o Destacamento FEB e a 1ª DIE, uma vez completa, passou a dar continuidade à saga do Exército Brasileiro nos campos de batalha da Itália.


 

 

 


 

1 Comandado pelo Tenente-General norte-americano Crittenberger, que enquadrava o Destacamento FEB.

2 Composição do Destacamento FEB: 6º Regimento de Infantaria; II Grupo de Obuses do 1º Regimento de Obuses Auto-Rebocado; 1ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia; 1ª Companhia de Evacuação e Pelotão de Tratamento do 1º Batalhão de Saúde; 2º Pelotão do Esquadrão de Reconhecimento; Pelotão de Polícia do Exército; Pelotão de Intendência; e Pelotão de Sepultamento. Também, as seguintes tropas norte-americanas: Companhias “C”/751º Batalhão de Tanques Médios e “C”/701º Batalhão de Destruidores de Tanques.

3 Integrantes dos 2º e 3º Escalões de Embarque.

4 A 92ª Divisão de Infantaria - Divisão Búfalo, cujo nome faz alusão aos Buffalo Soldiers, como eram chamados os cavalarianos negros do exército dos EUA pelos índios, durante a guerra contra os nativos. O cantor jamaicano Bob Marley compôs, em 1984, a música Buffalo Soldier, homenageando esses combatentes. A Divisão Búfalo, de negros, lutou nas 1ª e 2ª Guerras Mundiais, em um contexto da segregação racial nas forças armadas americanas.

5 Refere-se às regiões do ambiente natural que foram alteradas ou modificadas pela atividade humana.

6 É uma forma de conduzir as ações defensivas, muito utilizada e inovada pelas tropas germânicas no entre guerras. Utiliza, dentre outras, a denominada técnica de “defesa elástica”, quando a força oponente é atraída para o interior de uma área e atacada por diferentes sistemas de armas. A Defesa em Setor foi posteriormente adotada pelas forças armadas dos EUA na doutrina denominada AirLand Battle, da década de 1980, na fase final da Guerra Fria.

7 Estrategicamente localizada na confluência dos rios Serchio e Turrite Secca, é a principal cidade da Toscana.

8 Posição defensiva do Eixo, apoiada na cadeia montanhosa dos Apeninos, em muitas partes fortificada com concreto, que cortava horizontalmente a península italiana de costa a costa, com quase 300 Km de extensão.

9 Sob a coordenação do General italiano Carloni e do Coronel alemão Schirowsky, o contra-ataque envolveu as seguintes organizações militares do Eixo: 01 Batalhão Brescia, da Divisão de Infantaria Monterosa italiana; 01 Batalhão do 25º Regimento Jäger, da 42ª Divisão Ligeira alemã; e 01 Batalhão do 1044º Regimento de Granadeiros, da 232ª Divisão de Infantaria alemã (GONÇALVES e MAXIMIANO, 2005, p. 106), extraído do livro “Irmãos de Armas”.

10 O Tenente José Maria Pinto Duarte, Comandante do Pelotão de Metralhadoras da Companhia de Petrechos Pesados, foi mantido insepulto até o final da Segunda Guerra Mundial na Itália, em um local onde o seu Comandante, o Capitão Atratino, o havia deixado em segurança, após a sua morte. O seu corpo foi preservado pela ação da neve e esse mesmo capitão, após o armistício, se encarregou de pessoalmente resgatar o cadáver do amigo e proporcionar-lhe um enterro digno. Atualmente, os restos mortais do Tenente Pinto Duarte repousam ao lado do de tantos outros heróis brasileiros no Monumento Nacional ao Mortos da Segunda Guerra Mundial, localizado no Aterro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro.

11 A 1ª Companhia do 9º Batalhão de Engenharia já havia sido empregada de modo isolado em 6 de setembro, montando pontes sobre o rio Arno na área de retaguarda do V Exército de Campanha.

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O texto sobre os desdobramentos da FEB durante a 2ª Fase de Operações é, sem dúvida, uma contribuição valiosa para a compreensão da complexidade e da bravura que caracterizaram a atuação brasileira na Segunda Guerra Mundial. A forma como o senhor aborda a intersecção entre táticas militares, condições adversas e o espírito dos soldados nos transporta para aquele momento histórico, permitindo-nos sentir a intensidade e os desafios enfrentados.

A riqueza de detalhes e a clareza com que descreve os eventos, desde o planejamento até as consequências das operações, são impressionantes

Parabéns pelo excelente trabalho! Seu texto enriquece o debate sobre a participação brasileira na guerra e mantém viva a memória daqueles que lutaram com coragem e determinação.

 

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