STARTUPS, BIG TECHS, VENTURE CAPITAL E O MILITARISMO HI-TECH

Autores: S Ten Julio Cezar Rodrigues Eloi
Quarta, 24 Setembro 2025
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Exatamente duas semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, Alexander Karp, CEO da Palantir, fez seu discurso aos líderes europeus, como noticiou Melissa Heikkilä, repórter do MIT Technology Review. Com o conflito às portas, os europeus deveriam modernizar seus arsenais com a ajuda do Vale do Silício, como argumentado por Karp em uma carta aberta (Heikkilä, 2022).

Para que a Europa "permaneça forte o suficiente para derrotar a ameaça de ocupação estrangeira", declarou Karp, os países precisam abraçar "a relação entre tecnologia e Estado, entre empresas disruptivas que buscam se livrar do domínio de empreiteiras entrincheiradas e os ministérios do governo federal com financiamento" (Heikkilä, 2022). Além do contexto do conflito entre a Rússia e Ucrânia, outros focos de tensão se desenvolvem pelo planeta, como no Oriente Médio, de forma que este artigo pretende discutir a relação entre empresas de matriz tecnológica, como as startups e Big Techs, o capital de risco (venture capital) e a aplicação militar atual.

A guerra é um catalisador para a mudança, disse Kenneth Payne, que lidera pesquisas de estudos de defesa no Kings College London e é autor do livro “I, Warbot: The Dawn of Artificially Intelligent Conflict” (Heikkilä, 2022). De acordo com Heikkilä (2022), a OTAN anunciou, em 30 de junho de 2022, um fundo de inovação de US$ 1 bilhão para startups em estágio inicial e fundos de capital de risco para tecnologias prioritárias, como Inteligência Artificial (IA), processamento de big data e automação.

Para a referida repórter, o conflito na Ucrânia aumentou a urgência de levar mais ferramentas de IA ao campo de batalha. As empresas que possuem maior probabilidade de lucrar são startups como a Palantir, que esperam atualizar seus arsenais com as tecnologias mais recentes (Heikkilä, 2022). Mas preocupações éticas sobre o uso de IA no conflito tornaram-se mais urgentes à medida que a tecnologia se torna mais avançada, enquanto a perspectiva de restrições e regulamentações que regem seu uso parece tão remota quanto nunca (Heikkilä, 2022).

Desde o início dessa guerra, o Reino Unido lançou uma nova estratégia de IA especificamente para defesa, e os alemães reservaram pouco menos de meio bilhão para pesquisa e IA dentro de uma injeção de US$ 100 bilhões para as Forças Armadas - FA (Heikkilä, 2022). Anteriormente, o então Ssecretário de Defesa dos EUA, Ash Carter, criou um posto avançado do Pentágono a cerca de 3 km do Googlepex, o campus da Alphabet no Vale do Silício (González, 2023).

Conforme o antropólogo estadunidense Roberto J. González, o posto avançado era a Unidade Experimental de Inovação em Defesa (Defense Innovation Unit Experimental - DIUx), criada em agosto de 2015, para identificar e investir rapidamente em empresas que desenvolvam tecnologias de ponta que possam ser úteis aos militares. Com a DIUx, o Pentágono construiu sua própria aceleradora de startups dedicada a financiar empresas especializadas em IA, sistemas robóticos, análise de big data, segurança cibernética e biotecnologia (González, 2023).

O escritório da DIUx instalou-se próximo a outras empresas de tecnologia: o Lab126 da Amazon (onde o leitor Kindle, o Echo e outros dispositivos digitais foram criados); a sede corporativa do LinkedIn; o campus da Microsoft no Vale do Silício; e os escritórios corporativos da Apple, que ficam a 8 km de distância, na vizinha Cupertino (González, 2023). Assim, o posto avançado de inovação fica literalmente na intersecção das grandes empresas de tecnologia e defesa (González, 2023).

O Pentágono tem sua própria agência de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), a DARPA (Defense Advanced Research Projects Agency), que se dedica a projetos de décadas, não meses, de distância (González, 2023). Carter pensou num escritório ágil para intermediar o relacionamento civil e militar em inovação, canalizando uma fração do orçamento de defesa para empresas emergentes que desenvolvem tecnologias prestes a serem concluídas (González, 2023).

Nessa linha de raciocínio, o DIUx ligava as necessidades dos oficiais do Pentágono com empreendedores/engenheiros. Adiante, duas filiais do DIUx foram criadas em cidades com tecnologia em expansão: Boston e Austin (González, 2023).

Três anos após sua criação, a DIUx foi renomeada para Unidade de Inovação em Defesa (Defense Innovation Unit - DIU), deixando o caráter experimental. Apesar dos desafios iniciais, a DIUx foi descrita como "um recurso comprovado e valioso" pelo então Secretário Adjunto de Defesa, Patrick Shanahan (González, 2023).

Figura 1 – Contratos dos departamentos de segurança dos EUA com Big Techs

Fonte: González (2023), baseado em “Big Tech Sells War” (2022).

Nessa conjuntura, novos fluxos de gastos do Pentágono são destinados a um tipo diferente de contratantes de defesa: uma combinação de empresas de tecnologia gigantescas (por exemplo, Microsoft, Amazon, Google, Oracle, Hewlett Packard, Dell, Motorola e IBM) e centenas de startups menores apoiadas por empresas de capital de risco (González, 2024). Quase todas as startups estão na fase de financiamento pré-IPO, nos exemplos de Anduril Industries, Shield AI, HawkEye 360, Skydio, Rebellion Defense e Epirus, entre muitas outras (González, 2024).

Entre 2019 e 2022, os EUA concederam às Big Techs contratos no valor de pelo menos US$ 53 bilhões combinados (González, 2024). Esse montante desfaz o mito comum de que o Vale do Silício tem relutado em fazer negócios com o Pentágono devido à chamada "divisão cultural" (González, 2024).

Nos resultados da pesquisa de González (2024), o Departamento de Defesa dos EUA (US Department of Defense – DoD) formalizou contratos plurianuais no valor de dezenas de bilhões de dólares à indústria de tecnologia na última década. Uma estimativa conservadora indica que os EUA concederam US$ 28 bilhões à Microsoft, Amazon e Alphabet (controladora do Google) entre 2018 e 2022 (González, 2024).

Segundo González (2024), o valor real do Pentágono e da IC (US Intelligence Community) é provavelmente maior, uma vez que “muitos dos maiores contratos [do Departamento de Defesa e da IC] com empresas de tecnologia dos EUA são classificados e retidos das bases de dados de compras públicas”. Nesse sentido, as principais empresas de venture capital como a Sequoia Capital e a Andreessen Horowitz - e dezenas de outras menores - aumentaram os investimentos em startups de tecnologia de defesa. Mais de US$ 100 bilhões em financiamento de capital de risco foram destinados a essas startups entre 2021 e 2023 (González, 2024).

González (2024) refuta a percepção popular de que a China está prestes a superar os EUA na "corrida armamentista de IA" global que determinará o futuro da geopolítica e do domínio econômico global. Isso é feito demonstrando como a narrativa dessa corrida tem sido propagada por autoridades do Pentágono e líderes do setor de tecnologia que se beneficiarão do aumento nas vendas de sistemas de armas, vigilância e logística de alta tecnologia, possibilitados pela IA (González, 2024).

Essas percepções equivocadas correm o risco de desviar recursos dos contribuintes para projetos de P&D que atendam aos militares, em vez dos civis (González, 2024). Em curto período, os funcionários do DoD criaram uma vasta infraestrutura para fornecer suporte financeiro a empresas de tecnologia de defesa, como se comprovam em contratos sintetizados nas Figuras 1 e 2.

Figura 2 - Cinco maiores contratos de tecnologia militar concedidos nos EUA




Fonte: González (2024).

Para os italianos Andrea Coveri (Universidade de Urbino), Claudio Cozza (Univ. Nápoles) e Dario Guarascio (Univ. Roma), os militares não podem prescindir das Big Techs. Estas últimas controlam sistemas em nuvem ou algoritmos de IA voltados ao reconhecimento de imagens e sons, à previsão de comportamentos e ao direcionamento estratégico, essenciais para vigiar adversários e “aliados” e, se necessário, antecipar movimentos em batalha (Coveri, Cozza & Guarascio, 2025).

Essas corporações desempenham um papel fundamental nos ecossistemas de inovação relacionados à defesa, ajudando a mobilizar os esforços de P&D de startups e facilitando a transferência para os militares de tecnologias projetadas para o domínio civil (Gawer, 2022; Guarascio & Pianta, 2025; apud Coveri, Cozza & Guarascio, 2025). Não menos relevantes, as plataformas de mídia administradas pelas Big Techs – por exemplo, a plataforma de mídia social X, de propriedade de Elon Musk – apoiam a construção de consenso político e influenciam a opinião pública, tanto nos EUA quanto no exterior (Coveri, Cozza & Guarascio, 2025).

Por outro lado, cabe mencionar o exemplo de Israel, que em meados de 1990, era um Estado de bem-estar social com economia em dificuldades e indústria de alta tecnologia insignificante, como explicaram Ori Swed e John Sibley Butler (2015). Para os referidos pesquisadores da Universidade do Texas, enquanto o país enfrentava complexas questões de segurança, lograram êxito ao se tornarem um gigante de tecnologia sofisticada e inovadora.

O trabalho de Swed & Butler (2015) indicou que as empresas israelenses de tecnologia na NASDAQ ultrapassaram as de potências econômicas e tecnológicas como Reino Unido, Alemanha, Japão e Coreia do Sul. Assim, destacam ainda que há mais de uma década Israel tem sido um dos principais polos de startups do mundo.

O estudo do salto tecnológico hebreu recebeu ampla atenção na literatura profissional e especializada, sendo que inúmeros artigos em periódicos de negócios exaltam o florescimento da indústria israelense de tecnologia e capital de risco (Swed & Butler, 2015). Embora se reconheçam outras variáveis ​​(capital do conhecimento e capital financeiro), os pesquisadores orientam que esse boom se credita ao papel das IDF (Israel Defense Forces) como incubadoras de P&D e tecnologia avançada.

Este artigo discutiu a relação entre as empresas jovens, ágeis, flexíveis e inovadoras (startups), o capital de risco nelas investido (venture capital), as gigantes do setor (Big Techs), assim como o setor militar, representado pelos exemplos dos EUA, Israel, Reino Unido e Alemanha. No contexto de conflitos na Ucrânia e Oriente Médio, os EUA lutam para manter a superioridade, frente à China, na forma de contratos com Big Techs e startups, no que britânicos e alemães investem em IA, e os israelenses se consolidam como incubadores de P&D em alta tecnologia. Por fim, destaca-se o investimento de risco para negócios embrionários, em cenários incertos, mas que oferecem expectativas de lucro pela inovação e escalabilidade.

REFERÊNCIAS

Coveri, A., Cozza, C., & Guarascio, D. (2025). Big Tech and the US Digital-Military-Industrial Complex. Intereconomics, 60 (2), 81-87. Disponível em: https://www.intereconomics.eu/pdf-download/year/2025/number/2/article/big-tech-and-the-us-digital-military-industrial-complex.html . Acesso em: 22 Jun. 2025.

González, R. J. (2024). How Big Tech and Silicon Valley are transforming the military-industrial complex. Watson Institute for International and Public Affairs. Disponível em: https://watson.brown.edu/costsofwar/files/cow/imce/papers/2023/2024/Silicon%20Valley%20MIC.pdf . Acesso em: 22 Jun. 2025.

González, R. J. (2023). Militarising Big Tech. The Rise of Silicon Valley's Digital Defence Industry. State of Power. Disponível em: https://www.tni.org/en/article/militarising-big-tech . Acesso em: 22 Jun. 2025.

Heikkilä, M. (2022). Why business is booming for military AI startups. MIT Technology Review, 7. Disponível em: https://www.technologyreview.com/2022/07/07/1055526/why-business-is-booming-for-military-ai-startups/amp/ . Acesso em: 22 Jun. 2025.

Swed, O., & Butler, J. S. (2015). Military capital in the Israeli hi-tech industry. Armed Forces & Society, 41 (1), 123-141. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1177/0095327X13499562 . Acesso em: 22 Jun. 2025.

CATEGORIAS:
Ciência e Tecnologia

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Excelente 👏 👏 😄 

Muito interessante! Parabéns👏

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