A participação de mulheres uniformizadas em operações de manutenção da paz é um tema de grande relevância no cenário internacional e tem ganhado destaque nas últimas décadas. Historicamente, o segmento feminino foi sub-representado em missões desta natureza, tanto em termos de participantes quanto de reconhecimento de suas contribuições. No entanto, nos últimos anos, houve uma crescente conscientização sobre a importância da perspectiva de gênero em conflitos e na resolução de crises, conduzindo a uma mudança significativa desse panorama.
Atualmente, existem onze missões de paz em curso, nas quais estão desdobrados mais de 55.000 militares em contingentes de tropa e 2.800 militares em missões individuais. Dentre aqueles empregados como tropa, 9% são mulheres, o que corresponde a quase 5.000 militares. Em missões individuais, 19% são mulheres, o que equivale a cerca de 500 integrantes do segmento feminino (Brasil, 2024).
A Resolução 1325, promulgada em 2000, pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CS ONU) estimula a participação das mulheres em todos os setores das missões de paz. Essa resolução marca, pela primeira vez, a promoção da igualdade de gênero em ações relativas à segurança, nos campos nacional e internacional e à construção da paz duradoura.
Figura 1: Militar do Exército Brasileiro no Haiti
Fonte: Gianinni e Costa (2017).
A participação brasileira em missões da ONU remonta ao ano de 1947, primeira vez em que os Estados-membros enviaram seus nacionais ao terreno sob o guarda-chuva da ONU. No ano de 1992, houve o desdobramento das primeiras brasileiras, as policiais militares 1º Sargento Helâne Pires de Castro Santos e a 1º Sargento Maria Luiza de Jesus Bernardes, ambas da Polícia Militar de Minas Gerais. As peacekeepers pioneiras foram desdobradas na 2ª Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola (UNAVEM II). Desta forma, o Brasil tem envidado esforços no sentido de participar ativamente dessa nova fase, por meio do aumento do envio de mulheres das Forças Armadas e Polícias Militares para operações de manutenção da paz.
Nas últimas décadas, as capacetes azuis brasileiras têm desempenhado um papel crescente e fundamental nas operações de paz sob a égide da ONU. Seu desempenho tem feito a diferença em situações sensíveis, protegendo e promovendo os direitos das pessoas afetadas por conflitos e desastres, a exemplo da atuação do Brasil na Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (MINUSTAH).
Figura 2: Policial militar brasileira no Haiti
Fonte: Giannini (2014).
O alcance da paridade de gênero em todo o sistema das Nações Unidas é um dos objetivos definidos pelo Secretário-Geral, António Guterres, desde o início de seu mandato. Neste contexto, a Estratégia de Paridade de Gênero Uniforme (2018-2028) foi elaborada pelas Nações Unidas com o fito de estimular o aumento da participação feminina nas diversas operações de manutenção da paz. Em conformidade com essa estratégia, a primeira mulher Comandante de Força (Force Commander) foi desdobrada na Força de Manutenção de Paz das Nações Unidas no Chipre (UNFICYP), em 2016. De acordo com as informações sobre os Países Contribuintes de Tropas que alcançaram metas de paridade de gênero, o Brasil, até o mês de julho de 2024, tinha 24,2% do seu efetivo em Especialistas Militares em Missão (UNMEM) e Oficiais de Estado-Maior da ONU (UNSO), composto por mulheres (United Nations, 2024). Cabe salientar que a categoria de Especialistas Militares em Missão engloba os Observadores Militares, os Oficiais de Ligação e os Conselheiros Militares da ONU. O quadro a seguir mostra a situação do efetivo de mulheres militares por categoria, de alguns dos Países Contribuintes de Tropas que alcançaram as metas de paridade de gênero para o ano de 2024 (United Nations, 2024).
Quadro 1: Extrato de meta de paridade de gênero
Fonte: Adaptado pelo autor com base em United Nations (2024).
O percentual-alvo para mulheres uniformizadas desdobradas nas categorias de Especialistas Militares em Missão (UNMEM) e Oficiais de Estado-Maior da ONU (UNSO) era de 21% para o ano de 2024. Como pôde ser observado no quadro acima, o Brasil alcançou o percentual acima da meta estipulada no ano considerado. Atualmente, o País não tem contribuído com os esforços pela paz por meio do envio de contingentes militares. Caso o Brasil volte a destacar tropas constituídas, espera-se que o percentual de participação feminina seja ainda maior.
A participação feminina em missões de paz é acompanhada por uma série de vantagens, constituindo um vetor de potencialização das capacidades das tropas. Dentre os principais benefícios pode-se citar:
- Apoio psicológico às vítimas de violência sexual: a presença de mulheres peacekeepers permite o apoio psicológico às vítimas de violência sexual, principalmente em regiões onde este tipo de violência é considerado como arma de guerra. A capacidade das mulheres de criar um ambiente seguro e acolhedor para essas vítimas é amplamente reconhecida como um fator crucial para o sucesso das missões de paz;
- Construção da confiança junto às comunidades locais: a presença feminina em missões de paz é percebida como essencial para melhorar o relacionamento com comunidades locais, especialmente com mulheres e meninas;
- Maior facilidade na abordagem de mulheres e meninas: o segmento feminino consegue, com maior facilidade, ultrapassar barreiras culturais e religiosas que limitam o contato entre homens e mulheres em determinadas sociedades, a exemplo das comunidades islâmicas;
- Melhora do trato junto à população local e maior bem-estar da população vulnerável: a presença feminina nas operações de paz não só melhora o tratamento com as populações locais , mas ajuda a identificar e satisfazer as necessidades de grupos vulneráveis, a exemplo de mulheres e crianças, contribuindo significativamente para o bem-estar dessas populações;
- Incremento da inteligência: as mulheres uniformizadas contribuem para a coleta de inteligência nas missões, especialmente por terem acesso a informações que, muitas vezes, os homens não conseguiriam obter em certas comunidades;
- Mapeamento e monitoramento de violência baseada em gênero: as peacekeepers desempenham um papel vital em questões relacionadas à segurança e à proteção de mulheres em zonas de conflito;
- Estímulo à liderança feminina local e promoção do empoderamento feminino local: a presença do segmento feminino em missões de paz também tem um impacto positivo na promoção da liderança e do empoderamento de mulheres nas comunidades locais, servindo como exemplo e agente de mudança social, e;
- Maior legitimidade: a participação feminina em missões de paz contribui significativamente para a legitimidade dessas operações, tanto no âmbito local quanto internacional. Mulheres nas forças de paz são vistas como agentes de mudança, promovendo uma abordagem mais inclusiva e sensível às questões de gênero. A atuação de mulheres uniformizadas contribui, sobremaneira, para a humanização das missões, proporcionando um ambiente mais sensível às necessidades da população vulnerável. Essa perspectiva reforça a confiança da população local, que tende a ver as missões como mais respeitáveis e comprometidas com os direitos humanos.
Dessa forma, em razão dos diversos benefícios, a presença de mulheres nas missões de paz da ONU é vista como crucial para o sucesso das operações, permitindo o cumprimento dos mandatos de paz e a promoção de uma abordagem mais inclusiva e holística das operações.
Da mesma forma, são identificadas oportunidades de melhoria, dentre as quais pode-se citar:
- Melhor preparo e treinamento: há uma necessidade de melhorar a formação específica das mulheres enviadas para missões de paz, especialmente em áreas combatentes e operacionais. Isso garantiria que as mulheres estivessem devidamente preparadas para desempenhar suas funções no campo;
- Seleção baseada em competências: a seleção para as missões deve ser realizada com base nas habilidades e experiências individuais, e não apenas para atender a metas de paridade de gênero. A competência deve ser o principal critério de seleção;
- Maior ocupação de cargos de chefia: em que pese o aumento do número de mulheres em missões, a assunção de cargos mais altos por mulheres ainda é limitada;
- Aprimoramento da infraestrutura e logística: algumas missões devem se preparar melhor para suprir as necessidades específicas das mulheres, a exemplo de instalações adequadas e cuidados com saúde e higiene durante as operações;
- Aumento do número de mulheres em missões de campo: incentivar uma participação mais ampla de mulheres nas missões de paz, tanto em funções administrativas quanto operacionais;
- Maior integração e troca de experiências: criação de fóruns ou simpósios para permitir a troca de experiências entre mulheres que já participaram de missões e aquelas que estão prestes a serem desdobradas. Essa integração pode melhorar o preparo e a compreensão dos desafios enfrentados, e;
- Redução da politização da participação feminina: a inclusão de mulheres deve ocorrer de maneira natural, com base na competência e nos méritos, em vez de ser imposta como uma medida política. Isso reforçaria o valor da contribuição feminina sem criar tensões dentro das Forças.
Deste modo, as oportunidades de melhoria levantadas mostram que a participação das mulheres pode ser ainda mais eficaz e integrada em missões de paz.
Figura 3: Militar da Força Aérea Brasileira no Sudão
Fonte: Brasil (2023).
As barreiras culturais, a discriminação institucional, a falta de apoio político e a limitação técnico-profissional ainda limitam a participação plena das mulheres nas operações de paz. É crucial que governos e organizações internacionais continuem a trabalhar para superar essas dificuldades e também garantir um ambiente propício para que as mulheres possam contribuir efetivamente.
Por fim, é necessário ressaltar que homens e mulheres devem ser vistos como complementares em missões de paz, com cada gênero contribuindo de maneiras únicas para o sucesso da missão. De forma paralela, é mister a compreensão de que o papel das mulheres em operações de paz, não é apenas uma questão de justiça social. A presença das capacetes azuis representa, sobretudo, uma necessidade operacional, consistindo em uma estratégia inteligente para construir sociedades mais pacíficas e resilientes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______. Ministério da Defesa. Participação de Mulheres Militares e Policiais em Missões de Paz da ONU. Brasília, 23 maio 2023-b. Disponível em: <https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/relacoes-internacionais/copy_of_missoes-de-paz/participacao-de-mulheres-militares-e-policiais-em-missoes-de-paz-da-onu>. Acesso em: 29 set 2024.
______. Ministério da Defesa. Portaria - C Ex nº 2.245, de 14 de maio de 2024. Aprova a Diretriz para o incremento da participação do Exército Brasileiro em Operações de Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) e na sede da ONU, em Nova Iorque – (EB10-D-01.039), 2ª edição, 2024. Brasília: Ministério da Defesa, 2024. Disponível em: <http://www.sgex.eb.mil.br/sg8/006_outras_publicacoes/01_diretrizes/01_comando_do_exercito/port_n_2245_cmdo_eb_14maio2024.html>. Acesso em: 15 set 2024.
GIANNINI, Renata A. Promover gênero e consolidar a paz: a experiência brasileira (2014). In: HAMMAN, E. P.; TEIXEIRA, C. A. R. Instituto Igarapé. A participação do Brasil na MINUSTAH (2004-2017): Percepções, lições e práticas relevantes para futuras missões. Edição especial coletânea de artigos. Brasil MINUSTAH, 2017.
GIANNINI, Renata; COSTA, Ivana Mara F. A incorporação de uma perspectiva de gênero pelo Brasil no Haiti. In: HAMMAN, E. P.; TEIXEIRA, C. A. R. Instituto Igarapé. A participação do Brasil na MINUSTAH (2004-2017): Percepções, lições e práticas relevantes para futuras missões. Edição especial coletânea de artigos. Brasil MINUSTAH, 2017.
UNITED NATIONS PEACEKEEPING. Troop-Contributing Countries achieving gender parity targets. New York, 2022. Disponível em: <https://peacekeeping.un.org/en/gender>. Acesso em: 18 set 2024.
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