AUTOGESTÃO DE CARREIRA: APLICABILIDADE NO CONTEXTO MILITAR

Autores: 1º Sgt BCO Luiz Henrique Filadelfo Cardoso
Segunda, 09 Junho 2025
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A carreira militar é tradicionalmente marcada por uma estrutura rígida e hierárquica, onde as diretrizes de ascensão e progressão funcional são definidas por normas institucionais. Ao longo da história, essa estrutura tem se mostrado eficaz para garantir a disciplina, a coesão e a eficiência das operações e outras atividades militares. Entretanto, à medida que o mundo torna-se mais complexo e as demandas tecnológicas, políticas e sociais evoluem rapidamente, refletindo assim na atualidade representada através dos acrônimos VUCA (Volatility, Uncertainty, Complexity, Ambiguity - Volatilidade, Incerteza, Complexidade e Ambiguidade, em tradução livre) e BANI (Brittle, Anxious, Nonlinear, Incomprehensible - Frágil, Ansioso, Não Linear, Incompreensível, em tradução livre) conforme presente em [1], os militares enfrentam novos desafios que exigem uma abordagem mais flexível e adaptável para o desenvolvimento de suas carreiras, totalmente coerente a essa imposta realidade. Nesse sentido, surge a necessidade de repensar a gestão da carreira militar, incorporando aspectos mais dinâmicos e atitudes proativas, como a autogestão de carreira, que capacita os indivíduos a assumirem maior controle e responsabilidade sobre seus caminhos profissionais, ainda que imerso em um ambiente fortemente regulamentado e estruturado.

O conceito de autogestão de carreira tem suas raízes na crescente complexidade do ambiente de trabalho contemporâneo, especialmente em contextos civis. À medida que as organizações se tornam mais fluidas e menos hierárquicas, os indivíduos são cada vez mais desafiados a assumir o controle sobre seu próprio desenvolvimento profissional, a fim de que se mantenham atualizados e resilientes frente às sucessivas e irrefreáveis mudanças laborais e estruturais na sociedade. De acordo com o presente em [2], diferente do modelo tradicional de gestão de carreira, em que a empresa ou instituição define de forma exclusiva as oportunidades de crescimento e desenvolvimento, a autogestão coloca o indivíduo no centro do processo. Isso significa que ele é responsável por identificar oportunidades, estabelecer metas e buscar os recursos necessários para alcançar seus objetivos profissionais pretendidos.

No contexto militar, a aplicação do conceito de autogestão de carreira pode parecer, à primeira vista, contraditória. Afinal, como já dito, o militar está inserido em um ambiente fortemente regulado, onde as ordens superiores devem ser seguidas e o caminho para o progresso funcional parece rigidamente definido. No entanto, a autogestão não é sinônimo de insubordinação ou independência absoluta, mas sim de uma abordagem proativa e complementar para o autodesenvolvimento pessoal e profissional, dentro das normas e diretrizes da instituição através de um olhar atual e mais humanizado [3].

Com base no presente em [3], é possível inferir que a autogestão de carreira envolve, basicamente, quatro características principais a serem desenvolvidas pelo profissional militar, seja ele oficial ou praça:

  • Autoconhecimento: o ponto de partida para qualquer processo de autogestão de carreira é o conhecimento profundo de si mesmo. O militar precisa ser capaz de identificar suas habilidades, pontos fortes e fracos, bem como seus interesses e motivações. Isso permite que ele alinhe suas aspirações profissionais com as necessidades da Instituição, criando um plano de desenvolvimento que seja mutuamente benéfico para os envolvidos.

  • Proatividade: em vez de esperar que oportunidades de desenvolvimento sejam oferecidas pela Instituição ou por superiores, o militar deve tomar a iniciativa ao buscar capacitações e (ou) adquirir novas competências. A proatividade também envolve estar atento às tendências tecnológicas, conceituais e operacionais em seu campo de atuação, mantendo-se sempre atualizado e, dessa forma, antecipando-se às mudanças que podem afetar o futuro de sua carreira, a curto, médio e longo prazo.

  • Responsabilidade pessoal: a autogestão de carreira exige que o indivíduo assuma total responsabilidade por seu progresso. Isso significa que o militar deve estar disposto a investir tempo e esforço no seu autodesenvolvimento, reconhecendo que o sucesso depende, em grande parte, de suas próprias ações e decisões tomadas.

  • Autonomia no desenvolvimento profissional: mesmo dentro de um ambiente fortemente hierárquico como o militar, existe espaço para que o indivíduo busque novas experiências, desenvolva habilidades complementares e participe de capacitações, missões ou funções que ampliem sua expertise, mais aderentes ao objetivo profissional e de carreira buscado. A autonomia no desenvolvimento de carreira permite que o militar expanda suas opções, tornando-se assim mais versátil, resiliente e preparado para diferentes cenários atuais e futuros de atuação.

Diante do exposto, e com a finalidade de capacitar os militares a assumirem maior controle e responsabilidade sobre o seu próprio desenvolvimento, equilibrando a autonomia pessoal com as diretrizes e normas institucionais militares, propomos um modelo estruturado (framework) para a efetiva aplicação da autogestão de carreira com base em quatro componentes principais, que estão profundamente interligados e visam a proporcionar um suporte abrangente à autogestão de carreira dos militares. Quais sejam:

    1. Diagnóstico de Competências, Análise da Área de Atuação e Macroambiente (entorno)


 

Nesse primeiro momento, torna-se essencial o diagnóstico profundo e preciso das próprias competências individuais. No contexto militar, essas competências abrangem tanto as habilidades técnicas, relacionadas às funções operacionais e estratégicas, quanto as competências comportamentais, que incluem por exemplo: liderança, trabalho em equipe e adaptabilidade. Esse diagnóstico não se limita a uma simples autoavaliação, mas utiliza um conjunto estruturado de ferramentas (conforme exposto em [2], emergem como principais o método SWOT/FOFA e o método DISC), que permitem uma análise objetiva, fornecendo ao militar uma visão clara e realista de seus pontos fortes e das áreas que precisam de aprimoramento.

Paralelamente ao diagnóstico de competências individuais, o militar deve realizar uma análise detalhada do campo de atuação e de seu entorno ou macroambiente. Essa análise envolve a compreensão das demandas específicas de sua função, desafios vigentes e emergentes, assim como a consideração de fatores externos (transformações tecnológicas, econômicas, sociais, políticas, geopolíticas, etc.) que podem impactar diretamente no desenvolvimento de sua carreira militar e como ele pode se preparar melhor para enfrentar tais desafios.

    1. Definição de um Plano de Carreira e Desenvolvimento de Competências

Após o diagnóstico de competências e análise do campo de atuação e macroambiente, o próximo passo no processo de autogestão de carreira militar é a definição de um plano de carreira estruturado que alinhe o desenvolvimento pessoal com as necessidades institucionais. Esse plano deve ser construído de maneira clara e objetiva, por fases (curto, médio e longo prazo), guiando o militar por um caminho de crescimento contínuo, garantindo que ele avance de maneira eficaz ao longo de sua jornada profissional. Nesse contexto, o framework incentiva o uso das metas SMART (específicas, mensuráveis, atingíveis, relevantes e temporais) como base para um planejamento estratégico eficaz, garantindo que cada objetivo estabelecido seja alcançável e bem direcionado.

Porém, cabe acrescentar, que a definição de um plano de carreira vai além do simples estabelecimento de metas: envolve a criação de uma trajetória clara e estrategicamente direcionada. Com base no diagnóstico de competências previamente realizado, o militar poderá identificar as áreas que necessitam de maior desenvolvimento e focar naquelas que serão mais úteis para seu crescimento profissional, a curto, médio e a longo prazo. Isso pode incluir o aprimoramento de habilidades técnicas e comportamentais, como a liderança e comunicação eficaz e assertiva, o domínio de novas tecnologias ou a gestão de pessoas ou organizações.

    1. Gestão de Relacionamentos e Redes Profissionais

No contexto militar, o desenvolvimento eficaz da carreira vai além das competências técnicas e operacionais, estendendo-se para a gestão estratégica de relacionamentos e redes profissionais. A capacidade de construir e manter uma rede de contatos sólida, tanto dentro quanto fora das Forças Armadas, é essencial para o crescimento individual e para o acesso a novas oportunidades e competências. O framework de autogestão de carreira aqui proposto orienta os militares a fortalecerem suas relações com superiores, pares e subordinados, além de estabelecerem conexões estratégicas com outros profissionais, setores ou áreas de interesse. Essas redes servem não apenas para compartilhar conhecimentos e boas práticas, mas também para ampliar o acesso a novas experiências, capacitações, temas e funções emergentes que estejam alinhadas às demandas de seu campo de atuação.

Não menos importante, é acrescentar que as redes profissionais no ambiente militar é amplamente fortalecida por abordagens complementares, tais como Coaching e Mentoring. O Coaching é voltado para o desenvolvimento de competências específicas e a melhoria do desempenho imediato, sendo uma ferramenta eficaz para o aperfeiçoamento de habilidades operacionais e comportamentais. O coach oferece acompanhamento, feedback direto e técnicas práticas para superar desafios pontuais e o atingimento de metas estabelecidas entre as partes, como a liderança no dia a dia, a comunicação eficaz ou a adaptação a novos cenários tecnológicos. Essa abordagem auxilia no desenvolvimento contínuo, garantindo que o militar (Coachee) esteja preparado para lidar com as demandas operacionais do presente.

Por outro lado, o Mentoring proporciona uma orientação mais ampla e de longo prazo, baseada na experiência vivenciada do mentor, ajudando o militar menos experiente (mentorado) a navegar pelas complexidades da carreira e desafios de cunho pessoal. O mentor oferece conselhos estratégicos, por exemplo sobre como alinhar as metas pessoais às oportunidades institucionais, facilitando o acesso a novas funções e oportunidades de desenvolvimento. Essa orientação não apenas pode guiar o militar em sua trajetória, mas também pode vir a promover maior maturidade através de uma visão mais estratégica de carreira, ajudando-o a planejar com clareza (e afastando-o quando possível de erros já vivenciados pelo mentor) os próximos passos dentro da estrutura militar e oportunidades em sua instituição.

    1. Avaliação Contínua do Plano de Carreira e Monitoramento do Campo de Atuação e Macroambiente

A avaliação (e revisão) contínua do plano de carreira é uma prática indispensável para a autogestão da carreira no contexto militar. Este processo envolve o uso de ferramentas de autoanálise, que permitem aos militares refletir sobre suas experiências, habilidades e competências ao longo do tempo. A autoavaliação não apenas fornece insights sobre o seu progresso em relação às metas estabelecidas, mas também ajuda a identificar lacunas nas competências que precisam ser abordadas para garantir a sua evolução profissional. De acordo com o presente em [2], complementarmente, o feedback de superiores e as avaliações 360º oferecem uma perspectiva externa e relevante sobre o desempenho do militar, permitindo uma compreensão mais acurada de suas capacidades e áreas que requerem desenvolvimento. Essa combinação de autoavaliação e feedback de superiores, pares e subordinados possibilita um ajuste dinâmico das metas de curto, médio e longo prazo, alinhando-as com as exigências da instituição e com as aspirações individuais, que quase sempre se mostram em constante evolução.

Conforme apresentado abaixo, na Figura 1, cada um desses componentes apresentados foi cuidadosamente estruturado para ser aplicável, transversalmente, em diferentes níveis e especialidades dentro das Forças Armadas, com a flexibilidade necessária para se adaptar às demandas do ambiente militar e as peculiaridades inerentes a cada profissional militar e seu respectivo campo de atuação, posto ou graduação.

Fig.1. Framework de Autogestão da Carreira Militar, próprio autor.

Dessa forma, podemos concluir que a autogestão de carreira é fundamental para promover a adaptação e o crescimento profissional contínuo, sobretudo no contexto militar, onde a hierarquia rígida e as fortes tradições coexistem com a necessidade cada vez mais emergente de atualização, flexibilidade e inovação para operar em uma contemporaneidade cada vez mais incerta e mutante. Entendemos também que o framework proposto tem um considerável potencial de oferecer recursos acionáveis para efetivar a implementação de práticas de autogestão de carreira militar, alinhando, sinergicamente, a autocompreensão das competências individuais, o entendimento do entorno estratégico e campo de atuação, a construção e manutenção de redes profissionais, bem como a constante necessidade do acompanhamento de cenário, pessoal e profissional.

Observação: esse artigo é um extrato do trabalho de conclusão de curso intitulado “Autogestão de Carreira: uma proposta de framework para aplicação no contexto militar” e constante do MBA Executivo em Liderança e Gestão Organizacional, FranklinCovey, concluído pelo autor em novembro de 2024.


 

REFERÊNCIAS:

[1] EXAME. O que é o mundo VUCA/BANI e as habilidades para enfrentá-lo com sucesso. Website Institucional. 2024. Disponível em: https://exame.com/carreira/guia-de-carreira/o-que-e-o-mundo-vuca-bani-e-as-habilidades-para-enfrenta-lo-com-sucesso/. Acesso em 22 de março de 2025.

[2] COSTA, Camila Franciele de Azevedo. O processo de autogestão de carreira na atualidade. 2015. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/143221/000992830.pdf. Acesso em 22 de março de 2025.

[3] BENEVIDES, Glayston Clay Leite Moura. A liderança militar conquistada por meio de competências baseadas na inteligência emocional. 2018. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Ciências Militares) - Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: https://bdex.eb.mil.br/jspui/bitstream/123456789/4002/1/MO%206026%20-%20GLAYSTON.pdf. Acesso em 22 de março de 2025.

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