Cultura militar - A ordem unida e marchas

Autores: Coronel Luciano Hickert
Segunda, 10 Novembro 2025
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O conjunto de conhecimentos, valores, tradições e práticas que são compartilhados por um grupo de indivíduos forma o que definimos por cultura. Ela engloba tanto os aspectos materiais, como as instalações e tecnologias de cada época, quanto os aspectos imateriais, como a linguagem, a religião e a moral. A cultura está em constante transformação, sendo moldada pelas interações sociais e pelas mudanças históricas (TYLOR, 1867).

Diferentes filósofos definem a cultura de maneiras distintas, evoluindo até os dias atuais, com desafios representados por novas tecnologias e inovações na interação social. Durante o processo de estudo do tema, surgiu o conceito de cultura coletiva e o estudo da “Bildung”, que defendia um papel crucial das comunidades na formação da identidade social, englobando as tradições, os valores e os comportamentos compartilhados por um grupo. Neste ponto, o ambiente militar tem relevância destacada, pelo seus costumes e disciplina tão diferentes, que aplica certas condições muito especiais aos indivíduos.

A cultura militar, por sua vez, é resultado da evolução das práticas militares, tanto na guerra, como na paz. A defesa das comunidades e o controle do uso da força foi sempre uma preocupação essencial para a sobrevivência humana, e adquiriu traços de similaridade entre os povos ao longo dos últimos séculos. Os desfiles marciais na China, Rússia ou Estados Unidos, por ocasião das comemorações do Dia da Vitória na Segunda Guerra Mundial, comprovam os pontos em comuns nas forças militares, ao mesmo tempo que apontam para semelhanças que vão além da ordem unida, marchas e uniformes.

Segundo Dziak, a cultura militar evoluiu ao longo de milhares de anos, caracterizada por habilidades especializadas, comportamentos e crenças que governam a vida dos membros das Forças Armadas. Os aspectos chave incluem disciplina, adesão a uma hierarquia e um compromisso com um treinamento rigoroso que prepara os indivíduos para as complexidades do combate. Essa cultura única pode criar desafios, uma vez que diferem significativamente dos valores e estruturas da sociedade. As Forças Armadas operam por meio de uma estrutura de comando que enfatiza integridade, lealdade e camaradagem, e compreender esses princípios e as experiências distintas dos membros militares pode promover uma melhor apreciação da sua cultura.

Assim, os ambientes militares diferem culturalmente da sociedade em geral por um conjunto de valores e crenças únicas, que possuem até amparo jurídico especial em âmbito internacional. Esse conjunto de valores, que dão origem a normas rígidas, forma a cultura militar. Paradoxalmente, ela também recebe influências sociais da comunidade que a integra, produzindo efeitos que definem diversos traços de cada força, tornando única a cultura militar de cada país.

A recente guerra de Israel e Irã de 2025 pode suscitar variadas reflexões acerca do papel dos elementos da cultura militar e sua importância para as Forças Armadas. Nem mesmo as modernas tecnologias para lançadores de foguetes e sistemas de obtenção de informações afastaram o papel central da cultura militar como promotora da sinergia entre as diferentes funções de combate, para a preservação das informações, ou mesmo para o trato com o pessoal e materiais críticos.

As tecnologias não afastam a importância da disciplina dos operadores humanos, e nem diminuem a necessidade da ética na condução das ações, visando garantir a legitimidade das ações. Nesse mesmo sentido, a manutenção do espírito de corpo entre os diversos atores é essencial para a coordenação da guerra, seja empregando caças de última geração, seja empregando soldados de infantaria na trincheira, como se percebe na atual Guerra da Ucrânia.

As evoluções da arte da guerra influenciam mudanças na cultura militar de cada nação, produzindo reflexos que se manifestam nos diversos aspectos, materiais e imateriais, promovendo mudanças de perfil físico dos combatentes e mesmo mudando as exigências da instrução. Contudo, é possível traçar inúmeras exigências que se mantém inalteradas, mantendo atitudes que podem ser consideradas clássicas. Isso permite identificar elementos da cultura militar que são essenciais em todos os exércitos. Tais elementos podem ser divididos em três grupos de valores: Disciplina, Ethos Guerreiro, e Espírito de Corpo (BULK, 1999).

A disciplina militar é um dos elementos estruturais para todas as culturas militares, uma base sobre a qual a vitória na guerra fica assentada, aumentando o poder de combate e direcionando a força para os pontos decisivos. Uma força sem disciplina é batida facilmente em combate, promove ações não sinérgicas e pode ser um perigo para as sociedades. A disciplina é ombreada pela hierarquia, e resulta em uma coesão que supera as aspirações individuais, refletindo-se na solidez dos exércitos.

Maurício de Nassau e Gustavo Adolfo são exemplos de líderes que organizaram exércitos disciplinados capazes de realizar movimentos coordenados e tão coesos que derrotavam os inimigos mesmo quando em menor número. Já passados dois séculos de suas ações nos campos de batalha europeu, atividades como realizar movimentos em unicidade seguem sendo fundamentais, mesmo que seja para operadores de DRONES. Nesse ponto, as instruções de ordem unida, ainda mantidas em todos os exércitos modernos, mais que uma tradição, são um modo de transformar o valor da disciplina em uma ação, em uma atitude vibrante e coletiva.

Nosso Manual de Ordem Unida liga diretamente a instrução à disciplina, destacando-a como a demonstração da obediência que se estabelece voluntariamente entre militares, em vista da necessidade de eficiência na guerra. Ainda, descreve a ação pela disposição individual e consciente para a obtenção de determinados padrões coletivos de uniformidade, sincronização e garbo militar (BRASIL, 2019).

Como segundo elemento valorativo, podemos destacar o ethos guerreiro, um conjunto de valores e atitudes que forja o militar durante seu treinamento, e que inclui a coragem, a confiança, a responsabilidade e a camaradagem. Esse elemento é chave para a solidificação do código de conduta dos militares, no sentido de pertencimento institucional, ultrapassando a noção do indivíduo e o fazendo pertencer a um grupo. Este elemento também é desenvolvido pela prática da ordem unida e marchas a pé, levando o soldado a superar suas deficiências e fortalecer-se quando em grupo, desenvolvendo equilíbrio emocional e têmpera.

Neste mesmo diapasão, o espírito de corpo também se revela como essencial para o desempenho em combate, fortalecendo os indivíduos e levando-os a outro patamar como combatentes. É o espírito de corpo que faz com que a fração supere as incertezas no combate, promovendo apoio incondicional e reforçando as virtudes de cada um de seus membros. É pelo espírito de corpo elevado que unidades tradicionais apresentam melhores resultados em combate, onde cada combatente luta pela história de sua fração e pela honra da história de seu grupo.

Visando desenvolver este terceiro elemento, a ordem unida e as marchas são instruções que reforçam o espírito de corpo, e evidenciam a importância da colaboração de todos para o sucesso da missão imposta, realizando de forma homogênea cada comando. Essas instruções são fundamentais para que, em uma sociedade cada vez mais levada pelo individualismo e pela vaidade, os indivíduos se entendam como membros de um grupo coeso, em que a correta execução de atitudes transformam-se num movimento mais amplo e sincronizado.

Assim, ao verificar-se a importância dos 3 elementos da cultura militar e sua complexidade, percebe-se a ordem unida e marchas como práticas tradicionais que são fundamentais até hoje para as forças militares, reforçando um conjunto de valores que são pilares para todas as forças militares. Essas instruções desenvolvem a cultura espartana e mitigam possíveis deficiências dos tempos modernos, reforçando a coesão das unidades.

Por fim, as necessidades de adaptação dos militares para vencerem os desafios nos ambientes operacionais da atualidade devem basear-se nas atividades que desenvolvem a moral e os valores dos exércitos, fortalecendo sua ética e coesão. Aqueles que detém o poder das armas nos Estados devem reforçar sua cultura militar, zelando pelos elementos de suas tradições, com a flexibilidade necessária para transporem os desafios do mundo contemporâneo de grande evolução tecnológica e mudanças sociais.


 

REFERÊNCIAS

  1. BRASIL. Ministério da Defesa. EB70-10.380 – Manual de Ordem Unida. Brasília, 2019. 4ª Edição.

  2. BRASIL. Exército. Comando de Operações Terrestres. EB70-CI-11.400: Fortalecimento da Liderança Militar. Brasília, DF, 2025.

  3. BRASIL. Exército. Estado-Maior. C2-50: Instrução Tática Individual e das Unidades Elementares de Cavalaria. Rio de Janeiro, DF, 1953.

  4. BRASIL. Exército. Programa de Instrução Militar. Brasília, DF, 2025. BRASIL. Exército. Sistema de Instrução Militar. Brasília, DF, 2025.

  5. BERMAN, Antoine. Bildung et BildungsromanLe temps de la réflexion, v. 4, Paris, 1984.

  6. BULK, James. Military Culture. The Encyclopedia of Violence, Peace, and Conflict . Academic Press, 1999.

  7. DZIAK, Mark. Entendendo a Cultura Militar. 2025. Understanding Military Culture | EBSCO Research Starters. Pesquisado em Jul 2025.

  8. HIGBEE, Douglas, Military Culture and Education. Routledge, 2016.

  9. "Military Cultural Competence." Uniformed Services University of the Health Sciences, 2016, deploymentpsych.org/online-courses/military-culture.

  10. TYLOR, Edward B. (1867). «Phenomena of the Higher Civilisation: Traceable to a Rudimental Origin among Savage Tribes»

  11. "Understanding the Military: The Institution, the Culture, and the People." Substance Abuse and Mental Health Services Administration, 2010, www.samhsa.gov/sites/default/files/military‗white‗paper‗final.pdf.

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