Os papéis funcionais do comandante (parte IV)

Autores: General de Brigada R1 Severino de Ramos Bento da Paixão
Sexta, 11 Outubro 2024
Compartilhar

Prólogo

Nos três artigos anteriormente publicados, buscou-se apresentar ao leitor, dentre os cinco listados já no primeiro texto, quatro papéis funcionais desempenhados pelos comandantes de Organizações Militares (OM) nível Unidade (U) e subunidade. São eles: líder militar, arquiteto, sacerdote e governante.

Em vista disso, o presente texto tem por objetivo concluir o tema dos papéis funcionais, destacando agora o de chefe militar, que é o que se apresenta mais evidente quando a OM é empregada como força militar1 na situação de campanha, ou seja, no ambiente tático da guerra.

Sendo assim, convém relembrar a conclusão da Parte III:

A OM, ao alcançar esse momento do processo, com seus integrantes, por força da liderança militar, envolvidos pessoal e coletivamente para o cumprimento da missão, desenhada para ser eficaz, entusiasmada pelos valores que lhe são mais sagrados e regida em todos os aspectos necessários para a guerra, torna-se um ser animado e pronto para o emprego como força militar pelo seu chefe” .(grifo nosso)

Aqui está então o ponto de partida, o que abre espaço para dar continuidade ao tema: torna-se um ser animado e pronto para o emprego como força militar. Em outros termos, torna-se um “corpo social” voltado para cooperar com outros de mesmo valor no cumprimento da principal missão que cabe à Força Terrestre: a Defesa da Pátria.

Em suma, os quatro papéis funcionais anteriormente apresentados, sendo de forma sobreposta desempenhados, agruparam os integrantes da OM em um corpo unido pela força da coesão e pronto para o emprego em combate pelo seu chefe2.

Cientes desse entendimento, vejamos agora o desempenho como chefe militar.

Papel de Chefe Militar

Parafraseando Pascal, a sociedade é um corpo feito de membros pensantes3 – uma força militar é um corpo social composto por seres livres e racionais, reunidos por vocação e por força de um dever cívico. Ora, é da natureza do corpo ter uma parte que possua uma visão, mais especificamente, uma visão de conjunto adequada à realidade, ou seja, que tenha uma racionalidade funcional4. A biologia denomina essa parte como sendo a cabeça.

Courtois, em sua obra "A Arte de Ser Chefe", assim define o que vem a ser o chefe (p.15): "etimologicamente, é aquele que está à testa ou, melhor ainda, aquele que é a cabeça... que vê, pensa e age no interesse do corpo inteiro.” Como corolário, o militar nomeado para ser comandante de OM nível U e subunidade, quando desempenha o papel de chefe nas operações militares, como indicado pelo próprio vocábulo, é a cabeça do corpo. Melhor dizendo, ele não será chefe se não formar corpo com aquilo do qual é a cabeça, se não se sentir unido aos seus membros, assumindo riscos, sacrificando-se e dando o exemplo5, e se não for também por eles corporificado6.

Vale ressaltar que o processo de se corporificar pode ser percebido na criação dos vínculos racionais e afetivos com os membros da OM, os quais geram, por assim dizer, músculos e nervos, tanto do comandante para os subordinados, como autoridade, reputação e lealdade, quanto do subordinado para o comandante, como respeito, obediência e confiança, dentre outros.

É no campo de batalha, onde o medo da morte é a componente da realidade que oprime o indivíduo, que a tropa se corporifica em torno do chefe, que o constitui eixo de sua unidade7, o princípio e fonte de sua ação. Isso porque em todo empreendimento humano que exige a ação coletiva de homens e mulheres, faz-se necessário que eles submetam seus movimentos particulares à vontade única de um chefe. Caso contrário, discussões, conflitos e interesses preencheriam um tempo irrecuperável para a necessária e oportuna tomada de atitude frente à vontade do inimigo8.

Na direção e controle de sua OM como força9, portanto, o comandante desempenha o seu papel funcional de chefe militar. É nessa atividade que ele exerce plenamente a autoridade na qual está investido, praticando o seu poder de decisão e aplicando o seu poder de mando. É, dessa forma, um desempenho imperativo.

Logo, no ambiente de caos, morte e destruição onde sua tropa é empregada, além de resolver as situações que lhe compete, ele procurará compreender os problemas táticos dos seus subordinados e fará todo o possível para ajudar a resolvê-los, sem tolher-lhes a iniciativa. A sua vontade será a substância da vontade da força sob seu comando, dado que ele é a mente que deve ter tanto a consciência situacional do campo de batalha quanto a “consciência corporal” do poder de combate de sua tropa10. E o sucesso dessa vontade consistirá em:

“… no meio da confusão do combate, distinguir o que é exigido pela situação; entre os preparativos frustrados e as dúvidas que assaltam os outros, calcular os meios para se obter o que se deseja e feito isto, dar ordens e exigir que os homens cumpram o seu dever.11” (grifo nosso)

É nesse momento que o "comandar", referido à direção de forças, ou seja, de formações e agrupamentos destinados a realizar operações militares, se apresenta em toda a sua plenitude, pois ordenar é a manifestação da vontade do chefe. Decisão que não é arbitrária ou irracional, mas resultante do seu processo decisório, seja ele analítico ou intuitivo, e que sempre o leva a uma preferência racional com vistas a fazer sua OM, uma vez que a vontade requer movimento, cumprir a missão.

Conclusão

É chegado o momento de concluir o tema dos papéis funcionais do comandante de OM nível U e subunidade. Vale recapitular o caminho seguido até aqui.

No primeiro artigo, apresentou-se o Exército Brasileiro como uma Instituição nacional com base no dever cívico da conscrição. Tal situação leva o comandante a dirigir o seu exercício de comando na direção de preparar a sua tropa para, partindo de uma situação de guarnição, atuar no ambiente de campanha.

Para tanto, procurou-se discorrer sobre os papéis funcionais que ele desempenha no processo global para constituir, com as pessoas e meios materiais postos à sua disposição, uma força militar apta a atuar no campo de batalha. Nessa conformação, concorreram, na perspectiva deste autor, os papéis de líder, arquiteto, sacerdote e governante – todos de igual valor e importância. E, uma vez constituída a força militar, é no seu emprego que refulge o papel de chefe militar.

O presente artigo, portanto, fecha o argumento apontado pela intuição de historiadores e pensadores militares que se dedicam ao estudo de tão importante tema.

Os papéis de arquiteto, sacerdote e governante, além dos de chefe e líder militar, são complementares, simultâneos e ajudam a discernir as matizes contidas no preparo de uma OM para o seu emprego como força militar no campo de batalha. É uma suposição que se fundamenta no sentimento de que o que opera nesta transformação é o espírito humano, campo onde a arte, o sagrado e a ciência estão sempre presentes.

 

BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército (EME). Manual de Campanha C 20-10 Liderança Militar. 2. ed. Brasília, 2011. 87 p.

COUTINHO, Sérgio Augusto de Avelar (1997). Exercício do comando: a chefia e a liderança militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 274 p. (Coleção Taunay; v. 28).

COURTOIS, Gaston (2012). A arte de ser chefe. Tradução de Job Lorena de Sant’Anna. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 152 p. (Coleção General Benício).

GAVET, André (2018). El Arte de Mandar: Principios del mando para uso de los oficiales de todos los grados. Circulo Acton Chile Editores. 100 p.

HUDE, Henri (2019). Preparando-se para o futuro: ferramentas de apoio para o tomador de decisão. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 136 p. (Coleção General Benício; v. 558).

MARSHALL, Samuel Lyman Atwood (2003). Homens ou Fogo? Tradução de Moziul Moreira Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 216 p. (Coleção General Benício; v. 394).

MAUROIS, André (1996). Diálogos sobre o comando. Tradução de Job Lorena de Sant’Anna. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército. 156 p. (Coleção General Benício).

SCRUTON, Roger (2020). A Alma do mundo. Tradução de Martim Vasques da Cunha. 5. ed. Rio de Janeiro; Record. 236 p.

1 Aqui o conceito comando refere-se à direção de forças, isto é, de formações e agrupamentos destinados a realizar operações militares.

2 Termo que tem origem no Francês antigo chief, por sua vez oriundo do Latim caput, que significa cabeça. Daí capitão, capital etc.

3 Hude, 2019, p. 14.

4 Idem, p. 19.

5 Idem, p. 9.

6 Idem, p. 21.

7 Idem, p. 76.

8 Maurois, 1996, p. 149.

9 Coutinho, 1997, p. 36.

10 Marshall, 2003, p. 178-181

11 Idem, p. 178.

CATEGORIAS:
Carreira Militar
6 COMENTÁRIO(S)

Comentarios

Comentarios

Mais importante do que ser líder. É ser líder aclamado no seu cotidiano por seus liderados e colaboradores. Independente de nível hierárquico. De um caráter ilibado, respeitador de princípios morais Cívico e Patriótico.. Grande guerreiro no cumprimento da Ordem e Progresso do País. E conhecedor profundo da Carta Magna do País. 

Sobre o Autor

7 artigos

General de Brigada R1 Severino de Ramos Bento da Paixão

CURRÍCULO
General de Brigada R1 Severino de Ramos Bento da Paixão Formado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1983. Cursou a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) em 2000/01. Foi instrutor da AMAN e da ECEME. Comandou a 1a Bateria de Cadetes (AMAN) e o 16o Grupo de Artilharia ...

Artigos Relacionados