O Juramento dos Horácios

Autores: Coronel R1 Ernani Humberto Teixeira de Paula Filho
Quarta, 27 Agosto 2025
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(Jacques-Louis David - 1784)

 

 

Quem visita o Louvre, em específico, o departamento de pinturas, tem o privilégio de poder contemplar a obra em epígrafe, um magnífico exemplar do movimento neoclássico. Seus mais de 12 metros quadrados são suficientes para encantar qualquer observador, diante de sua grandiosidade e eloquência latente. Contudo, a essência da obra não está apenas no virtuosismo técnico ofertado por Jacques-Louis David (JLD), mas em seu poderoso significado político, cultural e histórico, evocando o dever cívico e a lealdade absoluta à pátria.

JLD recebeu do Ministro de Belas Artes da França a encomenda de uma obra que representasse o autossacrifício do cidadão ao Estado, a fim de servir como propaganda à sociedade em uma convulsiva fase do cenário político francês, aquele que precedeu a Revolução Francesa (1789). O aludido intento ficou materializado na obra "O Juramento dos Horácios", cujo sucesso elevou ao zênite a sua reputação artística.

Sendo um artista neoclássico, amparou-se nas histórias greco-romanas para atingir o almejado objetivo. Em preciso estudo da obra de Tito Lívio, vinculou-se à fase na qual a sobrevivência de Roma dependia do valor moral de seus grandes homens, uma época onde os inimigos eram profusos e precisava-se da união e devotamento dos cidadãos para a sua defesa; a fase iminente à instauração da República, em específico o contexto do embate entre romanos e albanos.

Diante das inúmeras incursões de albanos em território romano, e vice-versa, toda a sorte de pilhagens era praticada, refletindo-se em perdas consideráveis às partes. Foi nesse contexto, e no intuito de reduzir os prejuízos mútuos, que os reis Túlio Hostílio e Métio Fufécio decidiram pelo enfrentamento direto, pela guerra. Porém, a fim de não deixar os exércitos dos conflitantes fragilizados diante da insidiosa Etrúria, deliberaram uma solução providencial: um combate particularizado, no qual o resultado decidiria quem governaria o outro, mas que não infligisse, a ambos, os enormes prejuízos correlatos a uma guerra em larga escala. Por conta desse almejo, foi estabelecido que a disputa ocorreria entre dois grupos de três irmãos gêmeos, igualmente fortes e dedicados à arte da guerra, sendo um albano e o outro romano; os Curiácios e os Horácios.

Em tal contexto, cada trio passou a representar a defesa de sua própria pátria. A cena, primorosamente pintada por JLD, retrata o momento no qual o patriarca romano leva a cabo o juramento de defesa de Roma proferido pelos seus filhos, lembrando-os que a inviolabilidade do Paládio romano dependia de seus valiosos esforços durante o combate. É uma cena evocando o devotamento absoluto à nação e ao autossacrifício.

É digno de destaque o fato de que a história retratada por JLD se refere a um período muito particular, no qual o ethos do cidadão romano era caracterizado pela frugalidade, dedicação absoluta ao Estado, religiosidade, aversão à ostentação e um elevado grau de estoicismo. É comum imaginar que a grandiosidade dos valores romanos tenha sido na apoteose imperial, como nos tempos da dinastia Júlio-Claudiana (27 a.C - 68 d.C), onde Otávio Augusto se destacou como o mais proeminente estadista. No entanto, em tal época o cidadão romano já estava corrompido pelo individualismo, inserido em uma sociedade onde a devassidão, a extravagância e a corrupção eram profusas. O auge moral da Cidade das Sete Colinas pertencia ao passado.

Então, qual o motivo de JLD ter sido tão pontual na escolha do contexto da obra? A resposta a essa indagação envolve o valor do componente humano da primitiva República. A formatação moral e ética do cidadão ocorria cedo. Ao nascer, a criança era inserida na instituição básica da sociedade romana: a família patriarcal; nela, o pátrio poder era inviolável. O pai representava a coerção estatal, disciplinando a todos e sedimentando o esteio moral do governo romano, estimulando nos infantes a obediência absoluta ao Estado, traço crucial do invencível exército republicano. Na obra, coube ao pai a condução do juramento de lealdade a Roma por seus filhos, como bem representado. Com o tempo, o pátrio poder foi enfraquecido nos lares, à proporção que o do governo corrompido aumentou, solapando as bases da disciplina servil.

É digno de nota, ainda referente à obra, que a postura resoluta dos irmãos é impassível e contrasta com a tristeza visível das mulheres, à direita. Entre elas, Camila, irmã dos Horácios e noiva de um dos Curiácios, expressa desespero pelo triste fim anunciado, uma tragédia iminente em qualquer resultado. Nesse particular, JLD traz à tona dois sentimentos contrastantes e de grande impacto propagandístico naquela sociedade pré-revolucionária: a resolutibilidade dos irmãos em defender a pátria amada e o sofrimento das mulheres diante dos reflexos advindos aos familiares. Esse patriotismo desmedido, no qual o dever era colocado acima de tudo, inclusive da família, foi duramente fragilizado em Roma com o passar dos anos, sobretudo após a sua expansão, com pontual destaque à conquista da Magna Grécia e seus nefastos reflexos ao componente humano de Roma, como o solapamento de sua crença religiosa devido à face ateísta da influente filosofia grega.

Após a fase na qual Roma lutou pela sua sobrevivência como nação, em meio a diversos oponentes, como sabinos, albanos e etruscos, passou à expansão de suas fronteiras por meio da aquisição de províncias conquistadas. Junto com o alargamento de seus limes, uma série de significativos pormenores se refletiram na redução da coragem, da lealdade à pátria, do amor ao bem coletivo e da disciplina do homem romano, revelando um cenário que desaguou na queda de Roma, em 476 d.C. Com as guerras de conquista, Roma sofreu a influência de uma série de variáveis que pulverizaram o ethos pretérito, como a entrada de muita riqueza e uma infinidade de escravos. Sendo uma mão de obra deveras barata, estes substituíram os antigos romanos que trabalhavam na terra, fazendo-os migrar para os cortiços da capital, ambientes onde o ''Pão e Circo" serviam para acalmar seus ânimos mais exaltados, como bem subscreve o poeta satírico Juvenal. Tendo a alimentação garantida, os homens passaram a privilegiar o ócio, dedicando-se à lascívia, à diversão nos anfiteatros e aos prazeres desregrados, sobretudo após o advento da influência dos deuses gregos em Roma, onde Dioniso se mostrou o mais devastador, justamente por estimular na sociedade as festas orgiásticas, momentos de pura devassidão. Saciados, na fome e na vida solta, o individualismo foi maculando a prioridade concedida, até então, ao bem-comum. O odor característico de Roma, nessa fase, era o profanum vulgus.

A coragem, antes demonstrada nos campos de combate, no convívio diário com os rigores da morte, a partir de certo momento passou a ser preterida pela intrepidez "por procuração", por meio da observação da valentia alheia, envolvendo gladiadores na infame matança que ocorria nos circos e anfiteatros, momentos onde a criatividade levava a plateia ao delírio. O ponto de inflexão para essa senda foi o momento onde as guerras pela sobrevivência da nação se extinguiram, e os jogos passaram a ser os acontecimentos mais excitantes de Roma, diante do enorme afluxo financeiro a ela convergida, devido à conquista de províncias ricas, como Cartago e Espanha, fomentando a orgia de individualismo que levou à sua ruína.

Outro fator relevante, entre tantos, foi a transformação do caráter racial do povo romano. Vale ressaltar, que já nos dias da gestão do imperador Vespasiano (69-79 d.C) os romanos já não eram "tão romanos” assim. Algumas estratégias estabelecidas por Augusto no estabelecimento de sua venerada Pax Romana tiveram reflexos questionáveis, como o estímulo amplo concedido ao casamento e à fecundidade entre os mais novos, ação que ajudou a transformar o cenário racial, o temperamento moral e até o próprio fenótipo do povo, já que a fecundidade promovida envolvia, também, a interação de genes de cepas diversas, como a de asiáticos, africanos e gregos, entre muitos outros que abundavam na sociosfera romana. O sangue romano, com o tempo, foi transmutado; e as virtudes do romano, da primitiva República, foram se desvanecendo.

Por fim, vale ratificar que JLD, em sua magnânima obra, enalteceu os valores morais de uma sociedade romana muito particular, ordeira e conservadora, distinta daquele caótico retalho social que bem caracteriza a fase epicurista dos imperadores Calígula e Nero. O primitivo romano apreciava a disciplina e sabia obedecer, sendo um admirador da vontade e do caráter, traços que foram se fragilizando com o passar dos anos. As legiões da primitiva República perdiam batalhas, mas não as guerras. Um dos grandes questionamentos da humanidade refere-se ao motivo que levou Roma ao seu colapso. Não teve uma causa isolada, mas muitas. As que foram apresentadas são apenas lampejos de uma miríade complexa, que se insere em um processo que durou cerca de 300 anos. Antes de Roma ser conquistada pelos inimigos de fora, a metástase promovida pelo profanum vulgus a consumiu internamente.

Referências:

-Desde a Fundação da Cidade (Tito Lívio)

-Anais (Tácito)

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Cultura
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