As ciências militares são conceituadas como o “sistema de conhecimentos relativos à arte bélica, obtido mediante pesquisa científica, práticas na esfera militar, experiência e observação dos fenômenos das guerras e dos conflitos, valendo-se da metodologia própria do ensino superior militar” (Brasil, 2010). Advoga-se no mesmo documento que a ciência e tecnologia são áreas de concentração dos estudos abrangidos pelas ciências militares.
Este artigo tem como objetivo geral discutir o conceito e a relevância da Ciência, Tecnologia e Inovação na esfera militar, uma vez que são vitais para o desenvolvimento da soberania. Isso se justifica pelo fato de que nas políticas de defesa, ciência e tecnologia são fatores críticos para a construção de uma base sustentável de poder (Baptista, 2014).
Em termos conceituais, entende-se por ciência tanto o processo de estudo da natureza, direcionado à explicação do universo e dos seus fenômenos, como o corpo organizado de conhecimentos adquiridos mediante tal investigação (Longo, 2007). Para o mesmo autor, ciência pode ser ainda definida como um sistema de conhecimento.
No tocante à tecnologia, o termo se origina no grego techne, que significa arte ou habilidade (Longo, 2007). Uma outra definição é de que a tecnologia pode ser conceituada como o conjunto organizado de todos os conhecimentos científicos, empíricos ou intuitivos empregados na produção de bens e serviços (Longo, 2007).
A proximidade entre a ciência e a tecnologia se tornou conhecida no binômio “Ciência e Tecnologia”, de sigla C&T (Longo, 2007). O entrelaçamento ciência/ tecnologia tornou-se robusto no momento em que o método científico passou a ser utilizado na geração de conhecimentos associados à criação ou melhoria de bens ou serviços, ou seja, para a inovação tecnológica (Longo, 2007).
Desde o fim da II Guerra Mundial (II GM), diversos óbices relacionados à tecnologia de defesa tornaram-se mais evidentes, desencadeando a busca pelo aperfeiçoamento em Pesquisa e Desenvolvimento - P&D (de Queiroz, 2015). Como a pesquisa avançada em C&T se caracteriza pelo elevado custeio, acompanhada de uma base industrial capaz de testar seus avanços, poucos países desenvolvidos estão aptos a empreender programas de pesquisa militar (Geraldo & Cossul, 2017).
A contar da metade do século XX, a C&T passou a fazer parte central das políticas e estratégias nacionais dos países mais desenvolvidos (Longo & Moreira, 2013). Para tais pesquisadores, os governos ampliaram a atuação nessa área pelas políticas públicas, criação de órgãos especializados de apoio, assim como incentivos e suporte financeiro.
Dessa maneira, é possível afirmar que os Estados Unidos (EUA), protagonista nos conflitos do século XX, transformaram-se no paradigma de todo esse processo, como modelo para as nações ocidentais (Longo & Moreira, 2013). Segundo Longo e Moreira (2013), a análise do modelo estadunidense permite expandir a compreensão sobre os caminhos que levaram aquele país ao cume científico-tecnológico mundial.
De forma cada vez mais recorrente se entende a relação positiva que o papel da C&T pode gerar no desenvolvimento das nações (Baptista, 2014). Assim sendo, torna-se evidente que a capacidade tecnológica inovadora e lastreada por uma base educacional e científica eleva o patamar de uma nação na comunidade internacional (Baptista, 2014).
Nessa linha de raciocínio, o “complexo-militar-industrial-acadêmico” criou, nos EUA, um amplo processo de inovação liderado pelas descobertas voltadas para a Guerra Fria contra a União Soviética e impulsionar a fronteira científica de forma a consolidar a liderança americana no planeta (de Medeiros, 2004). A doutrina de que a superioridade tecnológica nas armas é fator decisivo na vitória militar revelou-se como visão dominante dos militares americanos desde o pós-guerra e manteve-se inalterada mesmo quando se mostrou inadequada às guerras locais, como no Vietnã (de Medeiros, 2004).
Para de Medeiros (2004), no século passado, a bomba atômica, os mísseis transcontinentais e a chegada do homem à lua decorreram de grandes projetos que trouxeram inovações radicais na microeletrônica e computadores, por exemplo. O mesmo pesquisador explica que a iniciativa de defesa estratégica, a “Guerra nas Estrelas” do então presidente Reagan objetivava explorar a liderança americana na tecnologia espacial, expandindo o teatro de guerra para anular a ameaça dos mísseis soviéticos.
Ademais, a área de C&T é uma das mais importantes para que um país alcance o pleno desenvolvimento tecnológico (de Queiroz, 2015). Para que tal área se desenvolva, é necessário o investimento em políticas públicas que incentivem e valorizem as pesquisas na área industrial, militar e de ensino (de Queiroz, 2015).
Especificamente no contexto militar brasileiro, esse déficit em relação à tecnologia foi percebido durante e após a II GM, período em que a decadência e a obsolescência dos equipamentos se tornaram mais significativos (de Queiroz, 2015). Esse fator se fez relevante para que as nossas Forças Armadas buscassem dentro do vetor C&T, a modernização para o setor de defesa no país (de Queiroz, 2015).
Durante a década de 1970, os programas tecnológicos mais relevantes desenvolvidos pelas Forças foram: o programa nuclear e o programa espacial, importantes para a defesa e a autonomia do país, mas, que em decorrência de pressões internas e externas, não foram concluídos (de Queiroz, 2015). Outro projeto relevante para o segmento de C&T militar foi o processo de criação da Empresa Brasileira de Aeronáutica - EMBRAER, pensada ainda nos anos 1940 (de Queiroz, 2015).
Com a criação da Força Aérea Brasileira (FAB), do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e do Centro Tecnológico Aeroespacial (CTA), foi possível desenvolver o projeto da empresa que construísse aviões monomotores (de Queiroz, 2015). Essa necessidade se tornou realidade após a II GM, em especial porque no país não existiam institutos de pesquisa em engenharia aeronáutica (de Queiroz, 2015).
No tocante ao Exército Brasileiro, o setor de C&T cresceu e se desenvolveu ao longo da história, principalmente a partir dos anos 1970 (de Queiroz, 2015). O atual modelo de pesquisa e de desenvolvimento tem permitido criar condições para buscar a qualificação e a articulação com a indústria e com o setor produtivo nacional (de Queiroz, 2015).
Os documentos nacionais enfatizam a atualização permanente e o aparelhamento das nossas Forças Armadas, com ênfase no apoio à C&T para o desenvolvimento da indústria nacional de defesa (Geraldo & Cossul, 2017). Neste diapasão, tem sido enfatizada a busca da redução da dependência tecnológica e da superação das restrições unilaterais de acesso a tecnologias sensíveis (Geraldo & Cossul, 2017).
Geraldo e Cossul (2017) citam o exemplo do Satélite Geoestacionário, que através da banda de uso exclusivo militar, fornece segurança nas transmissões de informações estratégicas do país, ligado aos objetivos comuns do Sistema de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) e do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul (SisGAAz). O SISFRON e o SisGAAz, juntos ao Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM), se localizam onde há maior incidência de crimes transnacionais, em regiões estratégicas para a soberania nacional (Geraldo & Cossul, 2017).
No mercado internacional de tecnologias de defesa há diversos níveis de restrições formais e informais (Battaglino, 2009 apud Geraldo & Cossul, 2017). Segundo Geraldo e Cossul (2017), o custo elevado prejudica à incorporação de novas tecnologias, somado ao fato que as de última geração não são disponibilizadas à comercialização quando lançadas.
Assim, pode se destacar o acordo de transferência de tecnologia com a França para o desenvolvimento dos submarinos de propulsão nuclear, em 2009, e o acordo para a aquisição dos caças, visando substituir os Mirage 2000, pelos suecos Gripen NG (Geraldo & Cossul, 2017). Mesmo com os acordos de transferência tecnológica, incorre-se na problemática dos componentes que são de propriedade intelectual de outros Estados que podem vetar a venda do produto que se utilize dessa tecnologia (Geraldo & Cossul, 2017).
De acordo com Geraldo e Cossul (2017), tanto os submarinos de propulsão nuclear, quando os caças Gripen NG diferem, portanto, do cargueiro KC-390 e do blindado Guarani, estes últimos com propriedade intelectual da União. Importante registrar que o Programa Guarani foi desenvolvido para dotar o Exército de uma família de blindados sob os requisitos internacionais de operabilidade e segurança, substituindo equipamentos dos anos 1970, conforme explicado pelo então Comandante da Força (Villas Bôas, 2016).
Em resumo, as Forças singulares procuraram atuar no desenvolvimento de tecnologias conforme os programas vigentes, articulando com o sistema produtivo interessado na fabricação de material de emprego militar (de Queiroz, 2015). Para de Queiroz (2015), é de fundamental importância nesse processo a integração e a participação das Instituições de Ensino e Pesquisa como parceiras das Forças Armadas.
Nos últimos anos, a inter-relação entre ciência e tecnologia agregou o conceito de inovação, de sigla CT&I (Moreira, 2012). Na Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, inovação é a “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho”.
De fato, o poder da ciência e da tecnologia tem seu lado sombrio, na medida em que pode gerar efeitos colaterais severos, como a degradação ambiental e as hierarquias segregadoras entre os que possuem e os que não possuem conhecimento (Moreira, 2012). Reforça-se, dessa maneira, que no sistema de produção do mundo globalizado, os conhecimentos e tecnologias de ponta que geram diferencial competitivo tornam-se fatores de segurança nacional e, naturalmente, despertam o interesse da política (Moreira, 2012).
Segundo Moreira (2012), a P&D de tecnologia de aplicação militar ou dual tende a gerar conhecimentos de vanguarda e constituir o convencionado “estado da arte”, que são importantes para o sistema de CT&I, principalmente pelo potencial de elevar o patamar tecnológico nacional. Não é de se surpreender, portanto, o fato de o Pentágono (EUA) haver financiado 58% dos cientistas que foram laureados com o Nobel de Química e 43% dos premiados em Física (Lieberman, 1999 apud Moreira, 2012).
Para finalizar, a redução do hiato tecnológico demanda investimento estatal em P&D, como forma de enfrentar os níveis de restrições para a aquisição de produtos de defesa avançados. Em vista dos elevados custos incorridos nas aquisições internacionais, deve se garantir a transferência de tecnologia. Na defesa da indústria nacional, a CT&I militar traz benefícios diretos na articulação com institutos de pesquisa, promoção do emprego e renda, além da garantia da soberania.
Referências
Baptista, L. A. S. (2014). Ciência, tecnologia e soberania. Monografia (Altos Estudos de Política e Estratégia). Escola Superior de Guerra (ESG). Rio de Janeiro. Disponível em: https://repositorio.esg.br/bitstream/123456789/1374/1/Luis%20Antonio%20de%20Souza%20Baptista%20-%20Ciencia%20Tecnologia%20e%20Sobera.pdf . Acesso em: 20 Out. 2024.
Brasil. (2010). Portaria do Comandante do Exército nº 734, de 19 de agosto de 2010. Conceitua ciências militares, estabelece a sua finalidade e delimita o escopo de seu estudo. Brasília. Disponível em: https://www.sgex.eb.mil.br/sg8/006_outras_publicacoes/07_publicacoes_diversas/01_comando_do_exercito/port_n_734_cmdo_eb_19ago2010.html . Acesso em: 20 Out. 2024.
Brasil. (2016). Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016. Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação. Brasília. Disponivel em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13243.htm . Acesso em: 20 Out. 2024.
de Medeiros, C. A. (2004). O desenvolvimento tecnológico americano no pós-guerra como um empreendimento militar. O poder americano, 225-252. Disponível em: https://franklinserrano.wordpress.com/wp-content/uploads/2017/05/medeiros-2004-o-desenvolvimento-tecnolc3b3gico-americano-no-pc3b3s-guerra.pdf . Acesso em: 20 Out. 2024.
de Queiroz, C. F. (2015). Uma história institucional do Centro Tecnológico do Exército (1979-2013). Dissertação (Mestrado Profissional em Bens Culturais e Projetos Sociais). Fundação Getúlio Vargas (FGV). Rio de Janeiro. Disponível em: https://hdl.handle.net/10438/13682 . Acesso em: 20 Out. 2024.
Geraldo, M. S., & Cossul, N. I. (2017). Tecnologia como fator estratégico para o Brasil e para a segurança da América do Sul. Revista Política Hoje, 26 (1), 37-54. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/politicahoje/article/viewFile/9596/17861 . Acesso em: 20 Out. 2024.
Longo, W. P. (2007). Tecnologia militar: conceituação, importância e cerceamento. Tensões Mundiais, 3 (5), 111-143. Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/tensoesmundiais/article/download/722/607 . Acesso em: 20 Out. 2024.
Longo, W. P.; & Moreira, W. S. (2013). Tecnologia e inovação no setor de defesa: uma perspectiva sistêmica. Revista da EGN, 19 (2), 277-304. Disponível em: https://portaldeperiodicos.marinha.mil.br/index.php/revistadaegn/article/view/4598 . Acesso em: 20 Out. 2024.
Moreira, W. S. (2012). Ciência e tecnologia militar: “política por outros meios”? Revista da EGN, 18 (2), 71-90. Disponivel em: https://www.redebim.dphdm.mar.mil.br/vinculos/000002/00000251.pdf . Acesso em: 20 Out. 2024.
Villas Bôas, E. (2016). O papel da ciência e tecnologia no processo de transformação do Exército Brasileiro. Disponível em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/o-papel-da-ciencia-e-tecnologia-no-processo-de-transformacao-do-exercito-brasileiro . Acesso em: 20 Out. 2024.
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