A arte da paz: aumento das Missões Políticas Especiais e os paradigmas estratégicos que guiam o futuro das operações da ONU

Autores: Maj Gabriela
Quarta, 08 Outubro 2025
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A Organização das Nações Unidas (ONU), desde sua fundação em 1945, tem como um de seus pilares a manutenção da paz e da segurança internacional. Ao longo de quase oito décadas, a abordagem da ONU para prevenir e resolver conflitos evoluiu, adaptando-se às complexas e dinâmicas realidades do cenário global. As missões de paz das Nações Unidas são instrumentos centrais para esses objetivos, abrangendo diferentes modalidades e adaptando-se às necessidades de cada contexto.

Desde 1948, duas das suas principais ferramentas são as Operações de Manutenção da Paz (OMP) e as Missões Políticas Especiais (MPE) (United Nations, 2015). Tradicionalmente, as OMP são o instrumento mais visível e robusto para estabilizar regiões conflagradas. No entanto, observou-se uma mudança significativa nas últimas décadas: enquanto o número e o escopo das OMP têm diminuído, as MPE têm ganhado proeminência e se expandido em número e complexidade.

Inicialmente, as OMP foram concebidas para monitorar cessar-fogo e estabilizar situações no terreno, apoiando esforços políticos para resolver conflitos pacificamente (United Nations, 2018). Compostas por observadores militares e tropas levemente armadas, suas funções incluíam monitoramento, comunicação de informações e construção de confiança (United Nations, 2018).

Ao longo dos anos, as OMP evoluíram para se tornarem multidimensionais, englobando não apenas a manutenção da paz e segurança, mas também a facilitação de processos políticos, proteção de civis, desarmamento, desmobilização e reintegração de ex-combatentes, apoio a processos constitucionais (como eleições), proteção e promoção dos direitos humanos, e restauração do Estado de Direito (United Nations, 2023, p.10). Essas operações são mandatadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e administradas pelo Secretariado, por meio do Departamento de Operações de Paz (DPO em inglês) (United Nations, 2019). As tropas e forças policiais são cedidas pelos Estados-membros, que também são responsáveis pelo financiamento (United Nations, 2019). Historicamente, as OMP são de grande escala e envolvem um custo financeiro considerável. Por exemplo, em 2025, os custos informados para nove OMP estavam na faixa de 5,6 bilhões de dólares (United Nations, 2025a). Desde sua primeira missão, a ONU conduziu 71 OMP, com 11 delas vigentes em junho de 2025, envolvendo mais de 68 mil integrantes de 121 países (United Nations, 2025b).

Menos conhecidas pelo público geral, as MPE são conduzidas pelo Departamento de Assuntos Políticos e de Construção da Paz (DPPA em inglês), e têm como função central prevenir e resolver conflitos, além de auxiliar Estados-membros e partes em conflito a construir uma paz sustentável (United Nations A/68/223, 2013, p. 5). Sua natureza é híbrida e flexível, categorizadas em três "grupos" principais: enviados de alto nível do Secretário-Geral para realizar funções de mediação e bons ofícios (chamados good offices engagements em inglês, também enquadrados como MPE) (Cluster I); equipes de monitoramento de sanções e painéis (Cluster II); e MPE baseadas em campo, incluindo escritórios regionais e missões específicas de cada país (Cluster III) (United Nations A/68/223, 2013, p. 8). Essa flexibilidade e adaptabilidade as tornaram um componente vital no espectro de mecanismos de paz e segurança da ONU (Dicarlo, 2022). Em termos financeiros, as MPE são consideravelmente menos onerosas que as OMP. Enquanto o orçamento proposto para nove OMP em 2025 chegou a 5,6 bilhões de dólares (United Nations, 2025), neste mesmo ano, para 36 MPE, foram propostos aproximadamente 711,2 milhões de dólares (United Nations A/79/6 (Sect. 3) /Add.1, 2024, p. 1/139), demonstrando uma enorme discrepância de recursos entre elas.

A diminuição das OMP e aumento das MPE

Enquanto as MPE crescem numericamente, as OMP estão diminuindo em número e escopo, atraindo a atenção de novas pesquisas e refletindo uma nova mudança e necessidade de adaptação da ONU a um cenário global de conflitos em constante transformação.

Segundo a nova base de dados UN Peace Mission Mandates (UNPMM)1, em quase 80 anos – desde que a primeira missão de paz foi enviada ao Oriente Médio em 1948 – a ONU estabeleceu mais de 157 missões em 76 contextos de conflito em todo o mundo (UNPMM, 2025). Dessas, apenas 36 novas missões de paz funcionaram entre 1948 e 1990; ficando para a primeira década após o fim da Guerra Fria (1991 a 2000) um aumento mais significativo de 58 novas missões; seguido de duas quedas subsequentes nas décadas seguintes: 32 novas missões entre 2001 e 2010, e 30 novas missões de paz entre 2011 e 2020 (UNPMM, 2025), de todos os tipos.

De acordo com os dados, as OMP exerceram uma predominância na primeira década após a Guerra Fria (27 OMP versus 6 MPE), mas há uma reversão nos últimos anos com as missões políticas tornando-se mais numerosas nas duas décadas subsequentes aos anos 2000 (12 OMP versus 25 MPE) (UNPMM, 2025). Atualmente, essa tendência continua e a ONU conduz, em 2025, 11 OMP e 23 MPE (UNPMM, 2025).

Tendências e fatores impulsionadores da mudança

As diferentes missões de paz enfrentam desafios para se adaptar à natureza multifacetada dos conflitos contemporâneos, e os números por si só não representam a complexidade do fenômeno. Há muitas variáveis que precisam ser analisadas para além da estrutura robusta e dos custos elevados das OMP versus a flexibilidade e uma maior viabilidade econômica das MPE.

A questão financeira é um impulsionador significativo. Em um contexto de instabilidade econômica global, agravada pela pandemia da COVID-19, a ONU e seus Estados-membros buscam opções mais eficientes e menos dispendiosas para lidar com crises (Gowan & Andersen, 2020). A diferença de custo entre as OMP e MPE torna as últimas uma opção atraente para aqueles que pagam as contas e tomam as decisões.

Além disso, o foco político também emerge como uma alternativa para o futuro das operações. Embora as OMP sejam consideradas a melhor forma de mitigar os problemas de compromisso entre partes beligerantes logo após os conflitos, as MPE continuam sendo úteis mesmo no período pós-conflito, pois a implementação dos acordos de paz ocorre em fases graduais, e a demanda pela substituição do pessoal militar por pessoal civil aumenta na fase posterior, quando as partes enfrentam reformas políticas após a desmilitarização (Maekawa, 2022, p. 9). Nessa lógica, as MPE emergem como alternativas importantes “porque permitem à ONU mediar soluções políticas para conflitos armados” (Dorussen, 2020, p. 6).

Outro fator (político) a ser considerado é a relutância do Conselho de Segurança da ONU em autorizar novas missões de manutenção da paz em virtude de uma menor disposição dos países em acolher tais missões (Dorussen, 2020, p. 4). Na África, os líderes políticos criticam cada vez mais abertamente as intervenções da ONU ou mesmo de organizações regionais, argumentando que elas prejudicam a soberania nacional (Dorussen, 2020, p. 4).

Caminhando nesse sentido, um fator delicado na decisão de desdobramento de uma missão de paz é o consenso. A atuação das Nações Unidas foi, por vezes, limitada durante a Guerra Fria devido às divisões no Conselho de Segurança (Baylis & Wirtz, 2002). Atualmente, o ressurgimento da competição geopolítica e as abordagens divergentes dos Estados-membros criam obstáculos para soluções coletivas (United Nations, 2023, p. 6). As MPE, por serem menos intrusivas e onerosas, não exigem consenso entre os membros do CSNU, especialmente os P5, que são obrigados a contribuir com uma parte relativamente grande do orçamento das OMP, enquanto o financiamento para as MPE vem do orçamento regular das Nações Unidas e é considerado administrável dentro dele (Maekawa, 2022, p.12).

A transformação dos conflitos também traz novos desafios para o futuro das missões. Cada vez mais complexos, envolvendo múltiplos atores (estatais e não estatais), com fronteiras difusas entre guerra, violência criminal e violações de direitos humanos (Kaldor, 2012), os conflitos contemporâneos exigem novas resoluções. As OMP tradicionais, concebidas para conflitos interestatais, muitas vezes se mostram menos eficazes diante dessas "novas guerras". As MPE, com seu foco em mediação, diplomacia e construção da paz, por vezes são mais adequadas para lidar com a complexidade política e social desses cenários.

Além dos recursos econômicos limitados e de sucessivas diminuições de orçamento que a ONU vem sofrendo nos últimos anos, mandatos ambiciosos e muitas vezes irreais também são questões recorrentes que moldaram a eficácia e a legitimidade das operações de paz (Welsh & Zahar, 2025, p. 409), tornando-se mais um paradigma estratégico a ser trabalhado. Inerentemente mais flexíveis e adaptáveis, as MPE têm a vantagem de poder ser estabelecidas e ajustadas, com mandatos mais específicos e equipes menores, permitindo uma resposta mais ágil a situações de crise. Essa capacidade de resposta rápida é fundamental em um cenário internacional volátil, prejudicado como já falado por uma renovada concorrência geoestratégica, que tem diminuído a capacidade dos Estados-Membros de tomar medidas coletivas para enfrentar esses desafios (Dicarlo, 2022).

O estudo desse fenômeno é crucial para a compreensão das novas dinâmicas da paz e da guerra no século XXI. E como ator pacifista, o Brasil precisa participar dessas discussões com vistas a procurar insights valiosos para o aprimoramento do preparo nacional e para a formulação de políticas mais eficazes no campo das operações de paz.

REFERÊNCIAS

BAYLIS, John; WIRTZ, James J. Introduction. In: BAYLIS, John; WIRTZ, James J.; COHEN, Eliot; GRAY, Colin S. Strategy in the Contemporary World: an introduction to strategic studies. London: Oxford University Press, 2002. p. 1-14.

DICARLO, Rosemary. Special political missions are vital part of UN's Charter's diplomatic toolbox, helping to prevent and resolve conflict. Introductory Remarks on the occasion of the briefing to the Fourth Committee on "Comprehensive Review of Special Political Missions". 4 November 2022. Disponível em: https://dppa.un.org/en/special-political-missions-are-vital-part-of-uns-charters-diplomatic-toolbox-helping-to-prevent-and. Acesso em: 22 mar. 2025.

DORUSSEN, Han. Peacekeeping after Covid-19. Peace Economics, Peace Science and Public Policy, 2020, 26 (3). DOI: https://doi.org/10.1515/peps-2020-0022.

GOWAN, Richard; ANDERSEN, Louise. What next for UN peace operations? Global crisis management in a post-Covid19 world. Danish Institute for International Studies, 2020. Disponível em: https://www.diis.dk/en/research/what-next-un-peace-operations. Acesso em: 22 mar. 2025.

KALDOR, Mary. New and Old Wars: Organized Violence in a Global Era. 3. ed. Cambridge: Polity Press, 2012.

MAEKAWA, Wakako. Strategic Deployment of UN Political Missions to Replace UN Peacekeeping Operations: The Demand and Supply Sides of Transition Logic. International Peacekeeping, 2022, v. 29, n. 5, p. 777-798.

UNITED NATIONS. General Assembly. Seventy-ninth session. Items 139 of the preliminary list. Proposed programme budget for 2025 (A/79/6 (Sect. 3)/Add.1). 28 May 2024. Disponível em: https://docs.un.org/en/A/79/6(Sect.3)/Add.1. Acesso em: 12 maio 2025.

UNITED NATIONS. General Assembly. Sixty-eighth session. Item 53 of the provisional agenda. Comprehensive review of special political missions. Overall policy matters pertaining to special political missions. Report of the Secretary-General (A/68/223). 29 July 2013. Disponível em: https://undocs.org/Home/Mobile?FinalSymbol=A%2F68%2F223&Language=E&DeviceType=Desktop&LangRequested=False. Acesso em: 22 mar. 2025.

UNITED NATIONS. High-Level Independent Panel on Peace Operations. Nova Iorque, 2015. Disponível em: https://reliefweb.int/report/world/report-high-level-independent-panel-peace-operations. Acesso em: 22 mar. 2025.

UNITED NATIONS. Peace, dignity and equality on a healthy planet. Maintain International Peace and Security. 2019. Disponível em: https://www.un.org/en/our-work/maintain-international-peace-and-security. Acesso em: 2 junho 2025.

UNITED NATIONS. Peacekeeping. How we are funded. 2025a. Disponível em: https://peacekeeping.un.org/en/how-we-are-funded. Acesso em: 2 junho 2025.

UNITED NATIONS. Peacekeeping. Peacekeeping Operations Fact Sheet. 2025b. Disponível em: https://peacekeeping.un.org/sites/default/files/peacekeeping_fact_sheet_english_february_2025.pdf. Acesso em: 2 junho 2025.

UNITED NATIONS. Special Political Missions 2023. Report of the Secretary-General on Overall Policy Matters Pertaining to Special Political Missions. 2023. Disponível em: https://dppa.un.org/sites/default/files/sg_report_on_spms_a-78-307.pdf. Acesso em: 12 maio 2025.

UNITED NATIONS.  Peacekeeping. UN Peacekeeping: 70 years of service & sacrifice. 2018. Disponível em: https://unpeacemission.org/en/un-peacekeeping-70-years-of-service-sacrifice.html. Acesso em: 2 junho 2025.

UN PEACE MISSION MANDATES. Establishment of new peace missions by mission type. 2025. Disponível em: https://www.peacemissions.info/analysis. Acesso em: 2 junho 2025.

WELSH, Jennifer; ZAHAR, Marie-Joëlle. What Future for Peace Operations? Ethics & International Affairs, Cambridge University Press, 2025. Volume 38, Issue 4, pp. 404 – 417. DOI: https://doi.org/10.1017/S0892679425000012.

1 A base de dados intitulada UN Peace Mission Mandates (UNPMM) foi desenvolvida pelo Centre on Conflict, Development and Peacebuilding (CCDP) do Geneva Graduate Institute e pelo Center for Security Studies do ETH Zürich e está disponível em: https://www.peacemissions.info/analysis. Ela é financiada pelo Swiss National Science Foundation e Swiss Federal Department of Foreign Affairs, e inclui informações importantes sobre as OMP e todos os tipos de MPE sob a égide da ONU.

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