Os acrônimos e o moderno ambiente operacional são a nova constante no processo de tomada de decisão. BANI (Brittle, Anxious, Non-linear, e Incomprehensible)¹, VUCA (Volatility, Uncertainty, Complexity e Ambiguity)², PSIC (precipitado, superficial, imediatista, conturbado)³ são alguns dos acrônimos que tentam representar a complexidade dos tempos atuais.
Para entendimento do conceito que abordarei mais adiante, faço a sugestão de encarar cada letra desses acrônimos como um obstáculo no processo de tomada de decisão. Cada obstáculo, por sua vez, pode impedir de enxergar o objetivo de maneira direta e/ou criar “sombras” durante o estudo de situação.
A sombra é a projeção criada a partir de um objeto ou obstáculo ao receber uma determinada fonte de luz, é a região onde há um obscurecimento parcial, um lugar onde nossa visão não enxerga com clareza. Essa projeção pode variar de tamanho, direção ou até mesmo podem ser criadas mais de uma sombra em um único objeto, se houver diferentes fontes de iluminação.
Figura 01: Sombras projetadas a partir de obstáculos não lineares que representam a configuração desordenada do ambiente operacional moderno
Fonte: Autor (2024)
Quando discutimos sobre as sombras, um ditado pode vir à nossa mente, a expressão popular “sem sombras de dúvidas”. Esse ditame popular tem por finalidade fazer alusão a um cenário onde há ausência de incertezas, ausência de dúvidas..
Para fins didáticos, vou adaptar a expressão popular “sombras de dúvidas” a uma expressão que seja mais coerente com as operações militares, aquilo que vou chamar a partir de agora de “sombras da decisão”.
Por características da própria natureza da guerra e a necessidade de impor ao inimigo nossa vontade, algo que não controlamos, as operações militares sempre existirão em um cenário, com muitas incertezas4, repleto de “sombras”.
As “sombras de decisão” são fardos incômodos no planejamento das operações militares. Existe uma ocasião em que não existem sombras: na escuridão total. Entretanto, se não é possível enxergar nada, não é possível tomar decisões fundamentadas.
No outro extremo desse espectro semântico da escuridão total, se considerarmos uma situação na qual se tenham os melhores meios e informações iluminando as perguntas a serem respondidas, ainda existirão regiões obscurecidas e que não poderão ser respondidas por completo durante o planejamento de uma operação militar.5
Dentro de um ambiente operacional dividido entre três dimensões interligadas e com regiões coincidentes, a dimensão física, em um passado não muito distante, tinha um peso maior nessa equação de três variáveis, em detrimento da dimensão humana e informacional.
Entretanto, a era do conhecimento ajustou essa equação e como consequência a dimensão humana e principalmente a dimensão informacional ganharam destacada proeminência.6
Figura 02: As dimensões do ambiente operacional terrestre
Fonte: EB20-MF-10.102
A partir desse novo esquema dimensional, quanto mais complexas as dimensões e mais variáveis presentes no teatro de operações, maiores serão as quantidades de fatores a analisar e consequentemente mais “sombras” serão necessárias eliminar.
As “sombras da decisão” produzidas hoje não são resultado da falta de informações, mas são consequências da deficiente capacidade de se processar um elevado volume de dados com oportunidade.
Retrospectivamente, a falta de informação era um fato que incomodava os militares durante o estudo de situação, hoje o excesso de informação7 se tornou um cunhete pesado e incômodo de se carregar. A velocidade com que os fatos mudam exige que as decisões sejam tomadas dentro de uma janela de oportunidade (lapso temporal em que as “sombras da decisão” serão menores devido à volatilidade traduzidas por meios dos acrônimos).
Figura 03: Comparação entre dois momentos do horizonte temporal quando a janela de oportunidade apresenta sombras pequenas, mas que não devem se manter assim por muito tempo devido à volatilidade do ambiente operacional.
Fonte: Autor (2024)
A imagem acima pode ser usada para exemplificar a janela de oportunidade para a tomada de decisão. Analogamente, podemos dizer que as decisões se movimentam como as sombras, existe um melhor momento para se tomá-las, seja por consequência involuntária do ambiente, seja por soluções e/ou situações criadas pelos próprios planejadores.
Apagar as “sombras” pode parecer ser aparentemente fácil, bastaria aumentar a força da fonte de luz ou colocar mais pontos de luminosidade. Trazendo essa metáfora para o campo militar e de maneira simplista, para responder a uma dúvida de um planejamento também seria simples, bastaria lançar um moderno meio de inteligência ou especialistas para “iluminar o terreno” e levantar as informações necessárias.
Mas a discussão é muito mais complexa do que parece. A figura ilustrada abaixo possui sombras que não podem ser eliminadas com a sobreposição de mais fontes de luz. Um novo prisma iluminativo em qualquer direção, não necessariamente irá apagar as sombras existentes, essa nova fonte de luz pode inclusive criar novas projeções a partir do mesmo objeto ou mudar a direção das projeções já criadas.
Figura 04: Sobreposição de diferentes fontes iluminativas que não eliminaram as sombras mas podem projetar novas áreas obscurecidas.
Fonte: Autor (2024)
Portanto, para tentar diminuir as “sombras da decisão”, por vezes, as consequências podem ser contra intuitivas. Isso porque pode-se acabar encontrando novos dados que exijam um novo estudo de situação mais detalhado ainda, cujo reflexo pode induzir os assessores e decisores a ficarem presos em um processo de decisão redundante e lento, na contramão de um ambiente moderno caracterizado pela velocidade com que os fatos ocorrem.
Mas se esse ambiente operacional é novo e complexo, como fazer para enfrentar esses novos desafios e como os assessores do nível tático podem se orientar através dessas sombras?
Primeiramente, devemos relembrar que a incerteza não é um sentimento exclusivo das novas gerações.
O General Dwight D. Eisenhower, Comandante do Teatro de Operações Europeu na II Guerra Mundial, escreveu uma carta às vésperas da deflagração da Operação Overlord, na qual ele coloca toda a responsabilidade, em caso de falha da Operação em si próprio, influenciado pelo tamanho das incertezas que o cercavam.8
Apesar do nível de decisão do Gen Eisenhower não estar no nível tático, esse sentimento de incerteza provavelmente permeou os escalões subordinados em todos os níveis.
Desse fato, os assessores do nível tático podem tirar o primeiro ensinamento para se orientarem nas “sombras”: a importância de elaboração de linhas de ação bem alinhadas à intenção do comandante.
Por mais que as “sombras da decisão” também afetassem os níveis táticos durante a Operação Overlord, foi fundamental que tropas seguissem estritamente a intenção dos Comandantes em todos os níveis, e fizessem planejamentos alinhados com essas diretrizes de planejamento. Somente com uma intenção bem estabelecida e bem difundida, as tropas saberiam as razões e quais eram os objetivos a serem conquistados durante a maior operação anfíbia da história, sobretudo quando existiam severas dificuldades e limitações de comando e controle. Portanto, a intenção do comandante permite que o escalão executante não perca o foco na sua missão e nos objetivos dos planos estabelecidos.
Mudando a frente para um combate mais atual, entretanto, de guerra irregular, as IDF (Israel Defense Forces) são obrigadas a se adaptar a um ambiente operacional majoritariamente urbano, na Faixa de Gaza, região densamente povoada e permeada por uma extensa rede de túneis.9
Figura 05: Hamas’s ‘Gaza Metro’ tunnel system
Fonte: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-67097124
Neste cenário urbano que favorece o emprego de tropa descentralizada10 e com severas limitações de comando e controle11, repleto de sombras, inclusive onde as operações em túneis escuros se tornam bem prováveis, as linhas de ação ligadas à intenção de comando permitem que a tropa empregada na ponta da linha possa se orientar e tomar melhores decisões em meio às dificuldades e incertezas.
Na imensidão territorial da Amazônia, no contexto das ações subsidiárias, o comando e controle fica prejudicado pela falta de estrutura e dificuldade de locomoção. A deficiência de equipamentos e rádios militares, com amplitude suficiente para enviar ondas por centenas de quilômetros através da selva, também dificulta a comunicação entre escalão subordinado e escalão superior.
O ambiente operacional da Amazônia estimula o emprego de tropas descentralizadas12 e, novamente, por meio de intenções bem definidas é que os operadores mais elementares no nível tático saberão como navegar nas sinuosidades desse bioma e, consequentemente, achar boas soluções para as questões desse ambiente operacional.
Para que a intenção do comandante possa ser difundida e claramente entendida, podemos então extrair o segundo ensinamento para os assessores do nível tático: uma boa linha de ação, necessita, sempre que possível, buscar atender ao princípio de guerra da simplicidade13.
O princípio de guerra da simplicidade não quer dizer que os planejamentos devam ser conduzidos de maneira rasa e sem fundamentos. A simplicidade tem por finalidade contribuir para que as ordens e planos sejam emitidos de maneira clara e concisa, diminuindo a incompreensão e a confusão, sobretudo no contexto do atual ambiente operacional.14
Este princípio secular pode parecer estar em contraponto à complexidade dos cenários contemporâneos, entretanto, a simplicidade permite ao Comandante ter maior flexibilidade durante as ações desenvolvidas em ambientes cada vez mais voláteis e ambíguos, bem como permite divulgar novas ordens de maneiras precisas e que serão entendidas pelos elementos táticos, mesmo que as tropas estejam empregadas em um cenário ambíguo.
Um obstáculo para a simplicidade são processos excessivamente burocráticos, por serem atos redundantes e por consequência, lentos, indo no contra azimute do cenário atual. As instituições hierarquizadas e que constantemente tomam decisões de risco, como são as Forças Armadas, tendem a ser exacerbadamente burocráticas15, mas essas padronizações institucionais podem levar à produção de excesso de documentação que podem comprometer a tomada de decisão com oportunidade e simplicidade.
Mas se a burocracia faz parte da natureza do problema, o desafio para os assessores é de propor soluções à burocracia por meio de processos inteligentes, eficientes, integrados e simples, de tal maneira a não atrasar o recebimento ou envio de informações ou ordens, à exemplo do que faz as IDF (Israel Defense Forces), que estimula e continua desenvolvendo sistemas inteligentes e integrados, como por exemplo o desenvolvimento do aplicativo Fire Factory (seleção, análise e aquisição de alvos), para fundamentar a tomada de decisão.16
Por fim, e não menos importante, o terceiro ensinamento é sobre a importância dos valores éticos e morais aprendidos durante a formação nos nossos Estabelecimentos de Ensino. Esta prática está longe de ser inovadora, mas é uma eficiente ferramenta em meio do cenário contemporâneo.
Nesse sentido, é imperativo destacar a formação forjada em valores éticos e morais. Quanto maior a necessidade de iniciativa e de emprego descentralizado, conforme a doutrina evolui, cada vez mais as tropas necessitam ter seus valores fortemente internalizados17. São esses valores que, em meio às sombras, fazem o papel da bússola que orienta nossas condutas.
Novos desafios trazem novas reflexões, sobretudo, quando estamos sufocados pelo excesso de informações e as consequências para os assessores do nível tático são enormes. Mas durante o estudo de situação, que conduz à elaboração das linhas de ação para o assessoramento da tomada de decisão, é possível concluir que, independente do local que nos encontramos na linha do tempo, alguns ensinamentos, como os apresentados aqui, são imutáveis.
REFERÊNCIAS
1 - https://ageofbani.com/2022/04/bani-and-chaos
2 - https://usawc.libanswers.com/faq/84869
3 - https://eblog.eb.mil.br/w/a-lideranca-estrategica-ante-os-desafios-do-mundo-psic
4 - CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra.
5 - MURRAY, Williamson; SCALES, Robert H. The Iraq War: A Military History
6 - EXÉRCITO BRASILEIRO. Doutrina Militar Terrestre. 2. ed.
7 - VISACRO, Alessandro. A Guerra na Era da Informação
8 - MURRAY, Williamson - A Necessidade de Adaptação ao Combate
9 - https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nv2y7erx5o
10 - EXÉRCITO BRASILEIRO - Táticas, Técnicas e Procedimentos para Operações em ambientes urbanos (EB70-CI-11.434)
11 - U.S. ARMY - ATP 3-21.51 - Subterranean Operations
12 - EXÉRCITO BRASILEIRO - Manual de Campanha Operações na Selva (EB70-MC10.210)
13 - DESPORTES, Vicent - A tomada de decisão em cenário de incerteza
14 - EXÉRCITO BRASILEIRO. Manual de Ensino (EB60-ME-12.401): O Trabalho de Estado-Maior. 1. ed.
15 - TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos.
16 - https://defenceredefined.com.cy/israel-idfs-fire-factory/
17 - KRULAK, Charles C. The Strategic Corporal: Leadership in the Three Block War.
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