Tragédia no mar e a guerra declarada
O ano de 2024 marca o octogésimo aniversário do embarque da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para a Itália. Este feito, que representa um verdadeiro ponto de inflexão para o País, continua a ser um campo fértil para a discussão, muito além do aspecto puramente militar. A entrada do Brasil na 2ª Guerra Mundial (II GM) foi, em síntese, a resposta ao clamor popular de indignação1 às covardes agressões de submarinos do Eixo a embarcações brasileiras que navegavam por águas atlânticas2.
A partir de 15 de fevereiro de 1942, navios de bandeira verde e amarela circulando desde a costa oriental dos Estados Unidos até o litoral do Brasil começaram a ser torpedeados de forma traiçoeira e sistemática por submarinos tedescos e italianos. O Governo brasileiro, ante tamanha atitude hostil, declarou guerra à Alemanha nazista e à Itália fascista em 22 de agosto de 19423. As ações submarinas ítalo-germânicas, desenvolvidas por mais de dois anos ininterruptos, provocaram o afundamento de 33 embarcações brasileiras e a morte de quase mil e cem náufragos inocentes4.
Nasce a FEB e a cobra fumou
Em Natal, durante a Conferência de Potengi5, ocorrida em 28 de janeiro de 1943, foi selada a participação do Brasil na II GM. Como resultado, em 9 de agosto daquele mesmo ano, nasceu a FEB, expressão do compromisso do governo brasileiro e da vontade nacional em contribuir para o restabelecimento da paz mundial. Nesse sentido, planejou-se o envio de um contingente de mais de 25 mil pessoas à Itália.
Inicialmente, prevista para a cidade de Resende, a concentração da FEB ocorreu na histórica Vila Militar, na cidade do Rio de Janeiro, onde os pracinhas ficaram alojados em instalações de quartéis já existentes ou construídos emergencialmente para aquela finalidade. No subúrbio carioca, receberam o treinamento militar inicial de combate para, posteriormente, seguirem de trem até o Cais do Porto, rumo ao Velho Continente.
Com o propósito de transportar toda a FEB à Itália, foram organizados cinco escalões, cada um com cerca de 5 mil componentes. O primeiro deles zarpou do Brasil em 02 de julho de 1944, sob o comando do General de Divisão Mascarenhas de Moraes, o único naquele momento a saber para onde a FEB de fato iria. Tendo por base o 6º Regimento de Infantaria – Regimento Ipiranga, com sede em Caçapava, no interior paulista, a tropa brasileira embarcada recebeu, em plena travessia do Atlântico, a notícia de que o local de destino seria Nápoles, na Itália.
Cerca de sete meses depois, em 8 de fevereiro de 1945, o quinto e último escalão deixou o Brasil, constituído, em sua maioria, por elementos da administração militar que compunham o Depósito de Pessoal. Durante todo o movimento para a Europa, a Marinha do Brasil, além de guarnecer o vasto litoral nacional e suas ilhas oceânicas, protegeu com efetividade cada comboio formado, permitindo que os integrantes da FEB chegassem à Itália em segurança.
Os obstáculos vencidos para a estruturação da FEB e o seu integral transporte para a Europa são motivo de muito orgulho, sobretudo considerando as condições do País à época. Ainda hoje, esse exitoso translado desperta o interesse e a pesquisa de estudiosos e especialistas no assunto. Naquela oportunidade, ao superar complexos desafios, o povo brasileiro deu prova cabal de sua resiliência e competência. A cobra, enfim, fumou!
A cobra segue fumando
Em 16 de julho de 1944, os primeiros pracinhas pisaram o solo italiano. Se por um lado chegaram desconhecidos, por outro rapidamente se ajustaram à nova situação, demostrando invulgar flexibilidade, inventividade e adaptabilidade. Dessa forma, foram aos poucos conquistando a admiração e o respeito de todos. À proporção que as batalhas se desenrolavam, tornava-se mais perceptível o seu caráter agregador, bondoso e solidário, que somado às suas capacidades combativas, iniciativa, camaradagem e destemor, contribuiu para a vitória aliada na Campanha da Itália.
Os incontáveis episódios de heroísmo da FEB já são parte consagrada da extensa e memorável bibliografia existente sobre o tema. Todavia, ao analisar cada ação realizada, percebe-se que os soldados-cidadãos brasileiros, em sua essência, souberam cultuar, praticar e desenvolver os valores militares estruturais da Instituição Exército Brasileiro, a saber: o patriotismo; o civismo; a fé na missão; o amor à profissão; o espírito de corpo; além da incessante busca pelo aprimoramento técnico-profissional.
Com a mobilização nacional, os pracinhas vieram “do morro, do Engenho”, “das selvas, dos cafezais”, “da boa terra do coco” e de todos os demais rincões do Brasil, formando um corpo sinérgico orientado ao mesmo ideal de luta contra a opressão e os horrores do nazifascismo. Microrganismo da sociedade brasileira por excelência, a FEB foi um autêntico emaranhado de raças, integrando harmonicamente pessoas de ambos os sexos, de diferentes classes sociais e culturas variadas. Esse heterogêneo conjunto, ao se olhar no espelho, viu refletida a imagem de um Brasil pujante, em pleno desenvolvimento e ciente do seu papel como líder regional, com projetado protagonismo mundial.
Exaltar os 80 anos do embarque da FEB é, portanto, homenagear e dar visibilidade ao legado de dedicação, exemplo e sacrifício de cada pracinha brasileiro, sempre pronto a servir ao seu País e disposto a dar a vida pela liberdade e democracia. Lembrar o marco histórico de 2 de julho de 1944 é, igualmente, render o máximo respeito aos 462 heróis que não puderam rever sua terra natal. A cobra seguirá sempre fumando!
1 O Brasil, antes do início da repugnante sequência de ataques a embarcações nacionais cargueiras e de transporte de pessoas por submarinos alemães e italianos, já vivia um processo natural e crescente de afastamento das potências do Eixo, ao passo que se aproximava das nações Aliadas, notadamente os Estados Unidos da América.
2 Em 22 de março de 1941, o navio cargueiro Taubaté, de bandeira auriverde, foi alvo de um ataque aéreo alemão no Mediterrâneo, próximo ao Egito, ocasionando a morte de uma pessoa.
3 De fevereiro de 1942 até a data da declaração de guerra, 20 embarcações já haviam sido atacadas por submarinos alemães e italianos, com mais de 700 mortos. A última agressão foi em 19 de agosto (cargueiro Jacyra), apenas 3 dias antes da declaração.
4 No total, foram 35 navios brasileiros atacados, até 19 de julho de 1944, incluindo o Taubaté.
5 Conferência realizada entre os Presidentes Vargas, do Brasil, e Roosevelt, dos Estados Unidos da América.
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Observação
O Cel André Dias escreveu o presente artigo com o senhor ISRAEL BLAJBERG.
Segue o artigo do Prof Israel Blajberg:
Formado em 1968 em Engenharia Eletrônica pela Escola Nacional de Engenharia. Atualmente é Presidente da Academia de História Militar Terrestre do Brasil/Rio de Janeiro e Vice-Presidente da Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira (ANVFEB) – Centro Cultural Casa da FEB. Foi engenheiro do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Realizou o Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia e o Curso de Logística e Mobilização Nacional, ambos pela Escola Superior de Guerra (ESG). É membro do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHM).
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