O complexo cenário contemporâneo evidencia a necessidade de uma Força Terrestre (F Ter) capaz de enfrentar ameaças difusas e condicionantes, como o enfrentamento de forças irregulares robustas, a atuação em espaço de batalha não linear, a atuação em ambiente interagências, o incremento da proteção (individual e coletiva), a condução de operações de informação, as ações no espaço cibernético, a proteção de civis, entre outras. Assim, a partir de 6 de setembro de 2013, a Portaria n.º 197, do Estado-Maior do Exército, aprovou as Bases para a Transformação da Doutrina Militar Terrestre, documento que passou a orientar a introdução de fundamentos e de concepções doutrinárias, a fim de incorporar capacidades e competências necessárias à atuação no século XXI. Em 2014, a Doutrina Militar Terrestre (DMT) colimou um conjunto de valores, conceitos e táticas para orientar o preparo dos recursos humanos e dos meios da F Ter.
Nesse contexto, o Exército Brasileiro (EB) acolheu a sistemática da geração de forças por meio do Planejamento Baseado em Capacidades (PBC), percebendo capacidade como a aptidão requerida a uma Força ou Organização Militar para que possa cumprir certa missão ou tarefa. Para a obtenção de uma determinada capacidade, deve-se promover a sinergia entre sete fatores: Doutrina, Organização, Adestramento, Material, Educação, Pessoal e Infraestrutura (DOAMEPI). Entre as capacidades elencadas para a F Ter, encontramos a efetividade na doutrina militar e a projeção internacional em apoio à política exterior do País.
Sob esse prisma, após treze anos de presença no Haiti, no momento em que as condições de segurança se estabilizaram e a ONU estendeu, pela última vez, o mandato da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), o EB iniciou a desmobilização dos seus integrantes que atuam na Ilha Hispaniola. Portanto, torna-se oportuna breve reflexão acerca do legado dessa atuação para a DMT. Estabelecida em 2004, a MINUSTAH empreendeu esforços na obtenção de um nível de segurança que permitisse o funcionamento das instituições e o desenvolvimento daquele país, contando com o componente militar liderado pelo EB. Nesse sentido, fruto do preparo e do emprego de 26 contingentes, observam-se influências e contribuições para as capacidades acima destacadas, segundo os seguintes aspectos do DOAMEPI:
- Doutrina: é a base para os demais aspectos, materializada por produtos doutrinários. Nessa perspectiva, o emprego da MINUSTAH demandou ação ao longo do espectro conflitivo, alternando cenários de crise e de paz instável. Assim, implicou na combinação de atitudes por parte dos contingentes, incluindo ações defensivas, ofensivas e de estabilização. Dessa forma, contribuiu com a DMT na concepção do conceito operativo do Exército - Operações no Amplo Espectro.
- Organização: é expressa pela estrutura organizacional dos elementos de emprego da F Ter. Nessa conjuntura, em face das inúmeras demandas vividas no Haiti, configuraram-se as estruturas denominadas BRABATT (Brazilian Battalion) e BRAENGCOY (Brazilian Engineer Company), com destaque para a adição de um segundo BRABATT, em virtude da crise humanitária advinda do terremoto de 12 de janeiro de 2010. Tal experiência contribuiu para que a DMT adotasse a organização com base nas características Flexibilidade, Adaptabilidade, Modularidade, Elasticidade e Sustentabilidade (FAMES), buscando resultados decisivos por meio do emprego gradual e proporcional à ameaça.
- Adestramento: trata das atividades de preparo, segundo programas e ciclos específicos. Com isso, influenciado pelo compromisso com a MINUSTAH, em 2005, o EB criou o Centro de Instrução de Operações de Paz (CI Op Paz), com a finalidade de conduzir o preparo dos contingentes. Já em 2010, o Ministério da Defesa ampliou o encargo do CI Op Paz para a preparação de civis e militares, brasileiros e de nações amigas, evoluindo para Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB), consolidando-se em um centro de adestramento de excelência mundial.
- Material: compreende todos os materiais e sistemas para uso na F Ter. Nessa ótica, as operações no Haiti trouxeram a otimização do uso de armamento não letal, fruto das limitações para o uso da força e da densidade de civis no ambiente. Além disso, com o intuito de preservar o bem-estar físico dos militares, ampliou-se o emprego de equipamentos de proteção individual, de plataformas blindadas e de sistemas adicionais de blindagem, como a proteção blindada do motorista (PBM) e a proteção blindada do atirador (PBA), aplicadas nos Veículos Blindados de Transporte de Pessoal (VBTP) Urutu, o que contribuiu para maior abrangência da função de combate e proteção na Doutrina Militar Terrestre (DMT).
- Educação: refere-se às atividades de capacitação e habilitação destinadas ao desenvolvimento do militar quanto à competência requerida. À luz desse conceito, o emprego na MINUSTAH promoveu a exposição ao ambiente multinacional, sob a égide da ONU, demandando: capacidade linguística para a coordenação das operações, compreensão do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) para o devido uso da força e liderança militar continuada. Tal cenário influenciou a DMT, uma vez que fomentou o ensino de idiomas e implicou na inserção do DICA na instrução militar, criando melhores condições para a projeção internacional de poder.
- Pessoal: abrange todas as atividades relacionadas aos integrantes da Força, nas suas diversas funcionalidades. Nesse ponto de vista, o emprego de cerca de 37.500 militares na MINUSTAH propiciou oportunidade de habilitar homens e mulheres do Exército Brasileiro para atuar no amplo espectro, em cenários voláteis e imprevisíveis. Logo, a experiência gerou massa crítica capaz de operar com adaptabilidade, requisito crucial à DMT para o uso da força no presente século.
- Infraestrutura: engloba instalações físicas, equipamentos e serviços que geram suporte à utilização e ao preparo dos elementos de emprego. Nesse caso, o desdobramento no Haiti durante 13 anos criou a demanda de otimizar a mobilização e o fluxo logístico na Força Terrestre. Essa situação influenciou a criação da Base de Apoio Logístico do EB e, mais especificamente, levou à ativação da Célula Logística de Apoio ao Contingente do Haiti (CLACH), liderada pelo Comando Logístico (COLOG), aprimorando a perspectiva das características FAMES, mencionadas acima, no âmbito da Doutrina Militar Terrestre.
Por fim, observa-se que o emprego do Exército na MINUSTAH, além de contribuir com a construção da paz no Haiti, gerou legado relevante às capacidades elencadas pela DMT. Isto posto, a atuação do EB em missões de paz, à medida que mobiliza todos os fatores dos aspectos DOAMEPI, evidencia-se como oportunidade de multiplicação do poder de combate em prol das capacidades necessárias à Defesa da Pátria.
Que venha o próximo desafio!
Fé na missão!
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