Lealdade e disciplina1
Em junho de 1940, em meio à crise político-militar provocada pela avassaladora ofensiva nazista, o Marechal Philippe Pétain, um dos heróis franceses da I Guerra Mundial, assumiu o cargo de primeiro-ministro da França. No dia seguinte, sabedor da intenção do Marechal de render-se à Alemanha, o que efetivamente ocorreu em 22 de junho, Charles de Gaulle, recentemente promovido a general de brigada no campo de batalha, rebelou-se contra o novo governo e evadiu-se para a Inglaterra, de onde passou a conclamar o povo francês à resistência e a organizar as Forças Francesas Livres. Em agosto do mesmo ano, um tribunal militar instaurado pelo Governo de Pétain, condenou, à revelia, de Gaulle à morte por traição.
Esses fatos históricos, resumidamente narrados, servem de perfeito pano de fundo para o objetivo de argumentar sobre o adequado relacionamento funcional entre lealdade e disciplina.
Lealdade e disciplina são valores caros a todos os soldados. Assemelham-se como conceitos, por tratarem ambos de aspectos fundamentais do relacionamento dos militares com a Instituição, mas distinguem-se em escopo e importância. Caso sejam vistos como representação do mesmo valor, um dos dois estará distorcido ou aviltado.
A disciplina é constitucionalmente caracterizada como base das Forças Armadas e está bem especificada no Estatuto dos Militares, lei que estabelece os princípios basilares, os valores éticos e os deveres militares de todos os integrantes daquelas Forças. Está também caracterizada em normas regulamentares infralegais, particularmente no Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), e é definida como: “a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes desse organismo”.
Vê-se que a disciplina tem uma conotação ampla, que abrange o acatamento aos próprios princípios e valores imateriais estabelecidos pelo Estatuto dos Militares. Entretanto, há uma conotação mais estreita da disciplina e corriqueiramente mais difundida na mente dos militares. Essa conotação é favorecida pelo que está disposto no RDE, que reproduz a definição do Estatuto, mas complementa-a com suas quatro manifestações essenciais, que são: obediência pronta às ordens, correção de atitudes, dedicação integral ao serviço e colaboração espontânea para a disciplina coletiva e eficiência das Forças Armadas.
Essa visão mais estreita e funcional da disciplina, expressa por suas manifestações, é corroborada pela relação das transgressões disciplinares. Nesse anexo do RDE, as manifestações essenciais da disciplina, por intermédio do viés negativo, estão ampla e detalhadamente caracterizadas em cento e doze itens, ao passo que apenas um deles2 se refere ao aspecto mais amplo dela e, mesmo assim, com elevado grau de subjetividade. Percebe-se então que o acatamento dos valores imateriais expressos nas leis [...] que fundamentam o organismo militar [...] traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever extrapola as simples manifestações da disciplina, estando vinculado ao exercício amplo e subjetivo dela.
Essa subjetividade não é estranha. Diferentemente da disciplina, não há definição de lealdade no nível legal e tampouco no regulamentar. No Estatuto, ela é citada apenas uma vez, na forma do dever militar de demonstrar lealdade em todas as circunstâncias, sem, todavia, evidenciar a que se deve ser leal. O RDE, por sua vez, não menciona a lealdade. Resta-nos a definição sumária do dicionário3: lealdade significa sinceridade, franqueza, honestidade e fidelidade a compromissos assumidos.
Sem claro entendimento do objeto ao qual os militares devem ser leais em todas as circunstâncias, a lealdade tende a tornar-se um conceito vazio ou, então, a confundir-se com as manifestações essenciais da disciplina, sendo inócua em ambos os casos.
Na falta de parâmetros nítidos para o exercício da lealdade, continua, ainda, a vigorar na mente dos militares a ideia de lealdade orientada a pessoas – resquício de circunstâncias passadas. Antigamente, até meados do século XX, por falta de normas bem definidas, a avaliação do mérito e a promoção dos militares sujeitavam-se, em grande parte, a critérios pessoais dos chefes de então. Nesse ambiente, era natural que os oficiais buscassem, desde cedo na carreira, vincular-se a seus chefes por laços de lealdade, o que também interessava àqueles chefes, em função dos interesses políticos que, na época, se imiscuíam no seio da Força. Esses relacionamentos de apadrinhamento e lealdade, semelhantes aos que vigoram plenamente no meio da política partidária, estão praticamente superados no Exército em função de sua despolitização e dos critérios profissionais e impessoais que foram implantados, sobretudo a partir dos anos sessenta do século passado, para regular a avaliação do mérito e as promoções. A persistência da ideia de lealdade orientada a pessoas, além de ser um anacronismo, é desnecessária e inconveniente aos interesses maiores do Exército.
A lealdade a pessoas, ao chefe em particular, para continuar relevante atualmente, teria de representar um valor diferente, ou suplementar, às manifestações essenciais da disciplina, o que não acontece. O que mais deve um subordinado a seu chefe além de obediência às ordens, correção de atitudes e dedicação integral ao serviço? Nada, por certo. A sinceridade, franqueza e honestidade podem ser interpretadas como expressão da lealdade entre pessoas. São atributos individuais importantes no relacionamento funcional, mas, sem dúvida, circunscrevem-se no âmbito da correção de atitudes e da dedicação integral ao serviço. Afirmar que o subordinado deve ser leal a seu chefe nada acrescenta à obrigação dele de manifestar disciplina, considerando-se evidentemente que essa lealdade só seja devida na medida em que o chefe agir segundo os ditames da lei e dos valores fundamentais da Força. A ideia de lealdade orientada a pessoas é, portanto, desnecessária.
A que então temos o dever de lealdade em todas as circunstâncias? Indubitavelmente, aos princípios basilares do Exército, aos valores que garantem a pureza de seus propósitos, que alimentam o espírito militar e asseguram que a Força permaneça sempre à altura de sua missão perante a Pátria. A lealdade deve ser a expressão da disciplina em seu nível mais amplo e subjetivo, acima de suas simples manifestações. Essa conotação de lealdade é a mais digna, por vincular-se a princípios imutáveis e não a pessoas, passíveis que são a erros de julgamento e a flutuações de estado de espírito e opiniões. A não manifestação dessa lealdade decerto enfraquecerá o Exército em seus valores anímicos, consequentemente, esvaziá-la, por intermédio da prevalência da ideia de lealdade a pessoas, é inconveniente.
Aceitos esses argumentos, é forçoso admitir que a lealdade se sobrepõe à disciplina,4 na medida em que esta deve se exercer em ambiente de pleno acatamento aos princípios e valores que norteiam, no mais alto grau, o relacionamento dos militares com a Força e com a Pátria. A lealdade a esses princípios e valores, estabelecidos na lei e aceitos por todos que, voluntariamente, incorporam-se ao Exército, é sempre pura e moralmente irreprochável. A disciplina ao contrário, se dissociada deles, ainda que inconscientemente, corre o risco de desvirtuar-se, afastando-se de seus nobres objetivos e mantendo-se indiferente ao desencaminhamento que essa dissociação acarreta ao Exército como força armada, mesmo que continue legitimamente sendo capaz de preservar o ordenamento interno da Força e seu funcionamento rotineiro.
Há peculiaridades no exercício da lealdade que o distinguem fortemente do exercício da disciplina. A disciplina é objetiva. Os padrões comportamentais necessários ao acatamento dela são claros e bem definidos, como já mencionado. É possível, portanto, haver, como realmente há, meios efetivos de coerção que são ativados sempre que houver falha disciplinar. A lealdade é subjetiva. Não há definição dos padrões de atitude necessários para o acatamento aos princípios e valores fundamentais do Exército. Não há, por exemplo, como definir precisa e indiscutivelmente o que é patriotismo, salvo as exceções evidentes. O próprio conceito é subjetivo. Dois posicionamentos podem ser contrários e, apesar disso, as pessoas que os adotam se sentirem ambas motivadas por patriotismo. Será que Chamberlain, o Primeiro-Ministro inglês que tentou uma acomodação com Hitler, era menos patriota do que Churchill, partidário da inevitabilidade do confronto? A única afirmação segura que se pode fazer é que a posição de Churchill revelou-se a mais correta.
A lealdade é o compromisso inarredável com os princípios e valores tão citados neste artigo, mas o sentimento do que é ser leal é uma questão de foro íntimo. A necessidade de exercer a lealdade por meio de atitudes efetivas será sempre função da inconformidade entre a situação vigente e a convicção íntima daqueles princípios e valores basilares. O exercício efetivo da lealdade será, portanto, sempre uma forma de luta, em seus variados graus de intensidade. Como toda luta, envolve riscos, pois pode vir a chocar-se com o poder coercitivo do status quo, e não tem o resultado garantido. Apesar disso, é um dever – um dever legal e, acima de tudo, um dever moral. Cumpri-lo, parafraseando São Paulo, é combater o bom combate.
Ser leal nesses termos não é fácil nem indolor, ao contrário, é uma dura obrigação que requer convicções firmes, devotamento e coragem. Almas tímidas, interesseiras ou vazias de conteúdo podem ser leais a seus chefes, visto ser este tipo de lealdade um exercício inofensivo atualmente, mas são incapazes de cumprirem o dever militar de lealdade nos termos aqui expostos.
A lealdade é um aguilhão que não nos deixa esquecer que existimos para servir ao Exército e à Pátria, sem jamais nos deixarmos seduzir pela tentação de deles nos servir, ao que estaremos fatalmente sujeitos se, em qualquer nível, cedermos a interesses menores, sejam corporativos ou individuais. Servir significa zelar pelo futuro do Exército como força terrestre, pois só assim demonstraremos vontade inabalável de cumprir o dever militar5 e manifestando fé na missão elevada das Forças Armadas6, e não apenas administrar a rotina do presente e cultuar os êxitos do passado.
A essa altura da argumentação, pode-se questionar: por que não ser leal a valores e também a pessoas? A pergunta é lícita e a resposta é fácil. Porque não se pode servir a dois senhores. Se a lealdade, como sentimento de compromisso, for dirigida a objetos diferentes, quando houver inconformidade entre estes, ter-se-á de optar fatalmente pela lealdade a um deles, resultando em deslealdade com o outro. Castello Branco não poderia ter sido leal simultaneamente aos princípios democráticos da sociedade brasileira e à defesa da disciplina nas Forças Armadas, que o levaram a decidir-se pelo desencadeamento da Revolução de 1964, mantendo ao mesmo tempo, seus compromissos com o ministro da Guerra, seu chefe imediato, e com o presidente da República, seu comandante supremo e agente capital do atentado àqueles valores.
Para finalizar, voltando-se ao exemplo histórico que abriu este artigo, é indiscutível que de Gaulle foi indisciplinado em sua atitude, já que não obedeceu às ordens superiores, e, do ponto de vista do governo legitimamente instalado, criminosa. No entanto, foi seu sentimento de lealdade e sua coragem que possibilitaram à França preservar sua dignidade nacional e emergir do conflito entre os vencedores. Quanto ao velho Marechal, herói do passado, restou uma indelével mancha em sua biografia.
1 Artigo publicado na Coleção Meira Mattos, 1o quadrimestre de 2010.
2 Item 9 do anexo I do RDE
3 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
4 Entendida como sua conotação mais estreita, vinculada a suas manifestações, nas quais se insere a ideia de lealdade a pessoas.
5 Art 27 do Estatuto dos Militares
6 Idem
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