Referi-me, de passagem, à soldadania num artigo que escrevi, publicado no primeiro exemplar da Coleção Meira Mattos, em 2007, simplesmente por achar interessante e chamativo esse protótipo de neologismo, mas sem conceber significado algum para ele, além da ligação indefinida com a condição de soldado.
A ebulição do momento político atual, todavia, me fez pensar novamente nessa ideia e na conveniência de desenvolvê-la, a fim de dar-lhe corpo e conteúdo.
Comecemos pelo que ela não é.
Soldadania nada tem a ver com a antiga ideia de soldado-cidadão ou cidadão-soldado. Esse conceito, com raízes na Revolução Francesa, é quase anacrônico na atualidade. A preocupação patriótica e social que animava a ideia de soldado-cidadão – e que entre nós estimulou pessoas da estatura de Olavo Bilac – não tem mais eco em nossas atuais sociedades, enlanguescidas pela tranquilidade e desacostumadas dos tambores da guerra. Essa noção consolidou-se ao longo do século XIX, com destaque para a Alemanha unificada, e perdurou sobretudo na Europa continental, na era dos grandes exércitos de conscrição e das decretações de mobilização nacional seguidas das declarações de grandes guerras. Referia-se à condição do cidadão, propiciada pelo serviço militar universal, de ser capaz de pegar em armas em defesa de seu país a qualquer momento. O soldado-cidadão era, portanto, cidadão por inteiro na paz e soldado por completo na guerra. As condições e os valores não se misturavam. Essa, entretanto, sempre foi uma situação idealizada, pois o serviço militar, ainda que obrigatório, nunca chegou perto de ser de fato universal, nem mesmo na Prússia militarista e, entre nós, atinge apenas uma parcela irrisória dos cidadãos.
A soldadania é a característica de soldados por vocação, bem formados. Não a compreendem tanto os mal orientados quanto os arremedos de soldado, aqueles que vestem ou vestiram a farda, mas não a têm impregnada na alma, como bem salientou o General Octávio Costa, pois desdenham de seus princípios essenciais. Na guerra, suas injunções são bem conhecidas, mas, na paz, nem tanto. Ela não abafa as prerrogativas do cidadão no peito do soldado, como também destacou com igual pertinência o General Osório. Contudo, impõe-lhes certos limites, assinalados pelos princípios que balizam a condição militar em todas as circunstâncias e ocasiões da vida dos soldados, e que a estruturam. Princípios estabelecidos não só por força da lei, mas que o verdadeiro soldado acata e incorpora espontaneamente em seu espírito. Princípios que são a estrela-guia indispensável a quem porta o poder exorbitante do monopólio da força estatal.
Não cabe à soldadania preocupar-se com fogos-fátuos, ao contrário de certa vertente da cidadania, sempre palradora, inquieta, imediatista, reivindicante de todas as causas, insolente e muitas vezes desnorteada. A soldadania é lacônica, é sobranceira em relação a questiúnculas e ao que foge a sua seara. Salvo se legitimamente convocada, não lhe compete ocupar-se com o lodo levantado, aqui e ali, pela agitação das águas, tampouco com a direção de suas corredeiras. Expressão de soldados em sua função de servidores do Estado, ela não toma partido em disputas legítimas, pois seu partido são apenas suas missões constitucionais. Sua incumbência é nada menos que garantir o fluxo normal do rio em seu leito natural e desejado.
Mais que um inarredável dever legal, o exercício da soldadania é um dever anímico de todos os verdadeiros soldados – dever de quem vê, no dever, seu próprio sentido de ser.
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