Era uma tarde de sexta-feira comum em Manaus, muito quente, com duas horas de defasagem do restante do Brasil, estranhamente sem chuva. O céu estava limpo em quase todo o País.
O meio expediente no Comando Militar da Amazônia (CMA) estava como o tipicamente amazônico, sem hora para terminar, quando terminava. Naquele dia, não terminou.
À tarde, os militares voltavam para suas casas, uns para os bairros da capital, outros para bem longe dali. Havia os que foram a trabalho pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e retornavam para o Rio de Janeiro, após concluírem um Exercício no Terreno. A semana foi animada por uma reunião entre companheiros que há muito não se viam. Para alguns, infelizmente, foi o último encontro.
Eram mais ou menos 16h30 quando liguei para minha esposa, perguntando se ela queria que eu comprasse algo para as crianças no caminho de casa:
- Você viu que um avião da Gol sumiu do radar? – foram suas primeiras palavras, sem esperar pelas minhas. Respondi-lhe que não; fui para o estacionamento; embarquei; liguei o carro e o rádio; dirigi ouvindo as notícias. Como eu, milhões de brasileiros estavam apreensivos.
As 154 pessoas que estavam no voo Gol 1907 partiram, provavelmente imaginando, ao embarcar, que, no fim de semana, assistiriam a um filme com a família, jantariam com amigos, pegariam uma praia, preencheriam relatórios para suas empresas ou atualizariam o NOTAM em uma roda de chope, como é dito entre os militares em seu linguajar de caserna. Os passageiros e a tripulação nunca chegaram aos seus destinos, após o fatídico encontro com o Legacy que ia de São José dos Campos para Manaus, em sentido contrário.
Antes que a noite terminasse, a Força Aérea Brasileira (FAB) mobilizou-se para uma operação de Busca e Salvamento, sabidamente complicada. Com o apoio do CMA, foi acionado um helicóptero HM-2 Black Hawk do 4º Batalhão de Aviação do Exército para um difícil deslocamento noturno até a região onde o avião havia desaparecido.
No dia seguinte, pela manhã, essa equipe foi a primeira a avistar o desastre. Impossibilitados de pousar de imediato e diante do óbvio visto do alto, os militares lançaram uma dupla por fast-rope, que abriu uma clareira, enquanto a aeronave pairava no ar; o restante dos homens desceu depois. O cenário era desolador: havia um forte cheiro de querosene misturado ao da mata queimada e ao do carregamento de um tipo de unguento; a confusão das bagagens e dos destroços contrastava com o silêncio absoluto das vidas perdidas.
Sem qualquer interrupção, a Força Aérea e o Exército carrearam seus meios para o local com rapidez. Em poucas horas, montou-se o esforço para garantir o respeito aos despojos dos que padeceram. Acionado pelo Chefe do Estado-Maior do CMA, General Ferreira, a pedido do Brigadeiro Xavier, Comandante do VII Comando Aéreo Regional, o então Major Brayner, em apenas 4 (quatro) horas de aprestamento, deslocou-se com a equipe precursora do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS), iniciando as buscas no dia seguinte, sob a ordem do General Cerqueira, Comandante do CMA:
- Vamos manter nosso pessoal lá até todos serem encontrados! A ordem foi simples, breve e clara para resolver um problema complexo e longo. Foram 48 dias!
Para quem estava nos bastidores da operação, as informações chegavam aos poucos, algumas da imprensa, outras do pessoal na clareira, que coletava de tudo: pertences, que foram devolvidos às famílias; destroços para investigação aérea; documentos pessoais e institucionais; e até segmentos corporais para exames de DNA. As notícias do Campo de Provas Brigadeiro Veloso, em Novo Progresso (PA), eram tristes, contudo, a certeza de que a FAB e o Exército cumpririam a missão atenuava o abatimento dos brasileiros.
Daqueles dias, um detalhe ainda me chama a atenção: um dos nossos colegas a bordo, após o choque entre as aeronaves e em meio ao horror que se instalou subitamente, imagino que teve um momento para pensar, então acondicionou sua identidade na frente da calça, prevendo as consequências dos seus derradeiros momentos. Há tempos me intriga sua atitude racional diante do desespero. O que me vem à mente é que ele decidiu reduzir o sofrimento de sua família na espera por suas notícias, e conseguiu! Foi um dos primeiros a ser identificado!
Há outras histórias desse trágico acidente da aviação civil brasileira, contudo, ninguém conseguiu contá-las como as que vimos, ouvimos e sentimos.
Do dia 29 de setembro de 2006, há quase duas décadas, o longo minuto de pânico que se instalou a bordo do GOL 1907 ainda ecoa em recordações que contam aflições e medos vividos por quem partiu cedo demais, sem se despedir. Essas lembranças foram cobertas pela poeira do tempo, mas nunca esquecidas pelos profissionais que operaram em meio à selva, entre eles, militares que permitiram às famílias pesarosas encerrarem aquele dia, proporcionando dignidade para as pessoas que amavam.
Outros detalhes:
- a Operação Conjunta da FAB e do Exército desdobrou-se no Campo de Provas Brigadeiro Veloso (Base Aérea do Cachimbo), onde ficou a coordenação-geral; na Base de Operações Avançada, na Fazenda Jarinã (Peixoto de Azevedo-PA), onde as tropas estacionaram para revezamentos; e na Clareira do Acidente, com, diariamente, 1 (um) Pelotão do 1º Batalhão de Infantaria de Selva;
- a caixa-preta da aeronave foi encontrada com os meios de desminagem do 1º Batalhão de Engenharia de Combate (Escola), do Rio de Janeiro-RJ;
- as tropas também receberam, dentre outros, o apoio de uma equipe de peritos forenses do IML, de Salvador-BA, e da companhia aérea; e
- o Exército perdeu 5 militares no voo; as cinzas de um deles foi lançada em uma cerimônia no Lago Tefé, em Tefé-AM.
Fontes:
Precipitação Observada. CENTRO DE PREVISÃO DE TEMPO E ESTUDOS CLIMÁTICOS, 2006. Brasil. Disponível em: https://clima1.cptec.inpe.br/monitoramentobrasil/pt. Acesso em: 11/06/24.
Cel Mário Flávio de Albuquerque Brayner, RELATOS DA OPERAÇÃO DE RESGATE DO VOO 1907. Entrevista em 08/11/14.
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